ÁLVARO KASSAB
EUSTÁQUIO GOMES
JU O senhor concorda com a tese de que as tendências mais radicais das vanguardas destruíram as linguagens artísticas. Isso explicaria a ausência de manifestações de vanguarda no momento?
Décio Pignatari Linguagens artísticas não se destroem, transformam-se. As chamadas vanguardas abrem à cultura novos campos abdutivos, ou seja, novas possibilidades sígnicas para as novas sensibilidades inteligentes. A vanguarda de um imediato ontem está na arquitetura de um Frank Gehry, mas teve início com as idéias de Robert Venturi, nos anos 60. A vanguarda no sentido tradicional, ou seja, a que ocorre num campo específico, hoje pode ser acompanhada no design e, particularmente, na moda.
Ferreira Gullar Em parte, explica. Como disse na resposta anterior, essa radicalidade não chegou, nas outras artes, ao ponto em que chegou nas artes plásticas, onde o predomínio mundial, hoje, é dessas tendências em que as linguagens foram desintegradas. Então, eu me pergunto aliás, trata-se de uma indagação para qual eu não tenho resposta: por que razão só ocorreu isso nas artes plásticas?
Terá sido porque se criaram as bienais, os museus de arte, e essas instituições fomentam e dão estímulo a isso? Na verdade, essa desintegração é decorrente de muito fatores. Um deles, acredito, reside no fato de essas artes serem artesanais, e a nova civilização criada, é industrial, como eu disse anteriormente. Houve um embate entre a tecnologia predominante na época e o artesanato dos artistas.
O ready-made, do Duchamp, não é outra coisa, no meu modo de ver, se não uma manifestação desse conflito. No momento em que ele pega um urinol, produzido industrialmente, assina um pseudônimo e manda para uma exposição, o que ele está dizendo? Que não é preciso ser artista nem artesão e nem dominar técnica alguma para fazer arte. Ele está dizendo que a indústria faz arte, e faz até sem querer....E se você vai por esse rumo, no qual o Duchamp é um dos principais fomentadores dessa crise, vai desintegrando tudo.
Quando o cara se crucifixa na traseira de um fusca, ele não está fazendo pintura nem escultura. O que ele está dizendo, afinal de contas? Que a arte acabou, que ele é a vítima dessa destruição? Essa arte que está aí é resultado de uma crise. Ela é quase toda negativa e niilista. Você não encontra quase nada de otimista nessas manifestações.
Os artistas acham que estão fazendo vanguarda, mas é uma vanguarda que existe desde 1960. Sem falar no Duchamp, que vem de 1917. Mas, depois que virou um movimento internacional e não só expressão pessoal dele tem meio século. Não há nada de novo. Tudo o que é feito, de uma maneira ou de outra, é uma repetição do que já foi realizado antes.
Como não tem linguagem e não existe técnica, trata-se de um vale-tudo. É sempre assim: o cara tem uma idéia e a coloca em prática. É uma coisa aleatória, e isto é contra a natureza da arte. Ela não vive de coisas que sejam aleatórias, que tanto faz assim como assado. Quando você diz “a arte de falar”, o que significa? Que é falar bem, não é verdade? A palavra arte está sempre associada a uma coisa de excelência, e não a qualquer coisa. Como pode ser arte você botar cocô dentro de uma lata, assinar seu nome e mandar para a uma galeria? Isso só pode ser interpretado como quem diz: arte é merda.
Isso não conduz a nada. É uma bobagem, é fazer o contrário do que o ser humano necessita. Não foi Deus quem inventou a arte, foi o homem. E se ele a destrói, ele está dando cabo a uma coisa inventada para a vida ser melhor. A arte foi inventada porque a vida não basta.
Picasso disse que a arte é a mentira mais verdadeira que a verdade. É isso mesmo. O homem precisa inventar, precisa da fantasia. Ele precisa do sonho, porque ele vai morrer. Nós queremos é sonhar. De merda, de terrorismo e de guerra, nós já estamos cheios. Queremos beleza, sonho e felicidade.
Falo por mim. Na verdade, fui involuntariamente precursor do concretismo. Em meu livro A luta corporal desintegrei a linguagem e isso tornou necessário inventar-se outra linguagem, de onde surge a poesia concreta, criação de Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.
Eu sei muito bem que você pode ser levado, em certos momentos, até a destruir as coisas, mas não pode ser com a intenção pura e simples de se acomodar nessa destruição. Por revolta, por conflito, você pode destruir, mas a intenção por baixo daquilo tem que ser a de reconstruir. Não pode ser a de destruir por destruir. A arte é uma coisa que existe há mais de 20 mil anos. Não é por acaso que o homem da caverna já a fazia sem saber. Não seria Duchamp que iria mudar a essência do ser humano.
Isso não se sustenta mais. Acredito que, fatalmente, haverá uma reversão desse quadro. As bienais, por exemplo, já estão mudando. As instalações já estão desaparecendo; as performances, nem se fala. O que ainda sobrevive é a vídeo-instalação, que é pobre. Trata-se de um sub-cinema, primitivo. O sujeito está voltando para antes do cinema; o pior é que ele acha que está adiante...
Uma vez fui ao Museu de Arte Moderna no Rio, e havia ali dois monitores de televisão, um sobre o outro, e nos dois aparecia uma pessoa lavando as mãos. Saí, dei a volta por todo o museu, vi as exposições, fiz anotações de que necessitava para escrever, voltei e aquelas mãos continuavam lá fazendo o mesmo gesto...Por que isso? É uma chatice, uma aporrinhação, uma bobagem.
Em Paris, ocorreu algo parecido numa visita que fiz ao Museu de Arte Moderna. Quando me aproximei de uma sala, comecei a ouvir uns berros. Ao entrar na sala, em dois monitores aparecia um cara se jogando no chão, berrando que nem um louco. Eu me perguntava o por quê daquilo tudo. Não dá, era um caso de internação... O cara precisava se tratar...
Entra aí a responsabilidade dos museus nesse estado de coisas. Se você fizer um livro idiota e entregar para uma instituição cultural, ela não vai fazer seu lançamento sem antes avaliá-lo. Não vai recomendá-lo aos leitores se o seu livro for uma bobagem. Não entendo por que os museus ficam divulgando esse tipo de arte. Falta coragem para dizer que tudo isso é tolice. Sou um dos poucos críticos que têm coragem de dizer que se trata de uma bobagem. A maioria, não tem. Os críticos têm medo de parecerem retrógrados. Só que tal arte inviabiliza a crítica. O que de dizer de um cara berrando e se jogando no chão? Seria preciso, para falar disso, talvez um crítico teatral, não um crítico de artes plásticas.
JU Em que medida a mistificação promovida por setores do mercado colaborou para o esgotamento das vanguardas, caso isso tenha de fato ocorrido?
Décio Pignatari Ante a jamais vista produção de bens materiais do planeta Terra, até o imponderável, ou seja, a informação, já passou à categoria de bem material. O que é verdade. A informação é o bem mais importante de nossa era. Por paradoxal que pareça, isto implica a idéia de idéia. “Poemas se escrevem com palavras, não com idéias”, disse Mallarmé a Degas, que lhe dizia ter boas idéias, mas não conseguia não conseguia escrever poemas aceitáveis.
Já o meu mestre Volpi, no tempo em que freqüentei o seu ateliê informalmente, dizia que o importante é ter a idéia. O resto, depois, era fácil. Segue-se que idéia verbal é uma coisa, idéia icônica, não-verbal, é outra. E a poesia segue sendo a mais enigmática das artes. Não tem mercado, não leva a nada, porque o seu “discurso”, sendo inconclusivo, não pode ser profissionalizado.
Por que isso ocorre? Porque a poesia opera e ocorre no limiar entre o verbal e o não-verbal. O seu diagrama lingüisticamente correto é subvertido por signos icônicos “incorretos” (som, ritmo, espaço, dimensão das palavras etc), o que a leva a um impasse. Só a prosa entra em lista de best-sellers. E mais: no Éden-Babel tecnológico em que vivemos, grandes poemas ainda podem ser feitos simplesmente com lápis e papel. E depois registrados e desenvolvidos em quaisquer meios. Isto é que é idéia.
Poesia é tecnologia no alto sentido semiótico e ideológico processado pelo Interpretante de Peirce; o poema é técnica. Estranhamente, são praticamente inexistentes as grandes poéticas de natureza ingênua, primitiva, naïve. De tal modo o domínio do código verbal é importante no Ocidente. Já no campo visual e visual-tridimensional, são notáveis as realizações do Douanier Rousseau, de José Antônio da Silva e do mais do que notável Artur Bispo do Rosário.
Ferreira Gullar Até os críticos já reconhecem que a vanguarda se esgotou. Ninguém acha que a vanguarda está em pleno florescimento. Nem eles acham. Ocorre que eles a ficam justificando, como se isso fosse expressão artística. Um crítico americano escreveu o seguinte, em um artigo, há mais de quarenta anos: desde que os críticos franceses não conseguiram entender o impressionismo, e deram opiniões negativas sobre essas obras, eles ficam com medo de dar opinião. Eles têm medo de parecerem tão reacionários quanto aqueles que não entenderam Renoir e Monet.
O crítico, hoje, aprova tudo. Seja o que for, ele tem que ser mais de vanguarda que o próprio artista... Esse crítico americano dizia que se o artista espremesse uma bisnaga do nariz do crítico, este diria que se tratava de uma obra de arte. E é o que está acontecendo.
O mercado tem, obviamente, alguma culpa nisso tudo, mas a maior responsabilidade é das instituições. Se uma fundação de uma grande empresa financia uma obra, o presidente dessa empresa está pouco ligando. Ele não vai ver nada daquilo, não sabe o que está acontecendo. Ele simplesmente entrega a obra para a instituição.
Há um dado aí que não pode ser ignorado: o capitalismo é o regime da novidade, vive dela. Como a geladeira e o carro, por exemplo, duram mais do que o mercado gostaria, muda-se o desenho. A obsolescência planejada mantém as vendas. Produzir a novidade é fundamental para o capitalismo. A arte segue essa ordem, obedece.
Toda obra de arte envolve uma coisa nova. Agora, para ser novo, não precisa ser paletó de três mangas... Morandi pintava os mesmos objetos, e cada quadro dele era diferente um do outro. A arte nunca foi apenas a busca do novo. O principal defeito do novo é que ele fica velho...E arte busca sempre o permanente. Está implícito. Não vou, por exemplo, repetir num poema o que já disse em outro. Mas posso, com palavras muito parecidas e até sobre o mesmo tema, escrever um outro poema que seja diferente.
A mesma coisa faz o músico. Você pode pegar certas variações do Tom Jobim, das coisas lindas que ele fez, que você nota semelhança de acordes, de linha melódica, mas é outra coisa. Ele fez isso porque senão ia terminar que nem o John Cage: ia fazer a música do silêncio toca uma nota aqui e, 40 minutos depois, toca outra. Ninguém agüenta: o espectador ou ouvinte fica pensando em outra coisa na namorada, nas contas para pagar...O cara não é louco de esperar 40 minutos para ouvir outra nota. Mas se você não aceita isso é retrógrado.
No Jardim Botânico, um performático fez uma instalação com larvas de moscas e gias para o visitante observar as larvas por um microscópio. Serve para matar a curiosidade mas que tem isso a ver com arte? Mas como ninguém compra larva de mosca, o artista vende desenhos... Isso é apenas marketing.
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