CLAYTON
LEVY
só uma coisa surpreende
mais em Benedicto de Campos Vidal que sua produção
científica, composta por 186 artigos
sobre biologia celular e cerca de mil citações
em revistas internacionais: seu ecletismo intelectual.
O raciocínio, lépido e claro,
pula de um assunto para outro numa velocidade
atômica. Para esmiuçar um tema,
vai da química à física,
da biologia à matemática, da filosofia
ao zen-budismo. Pega a prancheta, escreve, desenha,
gesticula, comunica-se de todas as formas possíveis.
A voz, ainda jovem apesar dos 77 anos prestes
a serem completados, casa-se no tom e no volume
aos movimentos rápidos e precisos, revelando
um cérebro que funciona em alta voltagem.
“Sempre fui assim, meio atrevido”,
brinca. Atrevido e precoce. Aos onze anos, já
trabalhava como protético no consultório
de um tio em São Paulo, cidade onde nasceu,
cresceu e formou-se em odontologia pela USP,
em 1953. Ainda na infância, seu passatempo
predileto era dissecar insetos. Já naquela
idade insinuava-se o futuro cientista e professor.
Lecionar, aliás, é um ofício
que domina com maestria. Qualquer objeto à
mão pode ser usado como recurso didático.
Uma lâmpada, uma caneta, uma folha de
papel. Tudo converge para o mesmo objetivo:
ensinar. É mais que paciente, é
generoso. Não se importa em descer à
ignorância do interlocutor, para depois
puxá-lo à altura do seu conhecimento.
“Faço isso com prazer”.
Impacto –
Ainda hoje, mesmo aposentado, mantém
grupos de estudantes que freqüentam sua
sala no Instituto de Biologia (IB), onde dá
expediente todos os dias como professor voluntário.
Embora acanhado, o espaço funciona como
uma pequena usina de idéias. Ao som de
clássicos do cinema, como a música
tema de O Dólar Furado (é aficcionado
por bang-bang e fã de Clint Eastwood),
o cientista mantém a rotina das 9 às
17 horas, lendo teses, escrevendo artigos e
orientando alunos.
Mais que orientar teses, Vidal tenta passar
para os jovens pesquisadores um pouco de seu
espírito inquieto. A mesma inquietude
que o fez surgir para o mundo científico,
em 1964, aos 34 anos, quando publicou seu célebre
trabalho sobre Birrefringência de Forma,
cujo impacto vem se estendendo nos últimos
40 anos em várias disciplinas.
Já naquela época, o cientista
falava em nanoestruturas, antecipando em décadas
o que só mais tarde seria tratado pela
física. Muitos de seus pares torceram
o nariz, duvidando do estudo. Vidal, que trabalhava
na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP),
ouvia as críticas e seguia trabalhando.
De lá para cá, não parou
mais de pesquisar, publicar e registrar patentes,
principalmente na área médica,
das quais se destacam um enxerto ósseo
e um curativo sintético, ambos à
base de colágeno.
Intuição
– Original até mesmo na
maneira de conceber seus trabalhos, Vidal conta
que o estudo sobre Birrefringência de
Forma resultou de uma intuição.
Mas cientistas têm intuição?
À pergunta, que sempre aparece nessas
ocasiões, ele reserva uma resposta academicamente
correta: “A intuição científica,
que existe, é conseqüência
da sedimentação de um trabalho
ao longo do espaço e do tempo, ou seja,
uma elucubração subconsciente
de dados que estão registrados em alguma
parte desconhecida do cérebro”.
E completa, professoral: “Veja, por exemplo,
o caso de Friedrich August Kekulê”,
referindo-se ao químico alemão
(1829/1896) que definiu a fórmula estrutural
do benzeno ao sonhar com seis macacos que se
davam as mãos, formando a geometria hexagonal
da molécula.
Casos como esse não surpreendem Vidal.
“Para mim, as intuições
são sínteses no interior do Eu,
extremamente complexas para serem compreendidas
pelo atual estado de conhecimento humano, mas
provavelmente muito simples do ponto de vista
biológico, especialmente evolutivo”.
E arremata, provocador: “Talvez, como
hipótese de trabalho, possa se propor,
como ponto de partida para abordagem do problema,
técnicas de psicanálise e mesmo
meditação para pesquisas nessa
área”.
Esse perfil diferenciado chamou atenção
em sua vida acadêmica desde o início.
“Uma vez, um professor me disse que eu
era um sujeito conspícuo”, ele
conta, soltando uma gargalhada comprida. Conspícuo
ou não, o fato é que Vidal, depois
de dedicar-se por mais de meio século
à ciência – o que lhe valeu
o título de professor emérito
da Unicamp – se diz uma pessoa resolvida.
Ele explica: “Considero resolvida a pessoa
que desenvolveu uma síntese sobre o Universo”.
Cósmico
– Não é de hoje
que ele busca essa integração.
Desde a juventude, passava horas discutindo
com amigos sobre a origem do universo, do homem
e a natureza de Deus. Vem daí sua afinidade
com a filosofia, que aprendeu a conhecer no
colégio dos irmãos maristas, ponto
de partida de sua formação escolar.
“Chegamos à conclusão que
Deus, em nossa visão limitada, não
era uma pessoa, Deus era uma lei, a lei de todas
as leis, uma meta-lei, uma coisa cósmica,
inimaginável”.
Ficou feliz ao saber que Spinoza, um de seus
autores preferidos, havia definido Deus como
a substância do universo. “Bateu
comigo, dá mesma chamar de substância
ou de lei”. A diferença é
que Spinoza, judeu, foi apedrejado na sinagoga
ao dizer o que pensava. Vidal continua ileso,
e dizendo o que pensa. “Acho um absurdo
existir teólogo; o homem não sabe
nem que é ele mesmo e vai se meter a
estudar Deus? É muita arrogância”.
É com esse tom crítico que examina
a construção social do conhecimento
em seu livro mais recente, Processo do Processo
(Editora Átomo), uma espécie de
síntese filosófica que atravessa
vários temas cujo interesse ultrapassa
os muros da academia. “Acredito que haja
um processo, em sua essência natural e
até mesmo biológico, nos caminhos
que levaram e levam a humanidade a produzir
conhecimento”, considera o cientista,
para logo em seguida questionar: “mas
existiria um processo do processo que conduz
o homem a saber?” A partir desta pergunta,
Vidal desfiará uma linha de raciocínio
que penetrará cada vez mais fundo no
próprio espírito humano.
Ora severo, ora irônico, mas sempre provocador,
o cientista examina aspectos delicados, como
a influência de elementos ideológicos
na evolução científica:
“Parece-me que, cada vez mais, será
impossível não se incorporar o
conteúdo ideológico em um processo
de gerar conhecimento”. Ao falar sobre
a aplicação ética do conhecimento,
Vidal é enfático: “O conhecimento
gera a imperiosidade ética de informar,
de assumir posições; o silêncio
pode ser extremamente pernicioso, porque esconde
a ignorância, acoberta a conveniência
e a irresponsabilidade”. Para ele, a ciência
que gera conhecimento tem de comunicá-lo
e submeter-se ao controle e às provas
de autenticidade. “Quem sabe, não
esconde: mata a cobra e mostra o pau”.
Dependência –
Gentil no trato e nas palavras, Vidal só
ameaça perder a paciência quando
fala da produção de conhecimento
no Brasil. “Há um grande perigo
de alguém chegar e dizer: vocês
perderam o bonde da história”.
O professor não tem dúvidas: a
ciência no Brasil é dependente.
“Veja a biologia molecular. Só
se fala em manipulação do DNA,
mas o Brasil é importador de kits. Ficam
bombeando pipetas importadas mas não
têm o espírito que está
por trás disso. São cientistas
dependentes da tecnologia desenvolvida lá
fora”. E dispara: “Se o Beethoven
nascesse na Amazônia, ele tocaria no máximo
berimbau”.
Para Vidal, não se pode tratar o problema
pela rama. “A academia sozinha não
faz nada, é preciso a sociedade acordar”.
Mas o mundo acadêmico também não
passa em branco: “Não adianta dizer
que tem tantos trabalhos publicados; eu tenho
186 trabalhos publicados, sou citado quase mil
vezes, mas isso não encerrou a minha
vida científica”. Obstinado, diz
que continuará trabalhando. “Preciso
alargar as idéias e analisar os reflexos
em torno da sociedade”. Depois de passar
dois anos sem ir ao exterior, ele avisa: “Pretendo
sair este ano para sentir como estão
as cabeças lá fora”. E que
ninguém se espante se, ao retornar, alguma
novidade científica faiscar de novo em
seu cérebro. Seja sonhando ou acordado.