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Autor de várias pesquisas de impacto, professor mantém
aos 77 anos o cérebro funcionando em alta voltagem

Benedicto Vidal aciona
sua usina de idéias

CLAYTON LEVY

O cientista Benedicto de Campos Vidal, professor voluntário do Instituto de Biologia: “Considero resolvida a pessoa que desenvolveu uma síntese sobre o Universo”  (Fotos: Antoninho Perri) só uma coisa surpreende mais em Benedicto de Campos Vidal que sua produção científica, composta por 186 artigos sobre biologia celular e cerca de mil citações em revistas internacionais: seu ecletismo intelectual. O raciocínio, lépido e claro, pula de um assunto para outro numa velocidade atômica. Para esmiuçar um tema, vai da química à física, da biologia à matemática, da filosofia ao zen-budismo. Pega a prancheta, escreve, desenha, gesticula, comunica-se de todas as formas possíveis. A voz, ainda jovem apesar dos 77 anos prestes a serem completados, casa-se no tom e no volume aos movimentos rápidos e precisos, revelando um cérebro que funciona em alta voltagem.

“Sempre fui assim, meio atrevido”, brinca. Atrevido e precoce. Aos onze anos, já trabalhava como protético no consultório de um tio em São Paulo, cidade onde nasceu, cresceu e formou-se em odontologia pela USP, em 1953. Ainda na infância, seu passatempo predileto era dissecar insetos. Já naquela idade insinuava-se o futuro cientista e professor. Lecionar, aliás, é um ofício que domina com maestria. Qualquer objeto à mão pode ser usado como recurso didático. Uma lâmpada, uma caneta, uma folha de papel. Tudo converge para o mesmo objetivo: ensinar. É mais que paciente, é generoso. Não se importa em descer à ignorância do interlocutor, para depois puxá-lo à altura do seu conhecimento. “Faço isso com prazer”.

Impacto – Ainda hoje, mesmo aposentado, mantém grupos de estudantes que freqüentam sua sala no Instituto de Biologia (IB), onde dá expediente todos os dias como professor voluntário. Embora acanhado, o espaço funciona como uma pequena usina de idéias. Ao som de clássicos do cinema, como a música tema de O Dólar Furado (é aficcionado por bang-bang e fã de Clint Eastwood), o cientista mantém a rotina das 9 às 17 horas, lendo teses, escrevendo artigos e orientando alunos.

Mais que orientar teses, Vidal tenta passar para os jovens pesquisadores um pouco de seu espírito inquieto. A mesma inquietude que o fez surgir para o mundo científico, em 1964, aos 34 anos, quando publicou seu célebre trabalho sobre Birrefringência de Forma, cujo impacto vem se estendendo nos últimos 40 anos em várias disciplinas.

Já naquela época, o cientista falava em nanoestruturas, antecipando em décadas o que só mais tarde seria tratado pela física. Muitos de seus pares torceram o nariz, duvidando do estudo. Vidal, que trabalhava na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), ouvia as críticas e seguia trabalhando. De lá para cá, não parou mais de pesquisar, publicar e registrar patentes, principalmente na área médica, das quais se destacam um enxerto ósseo e um curativo sintético, ambos à base de colágeno.

Cientista publicou estudo pioneiro aos 34 anos de idadeIntuição – Original até mesmo na maneira de conceber seus trabalhos, Vidal conta que o estudo sobre Birrefringência de Forma resultou de uma intuição. Mas cientistas têm intuição? À pergunta, que sempre aparece nessas ocasiões, ele reserva uma resposta academicamente correta: “A intuição científica, que existe, é conseqüência da sedimentação de um trabalho ao longo do espaço e do tempo, ou seja, uma elucubração subconsciente de dados que estão registrados em alguma parte desconhecida do cérebro”. E completa, professoral: “Veja, por exemplo, o caso de Friedrich August Kekulê”, referindo-se ao químico alemão (1829/1896) que definiu a fórmula estrutural do benzeno ao sonhar com seis macacos que se davam as mãos, formando a geometria hexagonal da molécula.

Casos como esse não surpreendem Vidal. “Para mim, as intuições são sínteses no interior do Eu, extremamente complexas para serem compreendidas pelo atual estado de conhecimento humano, mas provavelmente muito simples do ponto de vista biológico, especialmente evolutivo”. E arremata, provocador: “Talvez, como hipótese de trabalho, possa se propor, como ponto de partida para abordagem do problema, técnicas de psicanálise e mesmo meditação para pesquisas nessa área”.

Esse perfil diferenciado chamou atenção em sua vida acadêmica desde o início. “Uma vez, um professor me disse que eu era um sujeito conspícuo”, ele conta, soltando uma gargalhada comprida. Conspícuo ou não, o fato é que Vidal, depois de dedicar-se por mais de meio século à ciência – o que lhe valeu o título de professor emérito da Unicamp – se diz uma pessoa resolvida. Ele explica: “Considero resolvida a pessoa que desenvolveu uma síntese sobre o Universo”.

Cósmico – Não é de hoje que ele busca essa integração. Desde a juventude, passava horas discutindo com amigos sobre a origem do universo, do homem e a natureza de Deus. Vem daí sua afinidade com a filosofia, que aprendeu a conhecer no colégio dos irmãos maristas, ponto de partida de sua formação escolar. “Chegamos à conclusão que Deus, em nossa visão limitada, não era uma pessoa, Deus era uma lei, a lei de todas as leis, uma meta-lei, uma coisa cósmica, inimaginável”.

Ficou feliz ao saber que Spinoza, um de seus autores preferidos, havia definido Deus como a substância do universo. “Bateu comigo, dá mesma chamar de substância ou de lei”. A diferença é que Spinoza, judeu, foi apedrejado na sinagoga ao dizer o que pensava. Vidal continua ileso, e dizendo o que pensa. “Acho um absurdo existir teólogo; o homem não sabe nem que é ele mesmo e vai se meter a estudar Deus? É muita arrogância”.

É com esse tom crítico que examina a construção social do conhecimento em seu livro mais recente, Processo do Processo (Editora Átomo), uma espécie de síntese filosófica que atravessa vários temas cujo interesse ultrapassa os muros da academia. “Acredito que haja um processo, em sua essência natural e até mesmo biológico, nos caminhos que levaram e levam a humanidade a produzir conhecimento”, considera o cientista, para logo em seguida questionar: “mas existiria um processo do processo que conduz o homem a saber?” A partir desta pergunta, Vidal desfiará uma linha de raciocínio que penetrará cada vez mais fundo no próprio espírito humano.

Ora severo, ora irônico, mas sempre provocador, o cientista examina aspectos delicados, como a influência de elementos ideológicos na evolução científica: “Parece-me que, cada vez mais, será impossível não se incorporar o conteúdo ideológico em um processo de gerar conhecimento”. Ao falar sobre a aplicação ética do conhecimento, Vidal é enfático: “O conhecimento gera a imperiosidade ética de informar, de assumir posições; o silêncio pode ser extremamente pernicioso, porque esconde a ignorância, acoberta a conveniência e a irresponsabilidade”. Para ele, a ciência que gera conhecimento tem de comunicá-lo e submeter-se ao controle e às provas de autenticidade. “Quem sabe, não esconde: mata a cobra e mostra o pau”.

Dependência – Gentil no trato e nas palavras, Vidal só ameaça perder a paciência quando fala da produção de conhecimento no Brasil. “Há um grande perigo de alguém chegar e dizer: vocês perderam o bonde da história”. O professor não tem dúvidas: a ciência no Brasil é dependente. “Veja a biologia molecular. Só se fala em manipulação do DNA, mas o Brasil é importador de kits. Ficam bombeando pipetas importadas mas não têm o espírito que está por trás disso. São cientistas dependentes da tecnologia desenvolvida lá fora”. E dispara: “Se o Beethoven nascesse na Amazônia, ele tocaria no máximo berimbau”.

Para Vidal, não se pode tratar o problema pela rama. “A academia sozinha não faz nada, é preciso a sociedade acordar”. Mas o mundo acadêmico também não passa em branco: “Não adianta dizer que tem tantos trabalhos publicados; eu tenho 186 trabalhos publicados, sou citado quase mil vezes, mas isso não encerrou a minha vida científica”. Obstinado, diz que continuará trabalhando. “Preciso alargar as idéias e analisar os reflexos em torno da sociedade”. Depois de passar dois anos sem ir ao exterior, ele avisa: “Pretendo sair este ano para sentir como estão as cabeças lá fora”. E que ninguém se espante se, ao retornar, alguma novidade científica faiscar de novo em seu cérebro. Seja sonhando ou acordado.

 

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