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Dois vanguardistas vêem a vanguarda

ÁLVARO KASSAB
EUSTÁQUIO GOMES

Décio Pignatari e Ferreira Ferreira Gullar: “É preciso encontrar o que há de comum no campo das idéias" (Foto: Fernando Donasci/Folha Imagem)Gullar, dois dos mais importantes escritores brasileiros, são interlocutores privilegiados quando o tema é a vanguarda. Pignatari fundou, ao lado dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, integrantes do Grupo Noigrandes, as bases da poesia concreta, cujo lançamento deu-se em dezembro de 1956, na Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Tradutor, ensaísta, teórico da semiótica e dono de uma obra original – grande parte dela reunida no livro Poesia Pois É Poesia, recém-lançado pela Editora da Unicamp/Ateliê Editorial –, Pignatari está atuando na Universidade no âmbito do Programa Artista-Residente.

Ferreira Gullar, que num primeiro momento chegou a participar do grupo concretista, acabaria se afastando por discordâncias teóricas do núcleo paulista. A ruptura deu-se em 1957, por meio de artigo publicado no Jornal do Brasil. O autor de A Luta Corporal (1954) escreveria mais tarde, em março de 1959, o Manifesto Neoconcreto. Amilcar de Castro, Lygia Clark, Reinaldo Jardim e Lygia Pape, entre outros, assinaram o manifesto. Nas décadas seguintes, Gullar produz uma obra que reúne poesia, ensaio, crítica e prosa. Destacam-se, nesse conjunto, livros comoDécio Pignatari: “A qualidade em múltiplos focos de irradiação virá logo mais" (Foto: Antônio Scarpinetti) Vanguarda e subdesenvolvimento (1969), Poema sujo (1976) e Na vertigem do dia (1980).

Na matéria que segue, Gullar e Pignatari discutem os rumos da vanguarda nas artes em geral. Os escritores analisam o papel das novas tecnologias, do mercado e da mídia no surgimento – ou na falta – de novas manifestações estéticas, e falam sobre um possível esgotamento das linguagens artísticas.

Jornal da Unicamp – Técnica e vanguarda invariavelmente andam juntas. Ao menos, isso foi válido para as vanguardas da primeira metade do século XX. Por que isso não acontece agora, que a técnica e os modos de produção estão em franca mudança?

Décio Pignatari – As imbricações entre técnica e vanguarda artística não são unidirecionais, em esquema de causa-e-efeito. Às vezes, o horizonte abdutivo-criativo se abre com as teorias científicas. Assim, os impressionistas descobriram que a sombra tinha cor graças às fotos em preto e branco (cinzas variados de acordo com os comprimentos de onda do espectro) e começaram a produzir choques cromáticos por influência de Chevreul e sua teoria do contraste simultâneo das cores. E foram abandonando o ponto de fuga por obra da perspectiva axionométrica das gravuras japonesas.

Picasso estava introduzindo o tempo no espaço (cubismo) por influência da arte negra, no mesmo período em que Eistein formulava a primeira lei da relatividade. Mallarmé produziu o poema espacial Um lance de dados, em 1897, por influxo de Wagner, da tipografia e da diagramação de jornal.

Alfredo Volpi, o maior pintor brasileiro, usava uma técnica quase milenar, a têmpora a ovo sobre tela, em pleno surto da televisão e do computador. Para uma cibermassa, uma cibermídia, eis a lógica da espantosa expansão dos mercados globalizados. Estamos em plena era da quantidade de informação. A qualidade em múltiplos focos de irradiação virá logo mais.

Ferreira Gullar – É discutível afirmar que técnica e vanguarda andaram sempre juntas. Muitas das vezes, a vanguarda se opôs à técnica. Uma das razões da crise da arte contemporânea, a partir do cubismo, é exatamente a contradição entre a natureza artesanal da pintura – e da escultura e da gravura – e a produção industrial que havia tomado conta da sociedade. Este conflito está na raiz da crise.

Algumas das tendências artísticas da vanguarda tentaram usar as tecnologias mas, em geral, sem proveito. As únicas artes tecnológicas que deram certo são o cinema e a fotografia. A fotografia é a base do cinema, que por sua vez a superou ao criar toda uma nova maneira de formular a realidade. O cinema criou uma linguagem artística.

Hoje, o que se vê, sobretudo nas artes plásticas, com algumas exceções, é o abandono de todas as técnicas. O artista virou a obra de arte... As performances nos mostram isso. Não tem mais nada a ver com as artes plásticas. Eu não nego que você pode se expressar se vestindo de garçom, como fez Chris Burden, aquele artista americano que, ao inaugurar sua exposição, não tinha quadro nenhum na parede. É engraçado, mas o que ele quer dizer? Que tanto faz pintar ou servir café? Que a arte não vale nada?

Acho tudo isso uma atitude negativa, niilista, de gente que não quer fazer arte ou não tem talento suficiente para superar o problema da arte contemporânea. O cara deveria ir para o teatro, não para a galeria de arte... Eu continuo a me encantar com pintura feita agora. Artistas como Siron Franco, Antonio Henrique Amaral e João Câmara, entre muitos outros, continuam pintando e criando coisas muito bonitas e novas.

A literatura é diferente. Não predomina, nela, essa loucura de destruir todas as linguagens e virar você o centro de tudo. A última obra que fez isso foi Finnegans Wake, de [James] Joyce. Felizmente, a literatura não seguiu esse rumo. Do contrário, não teríamos as obras de Jorge Luis Borges, William Faulkner, João Guimarães Rosa, García Márquez etc. Teríamos um texto quase ilegível como o é o livro do Joyce. Lógico que se trata de uma obra construída, de uma coisa séria, não é uma brincadeira. Lê-lo significa praticamente decifrar um texto quase indecifrável. Imagine se a literatura tivesse virado isso... Felizmente, não virou.

Assim como a literatura, o cinema, a música e o teatro tiveram suas buscas de vanguarda, realizaram conquistas na linguagem estética, incorporaram essas conquistas e retornaram ao leito que permite ao artista se comunicar com o público.

JU – As novas tecnologias e o espaço virtual vão suscitar experimentações ou tendem a pulverizar as novas linguagens?

Décio Pignatari – A hibridização dos meios é a tendência normal, nessas circunstâncias. Outra parte de uma possível resposta já está formulada acima.

Ferreira Gullar – O computador oferece às pessoas novos instrumentos que podem ser utilizados criativamente. Não ponho em dúvida isso, pelo contrário. Algumas coisas até já são feitas nesse sentido.

Vou citar uma coisa minha porque é aquela que eu conheço: os poemas concretos e neoconcretos que fiz nas décadas de 1950 e 60, e que foram publicados à época, tinham muito potencial de movimento. Era inviável imprimir ao poema, no papel, esse movimento. A internet permitiu, décadas depois, usar uma série de virtualidades que estavam na minha obra, e que não podiam ser expressas no livro. Entretanto, não vai dar certo se o cara quiser simplesmente pintar com o computador. Se é para usar o novo meio, tem que criar uma coisa nova.

Por outro lado, não acredito que o computador seja responsável pela aglutinação das pessoas em torno de um movimento, embora o equipamento até permita – e facilite – a sua aproximação. Vejo isso como conseqüência da situação cultural do momento. Agora, para surgir um movimento que unifique as pessoas, é uma coisa que depende de uma quantidade de fatores indeterminada.

Não saberia dizer, por exemplo, porque de repente surgiu o movimento de arte concreta. Historicamente, é óbvio, a gente até localiza as referências externas. Mário Pedrosa, Geraldo de Barros etc tomaram conhecimento de novas idéias, que acabaram gerando o movimento. Estou falando da pintura, não da poesia, que é uma coisa que veio depois. A pintura e a escultura passaram a seguir esse rumo.

Porém, os fatores circunstanciais ninguém sabe ao certo como surgiram. Houve a Segunda Guerra e, conseqüentemente, a interrupção do intercâmbio cultural; quando tudo voltou ao normal, havia um otimismo muito grande, a necessidade de retomar esse diálogo, foi criada a Bienal de São Paulo etc. Tudo isso contribuiu para surgir o concretismo. Agora, fazer um movimento pela simples vontade, é difícil. É preciso encontrar o que há de comum no campo das idéias.

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