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‘A poesia segue sendo a mais
enigmática das artes’

ÁLVARO KASSAB

EUSTÁQUIO GOMES

"A informação já passou à categoria de bem material" (Foto: Antônio Scarpinetti)JU – Experimentações estéticas comuns, logo esquecidas, são alçadas pela mídia à condição de inovadoras e até mesmo de “revolucionárias”. Em que medida a indústria cultural colaborou para a banalização das vanguardas?

Décio Pignatari – Mídia e mercado são sempre companheiros e cúmplices, seja no sistema não-dirigido das democracias modernas, seja no sistema de dirigismo político de nações várias, de diferentes culturas e civilizações. Mesmo sem recorrer à Teoria da Informação, a tradicional classificação americana sócio-repertorial das mensagens de todos os tipos e naturezas, em high cult/medium cult/low cult ajuda a compreender as possibilidades de aceitação e entendimento de uma mensagem. Dentro desse esquema, por exemplo, evito falar de “escritor de segunda categoria”. Prefiro falar: “É um escritor do terceiro nível”. Abaixo do terceiro, o melhor é relegar a coisa ao limbo da subliteratura.

A resposta direta à questão é: o Brasil não possui publicações impressas ou culturais de nível “A”; as publicações acadêmicas são todas, sem exceção, do nível “B”, pois só analisam obras “legitimadas” e fogem do juízo de valor; o resto é entregue ao jornalismo cultural ou a publicações erráticas, sempre de nível B, embora graficamente luxuosíssimas, de nível “A Plus”, em alguns casos surpreendentes. Observe-se que me recuso a falar em “indústria cultural”, velha idéia sócio-filosófica que já não significa nada.

Décio Pignatari (à esquerda), Ronaldo Azeredo e Augusto de Campos, em foto de 1956, ano em que o concretismo foi lançado na Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Foto:Folha Imagem)Ferreira Gullar – Vi uma vez exposto no Rio um desenho feito pelo Christo – aquele artista que enrola tudo –, fruto de instalação em que ele colocou centenas de guarda-chuvas azuis na Califórnia e outros amarelos, no Japão. Na mesma hora, abririam todos os guarda-chuvas. Vamos fazer de conta que aconteceu, embora possivelmente não deva ter acontecido nada... Pois bem: o esboço de um desses guarda-chuvas, feito a lápis, estava sendo vendido no Rio por 60 mil dólares. Predomina a mesma lógica do mercado.

Aquele artista americano que se vestiu de garçom, Chris Burden, mencionado por mim em uma das respostas, tinha, na bandeja em que carregava, xícaras, um bule com café e outro com creme de leite. Este bule com creme de leite foi vendido dez anos depois por milhares de dólares; sem dizer que, antes, o bule de café foi vendido por mais dinheiro ainda.

Vejo que um dos grandes problemas da nossa época é a banalização decorrente da massificação, da mídia, da sociedade do espetáculo. Essa banalização subestima a reflexão, a criatividade, o silêncio. Todas as coisas que são fundamentais e preciosas são substituídas pela banalidade e pelas bobagens que a gente vê todos os dias.

JU – Se o senhor fosse escrever um manifesto hoje, o que ele não poderia deixar de conter?

Décio Pignatari – As idéias de “revolução permanente” e “vanguarda permanente” podem ser, às vezes, generosas, mas não são sustentáveis nem desejáveis, pois implicam paralisação e aparelhamento do poder cultural pelo poder político estamental. Há momentos necessários de aprofundamento e diversificação de conquistas. Mas a estes sempre se seguem os proselitismos e carreirismos acadêmicos. Os que deram um segundo lugar à obra Mensagem, de Fernando Pessoa, num concurso literário oficial, são os mesmos vigilantes que enterraram Pessoa nos Jerônimos, ao lado de Camões e que não admitem a mínima crítica à obra heteronômica, sempre importante, mas desigual, do grande poeta.

Ferreira Gullar – As idéias que procuro difundir, nos meus artigos e nas entrevistas, passam pelo fato de que o homem é uma invenção de si mesmo. O homem inventa a sua própria vida. Não é uma invenção gratuita, não é uma invenção a partir do nada – é uma invenção a partir das suas necessidades. Ele se inventou e se inventa, permanentemente. Nós não vivemos na natureza. Quem vive na natureza são as onças e os macacos. A natureza é importante e precisa ser preservada. Agora, o homem vive no mundo cultural que ele criou – o mundo dos valores, dos conceitos. A própria cidade onde ele vive é uma coisa desenvolvida por ele. Uma cidade é uma obra de arte gigantesca, com recursos tecnológicos extraordinários, que a fazem funcionar. Nós vivemos num mundo inventado por nós.

A arte inventa a parte imaginária, a outra parte do mundo, a fantasia de que o homem necessita para sobreviver. Esta é a minha visão do mundo. O mundo é inventado e a arte tem uma função importante porque ela é parte da criação desse mundo imaginário. Ela torna o ser humano mais humano. Ela preserva e amplia a humanidade do ser humano.

Destruir a arte é uma bobagem. Botar bigode na Mona Lisa não dá mais.…Outro dia escrevi um artigo que ficou sem resposta. Nele, eu perguntava se Duchamp teria coragem de botar o bigode no original, e não na reprodução, como ele fez. Respondo: não poria.

Duchamp sempre foi um humorista muito inteligente e talentoso. Mas ele tinha uma cabeça anarquista de um lado e niilista, de outro. Entretanto, ele preservou, até o fim da vida, duas obras fundamentais, que foram O Grande Vidro [1915-23], que ele não acabou, e Étant Donnés [1944-1966], também inacabada. Esta última trata-se de uma obra surrealista muito bonita, cheia de fantasia, de alta sensualidade e de erotismo e de muita imaginação. Ele era, no fundo, um cara com a necessidade de sonho que todo artista tem.

JU – O senhor acha que tem surgido algo de inovador, no campo das artes em geral, no Brasil?

Décio Pignatari – Vivemos uma nova era de quantidade. Já tivemos uma, a primeira, no século XIX; e outra, no século passado. Ambas com fabulosas realizações qualitativas nas artes, apesar das absurdas catástrofes sanguinárias das guerras e revoluções, especialmente no século XX. As novas escrituras, falaturas e videoturas começarão a delinear-se na próxima década. O século XX foi o século dos séculos. Este século XXI será o da Terra das Terras.

Ferreira Gullar – Estamos habituados às coisas que sempre caracterizaram o século XX – manifestos, movimentos, novas escolas etc. Fica parecendo, então, que quando não tem isso, não tem nada. Mas a arte está viva. A arte não precisa de movimentos de vanguarda para existir. Esse negócio de manifesto surgiu no final do século XIX e começo do século XX. Ninguém conhece um manifesto de Leonardo da Vinci nem de Picasso...As pessoas continuam a produzir.

Temos, por exemplo, bons poetas espalhados pelo Brasil inteiro. São escritores que estão construindo uma obra original. Não existem movimentos, mas a obra é que vale. Não é por ser cubista que um quadro é bom... Temos vários exemplos de pintores cubistas que copiaram Picasso e Braque e fizeram obras medíocres, Não é por estar enquadrada num movimento, que a obra tem valor. Tem valor em si, independente do movimento em que se enquadre.

Temos artistas trabalhando em várias frentes. Há, por exemplo, um movimento novo e interessante de gravadores no Rio em São Paulo. A gravura está renascendo por meio de jovens artistas.

Acho que precisamos corrigir nossa cabeça. Há muita confusão. Eu costumo dizer que ninguém vive numa cidade de 10 milhões de habitantes. Trata-se de realidade apenas numérica. Eu, por exemplo, vivo numa cidade de 40 pessoas. Começa que a cidade não é inteira, já é o bairro. E, dentro do bairro, existem os núcleos de pessoas, as comunidades;

Essa coisa de uma civilização multitudinária é um outro aspecto da sociedade. A arte, por exemplo, não tem que ficar ligada nisso. Os caras falam que uma obra só vale se dez milhões a lerem, mas a população da Terra é de 6 bilhões. Por esse raciocínio, dez milhões não são nada. Não é por aí, os critérios não devem ser quantitativos.

Um leitor que se apaixone por seu poema, já vale. Você faz a coisa para o ser humano real, não para o ser humano abstrato, aquele da estatística. O escritor se sente recompensado quando alguém chega a ele e diz que gostou de seu romance. Ele escreve para o outro. Um autor de best-seller deve ficar louco quando só vende um milhão... Deve pensar: “só na França vendi dois milhões, e agora, só vendo um milhão, será que estou decaindo?” Pior que ele não conhece ninguém daqueles milhões de pessoas. É tudo uma loucura. O que acontece? O cara lê o livro do Drummond e guarda, enquanto o best-seller, depois de lido, é jogado fora. Por quê? Porque não será relido, não tem nada de permanente.

O grande best-seller é As flores do mal. Quando Baudelaire o publicou, naquela época, na França, tinha escritor que vendia 40 mil exemplares. Ele tirou uma edição mixuruca. Porém, todos aqueles que tiravam 40 mil dançaram, hoje a gente não sabe nem o nome. O livro de Baudelaire, porém, continua. Já tirou milhões de exemplares, em tudo quanto é língua. O best-seller é Baudelaire.

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