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Estudo preenche lacuna na bibliografia
cinematográfica ao passar em revista filmes sobre o cangaço

Do clarão dos tiros ao escuro do cinema

MANUEL ALVES FILHO

Marcelo Dídimo Souza Vieira, autor da tese: catalogação de cerca de 50 filmes, entre documentários, curtas, médias e longas-metragens (Fotos: Divulgação)O cangaço, um tipo de banditismo social ocorrido na região Nordeste do Brasil entre 1870 e 1940, constituiu-se em um dos mais autênticos gêneros do cinema nacional. Ao longo do tempo, o movimento histórico foi retratado de diferentes formas em inúmeros filmes, sendo que alguns deles marcaram a produção brasileira na área e obtiveram repercussão internacional. Os dados constam da tese de doutoramento em Multimeios de Marcelo Dídimo Souza Vieira, apresentada ao Instituto de Artes (IA) da Unicamp. O trabalho, orientado pelo professor Március Freire, surge para preencher uma lacuna da bibliografia cinematográfica brasileira, que até então reservara ao cangaço breves referências.

Graduado na área de informática, Dídimo conta que sempre teve interesse em pesquisar aspectos ligados ao cinema nacional, particularmente o tema do cangaço. No trabalho de mestrado, também desenvolvido no IA, ele investigou o gênero no contexto da chamada retomada do cinema brasileiro, ocorrida na década de 90. Dessa forma, o estudo concentrou-se em três produções: O Cangaceiro (1997), remake de uma obra rodada originalmente em 1953; Baile Perfumado (1997) e Corisco e Dada (1996). Durante a elaboração da dissertação, o pesquisador constatou que praticamente inexistiam documentos bibliográficos sobre o movimento histórico no cinema.

Cena de Deus e o Diabo na Terra  do Sol (1964), de Glauber Rocha: abordagem ideológica (Foto: Divulgação)Segundo ele, não havia um livro sequer que abordasse o assunto de forma aprofundada. “No máximo, o cangaço era tratado em um ou outro capítulo”, conta. Foi por causa dessa lacuna que Dídimo decidiu ampliar a pesquisa sobre o fenômeno histórico e cultural em sua tese de doutorado. No trabalho, foram catalogados perto de 50 filmes, entre documentários, curtas, médias e longas-metragens, cujas produções ocorreram entre as décadas de 20 e 90. O pesquisador esclarece que foram selecionadas apenas as obras que tiveram o cangaço como tema central ou que apresentaram personagens que participaram daquele contexto e influenciaram diretamente nas narrativas.

Dentre os filmes tomados para análise, explica Dídimo, alguns não existem mais, pois se perderam no tempo. Outros estão inacessíveis em acervos oficiais e cinematecas, em razão do seu precário estado de conservação. “Entretanto, consegui localizar 29 dessas obras, das quais fiz cópias e as analisei”, relata. De acordo com o pesquisador, o cangaço é retratado de diferentes formas nessas produções. No original de O cangaceiro, por exemplo, o integrante desse movimento rebelde tem a imagem associada à do caubói norte-americano. No longa-metragem, os cangaceiros aparecem montados em cavalos, animais que não faziam parte da realidade do sertão nordestino naquele período.

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), ambos de Glauber Rocha, o tema merece uma abordagem ideológica e simbólica. Já na década de 70, quando predominaram as produções classificadas como pornochanchadas, o cangaço é retratado de forma debochada. A figura do cangaceiro passa a servir somente como mote para as comédias eróticas brasileiras. Dídimo destaca que dividiu sua tese em seis capítulos. No primeiro, ele aborda o que chama de “primórdios” dos filmes de cangaço, realizados no início do século 20, época em que o movimento ainda era praticado no sertão nordestino.

Cena de Baile Perfumado (1997): produções da "retomada" são analisadas (Foto: Divulgação)A primeira obra a fazer referência ao cangaço, conforme o pesquisador, é Filho sem Mãe, produção pernambucana de 1925. Embora não possa ser considerado essencialmente um filme sobre o movimento histórico, ele mostra cangaceiros ao longo da sua narrativa. Desse período, assinala o autor da tese, somente as imagens de Lampião, o Rei do Cangaço, de Benjamin Abrahão, rodado por volta de 1936, sobreviveu ao tempo. É a única peça cinematográfica de que se tem notícia que traz cenas reais de Virgulino Ferreira da Silva. Abrahão, de acordo com Dídimo, era um mascate libanês que atuava como secretário do padre Cícero Romão Batista, o “Padim Ciço”.

Em razão de suas atividades, ele mantinha inúmeros contatos, tanto com coronéis quanto com cangaceiros. Por conta desses relacionamentos, Abrahão finalmente conseguiu registrar cenas de Lampião e seu bando no sertão. As tomadas, que duram cerca de 15 minutos [não se sabe se ele conseguiu filmar por mais tempo], mostram os cangaceiros em situações cotidianas: comendo, cantando, escrevendo etc. Em 1937, a fita produzida pelo mascate libanês foi apreendida pela polícia, a mando do governo Vargas, por ser considerada uma afronta aos princípios da nacionalidade. Um ano depois, Lampião e Abrahão morreram. “O filme, então, desaparece e só é localizado em 1957. O sonho de Abrahão era filmar um combate entre os cangaceiros e os soldados da volante. Como isso não foi possível, o mascate pediu a Lampião que simulasse um confronto, que está registrado na película”, relata Dídimo.

No segundo capítulo, o pesquisador analisa os filmes produzidos sob a influência do western norte-americano. É nesse período, no entender de Dídimo, que o cangaço se estabelece como gênero cinematográfico. O marco dessa fase, como já foi dito, é O cangaceiro. No capítulo seguinte, o autor da tese trata das obras que trabalharam o movimento histórico de forma cômica. Nelas, a figura do cangaceiro é satirizada por comediantes como Ankito, Ronald Golias, Grande Otelo, Mazzaroppi e Os Trapalhões. Nesse segmento também estão incluídas as já mencionadas pornochanchadas. O quarto capítulo é reservado para os documentários históricos. Entre eles está contemplado o filme de Benjamin Abrahão.

Lampião com integrantes de seu bando: "rei do cangaço" (Foto: Divulgação)Embora tenha feito somente dois filmes sobre o cangaço, Glauber Rocha merece todo o quinto capítulo da tese de Dídimo. “Ele, como ninguém, soube trabalhar o cangaço de forma simbólica e alegórica, sendo considerado um dos realizadores mais entusiastas do Cinema Novo”, justifica o autor. O último capítulo aborda as produções dos anos 90, no contexto da chamada retomada do cinema brasileiro. “Nessa fase, a temática do cangaço volta às telas através de releituras sobre o assunto e de outros filmes que abordaram essa questão em épocas passadas”, afirma o pesquisador.

De modo geral, reforça Dídimo, o cangaço não foi retratado de uma única forma nos filmes analisados. “Se num primeiro momento os integrantes desse movimento histórico eram mostrados como bandidos sanguinolentos, com o tempo passaram a criar certa humanidade. Algumas obras, inclusive, destacaram o lado ‘nobre’ dos cangaceiros, associando-os, ainda que indiretamente, à figura de Robin Hood, o ladrão que roubava dos ricos para dar aos pobres. Em outras palavras, não há predominância de uma visão: o cangaço e os cangaceiros, segundo a cinematografia brasileira, não são nem completamente maus, nem completamente bons”.

Questões fundiárias
originaram movimento


A expressão cangaço deriva de canga, peça de madeira que se coloca no pescoço do animal para puxar o carro-de-boi. O nome também foi atribuído ao conjunto de equipamentos que o bandido sertanejo carregava consigo, que era bastante volumoso. O cangaceiro, portanto, era o homem que andava “debaixo da canga” ou “vivia da canga”, tendo que estar sempre disponível ao seu senhor. Posteriormente, o cangaço passou a ser um modo de vida.

O cangaço teve como cenário o Nordeste do Brasil, no período compreendido entre 1870 e 1940. O movimento histórico tem suas origens em questões sociais e fundiárias da região, caracterizando-se por ações violentas de grupos que assaltavam fazendas, seqüestravam coronéis e saqueavam comboios e armazéns. Os cangaceiros não tinham moradia fixa. Viviam perambulando pelo sertão, praticando crimes e fugindo da polícia.

O primeiro bando independente foi formado no início da década de 1870, e teve como líder Inocêncio Vermelho. Este havia cometido um crime na Paraíba e fugido para a região do Cariri, no Ceará, onde se juntou a outro criminoso, João Calangro. Em meados de 1876, Inocêncio foi morto pela polícia e seu companheiro assumiu o comando do grupo. Calangro se orgulhava de ter cometido 32 assassinatos, sem que qualquer processo fosse tentado contra ele.

O cangaceiro mais famoso foi Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, também conhecido como “governador do sertão” e “rei do cangaço”. O codinome Lampião teria surgido após um combate do seu bando com os soldados da volante. Em razão dos tiros disparados durante o conflito, a espingarda de Virgulino teria emitido um clarão semelhante ao de um lampião.

Depois de duas décadas de atividades no sertão nordestino, o cangaceiro foi morto no dia 28 de julho de 1938, em Angicos, Sergipe, por conta de uma emboscada. Com ele tombaram a sua mulher, Maria Bonita, e mais nove companheiros. Todos os corpos foram decapitados, e as cabeças expostas para observação pública. Depois, foram levadas para Maceió e Salvador. Até a década de 1970, os órgãos foram mantidos como “objetos de pesquisa científica” no Instituto Médico Legal da capital baiana.

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