PAULO
CÉSAR NASCIMENTO
Quase
uma década de envio de satélites
e robôs para prospectar o planeta Marte
permitiu aos cientistas confirmar que algumas
regiões da superfície do planeta
já foram cobertas por água e tiveram
ambiente propício à existência
de vida. A conclusão aguçou ainda
mais a curiosidade dos que se debruçam
sobre os mistérios do astro e só
fez intensificar os esforços para determinar
se, de fato, o avermelhado corpo celeste alguma
vez abrigou seres vivos. Agora, a busca de evidências
tem como parâmetros achados mineralógicos
em terrenos brasileiros e inclui a participação
de um pesquisador do Instituto de Geociências
(IG) da Unicamp.
Carlos Roberto Souza Filho, professor de Geologia,
é o único representante de instituições
de pesquisa latino-americanas em um ambicioso
projeto financiado pela Nasa (agência
espacial norte-americana) para identificar na
constituição geológica
marciana, a partir de sensores a bordo de satélites
e robôs automatizados, características
análogas às formações
rochosas da Terra que abrigaram estruturas biológicas
muito primitivas.
A
Serra dos Carajás, no Pará, maior
reserva mundial de minério de ferro,
é também o sítio mineralógico
com um dos mais antigos vestígios de
vida no mundo. Seu manancial geológico
é objeto das pesquisas de Carlos. Ele
e os demais integrantes do programa acreditam
que a comparação de ambientes
entre os dois planetas ajudará a encontrar,
em Marte, locais onde possa ter existido vida
num passado distante ou mesmo onde possa existir
atualmente algum tipo de organismo.
Bandas
– Por meio de pesquisas de campo
e de técnicas de sensoriamento remoto,
Carlos estuda uma formação ferrífera
denominada jaspelito, rocha que dá origem
ao minério de ferro explorado desde a
década de 80 pela Companhia Vale do Rio
Doce na Serra dos Carajás. Essas rochas
formaram-se há 2,75 bilhões de
anos, período de constituição
dos grandes continentes do planeta conhecido
como Precambriano. Visualmente, diferenciam-se
por apresentar em sua composição
bandas avermelhadas e bastante definidas de
quartzo, intercaladas por bandas de minerais
de ferro, como hematita.
Segundo o professor, essa forma de deposição
mineral pode ter sido influenciada pela ação
de um ambiente marinho, tese reforçada
por outro peculiar achado relacionado ao jaspelito
de Carajás: o minério encontra-se
intercalado por basalto, uma rocha magmática
que, nesse caso, muito provavelmente formou-se
a partir de erupções vulcânicas
submarinas, com extravasamento de lava e resfriamento
pela ação da água do mar.
“Esse ambiente geológico caracterizado
pela intercalação de rochas vulcânicas
basálticas com rochas sedimentares do
tipo formações ferríferas
bandadas, muito provavelmente existe em Marte”,
salienta Carlos. “Boa parte dos terrenos
marcianos são cobertos por basaltos,
mas a confirmação de analogia
depende da associação com jaspelitos.
Se isso for verificado é grande a chance
de encontrarmos um ambiente que teria sido propício
à formação de alguma vida
primitiva”, observa.
Vida
na rocha – Outro detalhe capaz
de reforçar essa possibilidade é
o fato de já terem sido identificados
organismos unicelulares muito primitivos em
amostras de jaspelito, conforme descrição
de um ex-aluno de doutorado do IG, Joel Macambira.
Atualmente professor da Universidade Federal
do Pará, Joel analisou estruturas esferoidais
milimétricas (14-27 mm) contidas nas
formações ferríferas, com
núcleo de hematita (2-4 mm), circundados
por quartzo microcristalino (“chert”),
que por sua vez são envoltos por um halo
de hematita. O pesquisador interpretou essas
estruturas como cianobactérias (micróbios
que fazem fotossíntese) fossilizadas
na rocha.
Essas
espécies de algas microscópicas
também foram identificadas por pesquisadores
na Austrália em sedimentos ainda mais
antigos do que Carajás. Lá, em
rochas com idade estimada em 3,5 bilhões
de anos, encontraram estromatolitos, estrutura
semelhante ao limo produzida por micróbios.
A diferença entre os dois achados, explica
Carlos, está no seguinte: não
há ainda um consenso científico
de que a formação dessas estruturas
contidas no jaspelito de Carajás, conforme
descrito por Joel, seja resultado de ação
bacteriana. Para uma corrente de geólogos,
a deposição do ferro depende da
disponibilidade de oxigênio, cuja origem
seria produto de fotossíntese bacteriana.
Já para outra, o fenômeno da deposição
mineral pode ocorrer exclusivamente de forma
química, sem depender de bactérias.
Em relação aos estromatolitos
australianos, contudo, não há
qualquer controvérsia: eles têm
origem comprovadamente biológica. Por
isso, a grande expectativa agora é tentar
verificar a presença desses organismos
nas formações ferríferas
de Carajás, a exemplo do achado australiano.
“Estromatolito é prova sine qua
non de evidência biológica. Se
confirmarmos essa cianobactéria em jaspelito
tão antigo quanto o de Carajás,
será um dos poucos achados nesse tipo
de rocha no mundo. E o fato de existir organismos
associados a essa rocha em particular acentua
de maneira muito séria a chance de existir
vida em formações análogas
que venham a ser encontradas em Marte”,
ressalta o pesquisador da Unicamp.
Assinaturas
espectrais identificam sedimentos
O trabalho de Carlos e dos
demais pesquisadores que integram o programa
Estudo de Ambientes Análogos Terra-Marte
consiste em extrair das rochas informações
mineralógicas do ponto de vista espectral.
Ou seja, detalhes a respeito de sua composição
são obtidos por meio de sensores específicos
e transformados em dados matemáticos
distintos para as diferentes formações
encontradas no universo mineralógico.
Essas assinaturas espectrais é que permitem
identificar esses sedimentos mesmo sem tocá-los,
a partir de sensores posicionados a distâncias
que podem variar de poucos centímetros
a 700 quilômetros, como ocorre nos satélites
de prospecção.
Como ainda não é possível
empreender pesquisa de campo fora da Terra,
é graças a esse recurso tecnológico
batizado de sensoriamento remoto que tem sido
possível conhecer, com riqueza de detalhes,
aspectos da constituição geológica
de Marte. As sondas orbitais e os robôs
em operação em solo marciano são
alimentados com bancos de dados espectrais das
formações rochosas de interesse
dos cientistas, e mais do que as imagens de
alta resolução da superfície
– as sondas orbitais atuais conseguem
imagear objetos de até 25 centímetros
–, são essas informações
que permitem aos aparatos teleguiados encontrar
e identificar formações similares
às da Terra, ainda que estejam parcialmente
expostas em terrenos marcianos, comparando os
dados geológicos armazenados com aqueles
coletados por sensores cada vez mais sensíveis.
A crença de que Marte sempre foi desértico,
por exemplo, só mudou depois que a interpretação
das informações enviadas pelos
sensores espectrais a bordo de sondas orbitais
e robôs, que vasculharam a superfície
marciana nos últimos anos, permitiu identificar
evidências incontestáveis da presença
de água líquida no passado de
Marte, como a existência de minerais de
argila e sulfatos (que somente se formam na
presença de água líquida),
além de traços físicos
devido à erosão por fluxo de água.
Agora, para descobrir a existência de
jaspelito em Marte e – torcem os cientistas
– a presença de cianobactérias
capaz de evidenciar a existência de vida,
será necessário municiar sondas
e robôs com os dados espectrais dos achados
em Carajás e na Austrália.
“Se conseguirmos identificar em alguma
região do solo marciano um conjunto similar
dos elementos que encontramos aqui na Terra,
ou seja, os mesmos minerais, a mesma assinatura
espectral, a intercalação de formações
ferríferas com rochas basálticas,
aí teremos que concentrar e aprofundar
as observações das futuras missões
nessa área, porque seria o achado que
mais se aproximaria de uma evidência de
vida primitiva em Marte”, defende Carlos.
“Isso tem uma série de implicações.
Uma das mais drásticas é que a
probabilidade de existir vida em outras planetas
aumenta astronomicamente se encontrarmos alguma
evidência de vida em Marte”, sentencia.
Grupo de Ciências
Planetárias da Unicamp é o único
do país
Além do laboratório
montado no IG da Unicamp, a análise espectral
das amostras do projeto ocorre simultaneamente
em outros dois centros de investigação:
no Jet Propulsion Lab (o laboratório
de propulsão a jato da Nasa, responsável
pelas missões a Marte) e no Serviço
Geológico norte-americano, de forma a
assegurar que os resultados sejam semelhantes
nos três e possam ter a confiabilidade
necessária. Outras instituições
integrantes do programa são a Universidade
do Arizona e o Instituto SETI (Search for Extraterrestrial
Intelligence) dos EUA.
O projeto conta com recursos anuais da ordem
de US$ 1,5 milhão e nasceu há
dois anos quando alguns pesquisadores, entre
os quais Carlos, decidiram unir suas expertises
em sensoriamento remoto para estudar regiões
geológicas muito antigas no mundo todo
e utilizar os resultados para a busca de ambientes
análogos em outros planetas.
Contribuiu decisivamente para o ingresso do
professor da Unicamp no seleto grupo de oito
cientistas do programa as pesquisas pioneiras
que ele desenvolve em uma área da Geologia
praticamente incipiente no Brasil: as Ciências
Planetárias.
“Um dos braços desse ramo científico
é a formação dos planetas,
que envolve, de A a Z, processos geológicos”,
justifica o especialista. “Os processos
que ocorreram na história evolutiva tanto
de Marte como da Terra são processos
essencialmente geológicos e, portanto,
similares”, esclarece o responsável
pela criação, há quatro
anos, na Unicamp, do único grupo de Ciências
Planetárias dentro da área de
Geociências no País.
Além das pesquisas com formações
ferríferas que remontam a períodos
muito primitivos de nossa história geológica,
a equipe internacional também estuda
formações representativas de outros
períodos evolutivos da Terra e de Marte
com o intuito de identificar possíveis
formas de vida. Exemplo são os lagos
secos do Vale da Morte, ou Death Valley, uma
árida depressão geográfica
localizado ao norte do Deserto de Mojave, nos
Estados Unidos, Estado de Califórnia.
Trata-se de um tipo de superfície já
observado em solo marciano, em áreas
que corresponderiam ao período mais recente
de sua evolução.