No entender do pesquisador, tal realidade constitui um problema para a efetivação dos direitos humanos na sociedade brasileira, visto que os agentes de segurança privada autorizados e treinados detêm poderes que podem afetar as liberdades civis dos cidadãos. Não raro, lembra Lopes, os vigilantes fazem uso da força para defender a integridade física e patrimonial de seus clientes. “No Brasil, esse potencial de ameaça é especialmente preocupante, visto que os elevados índices de criminalidade e os freqüentes conflitos sociais podem induzir à execução de um policiamento privado agressivo e abusivo”, analisa. Mais grave ainda, prossegue o autor do estudo, é a existência de um contingente gigantesco de vigias e seguranças que trabalham na informalidade. Entre estes, a grande maioria não possui qualquer preparo para exercer a função.
No país, informa Lopes, quem “vigia” os vigilantes é a Polícia Federal, ou seja, o órgão é que exerce o controle sobre as atividades ligadas à segurança privada. Ocorre, porém, que essa tarefa não vem sendo cumprida a contento, em razão de uma série de fatores. O pesquisador reconhece que a PF realizou esforços para imprimir uma melhor regulação sobre o segmento, principalmente com a edição da Portaria 387/06, de agosto de 2006. Esta introduziu novas exigências para a educação dos vigilantes, como a ampliação da carga horária dos cursos de formação e a inclusão de disciplinas relacionadas aos direitos humanos e à integração entre as seguranças privada e pública. Também estabeleceu o conceito do uso proporcional da força nos treinamentos. “Foram inovações importantes, sem dúvida, mas que não deram conta de superar os diversos problemas relativos ao setor”, afirma o autor do estudo.
Um desses problemas, segundo Lopes, diz respeito ao controle das armas de fogo. A despeito de a regulação ter experimentando avanços nesse aspecto na última década, o pesquisador considera que ela está restrita aos produtos em si, não alcançando, portanto, as atividades de policiamento privado, que obviamente fazem uso de armamento. “Isso se deve menos por falha da Polícia Federal e mais pelo fato de o Brasil possuir um marco legal permissivo. A legislação não define e não permite que o órgão regulador defina quais atividades de segurança privada devem ser executadas de maneira desarmada. Por incrível que pareça, essa decisão cabe ao prestador e ao contratante dos serviços de segurança”, explica.
Lopes avalia que também existem falhas nos requisitos para a concessão de autorização para o funcionamento de empresas e atuação de vigilantes, a despeito destes terem sido igualmente aprimorados nos últimos anos. Atualmente, o candidato a uma vaga de vigilante é obrigado a apresentar, por exemplo, atestado de antecedentes policiais e comprovante de sanidade mental. Entretanto, a baixa escolaridade exigida para o ingresso na profissão [4ª série do ensino fundamental] continua sendo um problema. Este item não pôde ser alterado porque é regido por lei específica, datada de 1983.
Outra dificuldade para que ocorra uma efetiva regulação estatal sobre a segurança privada é a fragilidade dos mecanismos disponíveis para incentivar os controles interno e externo. Em relação ao primeiro caso, conforme Lopes, a PF não cobra das empresas a apresentação de relatórios de prestação de contas. A única exigência é a elaboração de documentos referentes a produtos controlados [armas e acessórios] e eventuais condutas criminosas de vigilantes. “São normas importantes, mas que não constituem instrumento de supervisão constante e passível de acompanhamento público”, considera. No que toca ao controle externo, que deveria ser exercido com a participação dos clientes, também há falhas.
De acordo com o autor da dissertação, a PF dispõe de instrumento para incentivar o controle sobre a segurança privada por parte dos sindicatos laborais e patronais: a Comissão Consultiva para Assuntos de Segurança Privada (CCASP). Esse órgão colegiado não conta, no entanto, com a participação dos clientes (exceto o setor bancário), que segundo a literatura seriam os atores em condições de desempenhar o papel mais efetivo no controle externo das atividades de segurança privada. “Além disso, há uma outra questão complicada em relação à CCASP. As regras que regulam a comissão permitem a interferência dos setores privados quando da punição das empresas infratoras. Em outras palavras, há um claro conflito de interesses que prejudica a fiscalização”, relata Lopes, que foi orientado pelo professor Andrei Koerner, do IFCH.
Crimes e milícias Se a capacidade fiscalizadora da Polícia Federal sobre o universo formal da segurança privada apresenta deficiências, o que dizer do controle exercido em relação às empresas e vigilantes que atuam na informalidade? De acordo com Cléber da Silva Lopes, autor de dissertação de mestrado sobre o tema, a ação da PF nesse aspecto é ainda mais débil e limitada. “Isso se deve tanto à falta de uma política nacional de combate às atividades clandestinas quanto à carência de recursos humanos, materiais e legais para a execução de tal tarefa”, analisa.
De acordo com o pesquisador, a fiscalização exercida pela PF sobre o policiamento privado irregular abrange apenas as atividades executadas intramuros, transporte de valores, escolta armada e segurança pessoal. “As atividades exercidas em vias públicas, que são muito comuns nos bairros de classe média das grandes e médias cidades, estão fora do controle da PF. E, ao que tudo indica, também não estão no foco das polícias estaduais, visto que o número de empresas clandestinas só faz aumentar em vez de cair”, diz Lopes. Essa falta de “vigilância” sobre a vigilância informal é altamente preocupante, na avaliação do pesquisador. É justamente esse segmento, segundo ele, que parece oferecer os riscos mais sérios para a consolidação dos direitos humanos no Brasil.
Os poucos dados disponíveis, continua Lopes, indicam que há uma importante concentração de ocorrências criminais nesse setor. De janeiro de 2001 a setembro de 2003, por exemplo, foram registrados na cidade de São Paulo 7.377 casos envolvendo profissionais que atuam na segurança privada. Desses, 25% diziam respeito a ameaças e 20%, a lesões corporais. “Não por acaso, é nesse terreno que floresce o policiamento privado executado por justiceiros, as milícias e os esquadrões da morte”, afirma o autor do estudo.
Essas constatações, assinala Lopes, apontam para a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao controle específico das empresas e vigilantes que pertencem ao universo informal. Em outras palavras, o Estado não pode se eximir de exercer o controle sobre esse tipo de atividade, sob pena de contribuir indiretamente para a progressão da violência e da criminalidade. “Mas, para que essas políticas sejam implementadas, é necessário conhecer melhor esse universo. É imperativo saber quem e quantos são os provedores de segurança, como atuam, quem são os clientes e que implicações esse setor traz para a segurança pública”, alerta. Um aspecto fundamental dentro do esforço para fiscalizar essa atividade irregular, aponta Lopes, é o maior controle sobre as polícias estaduais, visto que a participação de policiais civis e militares parece ser intensa nesse universo. Somente com a conjugação dessas medidas, acredita o pesquisador, será possível exercer de fato uma “vigilância” efetiva sobre os vigias.