Marco Aurélio Cremasco começa assim Histórias prováveis, o conto que dá título ao livro trazendo nove outros, sendo finalizado com uma novela. Ao abrir uma pasta amarela, o autor não vai relatar histórias convencionais. “Este é o primeiro conto e se torna um aviso do que está por vir no livro em termos de estruturação. História provável é aquela com chance de acontecer, mas o leitor pode se deparar com situações à beira do absurdo”, adianta.
Cremasco recorre ao surreal para que a gente caia na real, refletindo sobre a rotina escravizante da vida contemporânea. Em As leveduras, ele, que é professor da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp, usa esta formação para dar verossimilhança ao ambiente e ao processo de produção da Destilaria Mais Álcool (Demal).
“Depois, começa o delírio”. O encarregado da cuba de fermentação é atingido por uma corrente de gás recheado de leveduras. Assim, o infeliz transforma-se em um mutante que inicia a contaminação de todos na destilaria, na cidade e no país, através de um beijo. No fim, só restarão as unicelulares leveduras, pois elas comerão tudo, inclusive o abrigo humano.
“Escrevi As leveduras na época dos mais de 90% dos automóveis movidos a etanol. É uma feliz coincidência que os biocombustíveis estejam em voga agora, mais de 25 anos depois. A substituição da energia não-renovável por energia limpa é bem-vinda, mas no conto aflora o questionamento: qual o preço a ser pago por ela?”, observa o autor.
A onça-parda, que a queimada expulsa da mata, passa por fazendas, postos de polícia, e circula tranquilamente por praças, bancos, igrejas e repartições públicas de uma metrópole. Reage com desdém às futilidades e mazelas expressadas pelas pessoas. Quando sente fome, ataca a viúva senil, o menino de rua atordoado pelo crack, sempre despercebida.
“É um conto que trata da falta de ação das pessoas diante dos acontecimentos, por mais graves e por mais próximos que estejam. Não sei se estamos cansados e desiludidos. Talvez o torpor venha de outra pergunta: o que eu posso fazer? Enquanto isso, a onça-parda ronda por aí, alimentando-se da indiferença de todos nós”, aponta Cremasco.
Um professor universitário é o personagem de A teoria do enroscamento, que durante um sonho se vê no céu, onde um anjo mal-encarado mostra a sua colocação no “pecadômetro”, entre Oscar Wilde e o Marquês de Sade. Esperança é aquela que morre, acaba com a chave da porta do Céu nas mãos e deixa todo mundo entrar, enquanto São Pedro vai ao banheiro.
Em A paixão segundo qualquer pecado, personagens bíblicos da passagem da paixão de Cristo ganham características dos sete pecados capitais: Avareza, Gula, Inveja, Ira, Preguiça, Luxúria e Soberba. Pilatos, quem seria? E Judas?
“Na novela A importância de ser Oscar, o personagem sou eu, realizando o pós-doutorado nos Estados Unidos, o que efetivamente aconteceu”, conta Cremasco. O inusitado começa quando ele tropeça dentro de uma livraria e é amparado por Oscar Wilde. “Iniciamos um diálogo intenso, sendo que em suas respostas ele assume a personalidade de seus personagens”.
O autor menciona que esta novela ou “um conto mais extenso”, como gosta de denominá-la, exigiu uma dedicação redobrada. “Li boa parte da obra de Wilde na língua original: seu romance, poemas, peças teatrais e estudos críticos, para que as intervenções do escritor irlandês procurassem conservar a densidade e a agilidade mental que lhes são peculiaridades. Foi um embate. Ele é genial”.
A dificuldade de escrever é a temática de O livro de Geografia, conto que Cremasco idealizou logo depois concluir o acadêmico Fundamentos de transferência de massa (Editora da Unicamp, 1998). “Este livro tem 740 páginas e, no final, eu me perguntei se tinha escrito tudo o que me era possível”.
Por causa dessa dúvida é que o personagem Teo, cujo desejo era o de elaborar um livro perfeito sobre geografia universal, foi sendo sucessivamente desestimulado, por falta de conhecimento, a escrever sobre a geografia do sistema solar, da Terra, das Américas, da América do Sul, do Brasil e mesma da sua cidade natal, Guaraci, no Paraná, de menos de 10 mil habitantes.
“No final, Teo dá-se conta da filha grávida, da filha da filha também grávida, da mulher idosa e dos sulcos da sua própria face, por onde correram lágrimas como os rios que nunca navegara. Percebe que não escrevera absolutamente nada e que a sua vida fora uma eterna busca”, resume o professor.
Aval da crítica - Marco Aurélio Cremasco afirma que Histórias prováveis foi uma nova oportunidade para testar a prosa, visto que sempre esteve mais afeito à poesia. O autor, contudo, costuma se dar bem quando ousa, como no romance Santo Reis da Luz Divina, vencedor do Prêmio Sesc de 2003 e indicado ao Jabuti de 2005. “É um romance que mistura história com uma saga familiar, em que os diálogos, a narração e a descrição compõem o mesmo corpo textual. Tal estrutura foi mantida neste livro de contos”.
Sobre Santo Reis, Wilson Martins, considerado um dos mais respeitados e importantes críticos brasileiros em atividade, escreveu: “Trata-se de um romance histórico modelar, estruturado com extrema complexidade, perfeito domínio da matéria e estilo ao mesmo tempo espontâneo e de alta qualidade. O autor tornou homogêneas a ficção e a realidade, sem cair no erro de expor os fatos de forma didática e informativa”.
SERVIÇO
Título: Histórias prováveis
Autor: Marco Aurélio Cremasco
Páginas: 160
Preço: R$ 27,00
Editora: Record