Se logo nos vem a imagem explícita de Carlos Marighella e outros brasileiros recebendo treinamento de guerrilha na ilha, o autor adverte que procurou oferecer uma dimensão bem maior da influência cubana. “Temos uma tradição historiográfica de explicar a história dos grupos de esquerda a partir de influências da Rússia, da China e depois de Cuba. Discordo. Acho necessário entender essa história a partir das questões nacionais”.
Jean Sales quer dizer, com isso, que o Brasil dos anos 1960 também foi palco de suas lutas sociais e havia grande politização da sociedade, deixando subentendido que a influência de Cuba não se deu estritamente sobre a esquerda. “Quando saiu vitoriosa em 1959, a revolução cubana ainda não tinha se assumido como socialista”.
O historiador lembra que mesmo os Estados Unidos, a princípio, viram com bons olhos aqueles jovens barbudos, que tinham derrubado um ditador (Fulgêncio Batista) e promoveram a reforma agrária, reduziram os aluguéis na cidade e impuseram certo controle dos preços dos alimentos básicos. “Exatamente o que os nossos setores progressistas queriam”.
Naquele momento, diz o autor, havia um grande debate em torno de uma “revolução” no Brasil, embora esta não implicasse em rompimento institucional e econômico. “Mas o tema era curiosamente atual: como resolver os impasses na economia e na política, incorporar a massa de não-cidadãos ao mercado de trabalho, promover a reforma agrária”.
Liberais de esquerda e de direita e inclusive a conservadora UDN pregavam esta revolução, obviamente por caminhos diferentes. “Muita gente apontava Cuba como caminho. Entre 1960 e 61 foram publicados mais de dez livros sobre a revolução cubana no país, traduzidos ou de autores brasileiros”.
Jânio Quadros, então presidente, teve sua trajetória política marcada também pelo apoio dado a Fidel Castro depois da fracassada tentativa de invasão da Baía dos Porcos pelos norte-americanos e, sobretudo, por convidar Che Guevara a vir ao Brasil para receber a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul.
Ligas Camponesas Jean Sales registra outro episódio, que julga fascinante, mas também desprezado na historiografia: a tentativa das Ligas Camponesas de criar campos de treinamento de guerrilha no Brasil, ainda durante o governo Goulart. “As Ligas foram o primeiro grupo a enviar militantes para Cuba, em 60 e 61. Entrevistei um dos líderes, Clodomir Santos de Morais, que hoje mora em Porto Velho”.
Segundo o autor, as Ligas Camponesas surgiram em 1955 no Engenho da Galiléia, interior de Pernambuco, inicialmente apenas como um grupo de assistência mútua. “Pessoas morriam e as famílias não tinham dinheiro para o caixão. A idéia era criar um fundo. Depois, começaram a implorar uma tímida reforma agrária aos políticos”.
No entanto, o contato com Cuba provou uma transformação, com a entrada em cena da figura de Francisco Julião. “A palavra de ordem passou a ser ‘reforma agrária na lei ou na marra’. Os militantes voltaram e montaram uma estrutura de treinamento no interior de Goiás, em 1961. O Exército soube da movimentação e desbaratou tudo”.
Sales observa que este episódio ilustra a força e o tipo de influência que a revolução cubana exercia no país e, por outro lado, questiona uma vertente de historiadores (e também de ex-militantes), segundo a qual a luta armada surgiu para derrubar a ditadura. “Olhando para o passado, essa vertente fala em resistência democrática, quando havia um projeto claro de revolução socialista”.
O golpe e a inflexão Na visão do historiador, quando veio o golpe militar e não se viu qualquer resistência, a esquerda brasileira percebeu algo de errado e viveu um momento de inflexão na sua história. “Era um período de expansão das lutas populares Prestes dizia que o PCB estava praticamente no poder e sabia-se que iria acontecer mais um golpe, como outros nos dez anos anteriores. Mas todo mundo ficou parado”.
Foi então que uma parte importante da esquerda optou por pegar em armas, recorda Jean Sales, ainda assim levando em conta seus projetos políticos e buscando exemplos como na China, no Vietnã, na guerra de independência da Argélia. “Mas Cuba estava aqui perto, com uma história semelhante e as figuras emblemáticas de Fidel e Che. Aí, sim, houve a clara influência dos cubanos na luta armada”.
A organização mais identificada com o ideário da revolução cubana foi a Aliança Libertadora Nacional (ALN), de Marighella, líder que serve como exemplo da mudança de postura da esquerda. “Ele foi expulso do PCB quando estava em Cuba, para onde viajou por conta própria porque o partido negou-se a participar da reunião da Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas), que criticava os fundamentos de ortodoxia marxista”.
Sales explica que, para os partidos comunistas, eles eram a vanguarda do proletariado e uma revolução só poderia acontecer a partir deles. “De acordo com os cânones do comunismo latino-americano, naquele momento o caminho para a revolução deveria ser o pacífico porque a democracia estava em expansão no continente. A guerrilha em Cuba, na prática, mostrou o oposto”.
Foquismo Marighella permaneceu um ano na ilha, em contato direto com Fidel e Che Guevara. Na volta, criou imediatamente um agrupamento comunista, que logo se transformou na ALN. “Ele trouxe a idéia do foquismo: formar um grupo para a luta armada que serviria como ‘o pequeno motor que ligaria o grande motor que são as massas’. A ALN foi a primeira organização a praticar ações armadas no país, a partir de 1967”.
Jean Sales ressalta o discurso de Marighella de que a ALN não seguia a cartilha cubana, apesar de receber influência, treinamento e inclusive algum financiamento. “Sua preocupação, assim como de outros grupos armados, era adaptar o foquismo que obteve sucesso em Cuba, uma ilha, à realidade política, econômica, social e geográfica do Brasil, um país continental”.
A ALN propunha a guerrilha móvel, pois a fixação do grupo em qualquer ponto do país significaria sua destruição. O objetivo inicial era amealhar dinheiro com ações armadas na área urbana e depois partir para o campo, criando colunas móveis guerrilheiras. “Acabaram massacrados na cidade. O próprio Marighella foi morto na alameda Santos, em São Paulo”.
Caso PCdoB Uma visão nova e polêmica apresentada por Jean Sales envolve o PCdoB, que inspirado no maoísmo defendia a revolução como uma guerra prolongada e feita com o povo. “Seus militantes achavam que as ações armadas no Brasil eram uma aventura, pois o imperialismo jamais permitiria que se repetisse uma revolução como a de Cuba no continente”.
O historiador recorda, porém, que desde 1967 um pequeno grupo de militantes do PCdoB vivia na região do Araguaia, no sul do Pará, prestando assistência aos moradores, mas sem realizar junto a eles um trabalho de engajamento político, temendo ser identificado pela ditadura.
Descobertos e sem o apoio da população, os militantes refugiaram-se na mata até a maioria ser morta pelos soldados. “O Exército demorou a admitir a Guerrilha do Araguaia, pois muitos moradores também foram torturados e mortos. José Genoíno, um dos sobreviventes, foi processado por subversão e não por participação na guerrilha”.
Da mesma forma, segundo Jean Sales, o PCdoB não reconhece em sua história que o aquele grupo demonstrou o mesmo voluntarismo dos jovens da chamada esquerda revolucionária. “Em minha opinião, o PCdoB protagonizou um das mais importantes casos de foquismo, o último da luta armada no Brasil”.
Românticos, mas sérios e éticos
Em seu livro, o historiador Jean Sales dispensou a linguagem acadêmica, preocupando-se em atingir a adolescentes e jovens, além de professores do ensino médio. A luta armada contra a ditadura militar A esquerda brasileira e a influência da revolução cubana vai ser lançado no dia 1º de junho, com um debate marcado para as 14 horas, no auditório do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
A linguagem acessível ajuda o autor em outro propósito: “O livro polemiza diretamente com a visão enviesada de hoje de que a luta armada no Brasil foi protagonizada por jovens românticos, tolos, que perderam suas vidas inutilmente. É preciso lembrar que, além do voluntarismo próprio da juventude, havia um projeto político sério e ético”.
Sales espera que o livro contribua na compreensão do contexto dos anos 60 e na reflexão sobre as idéias que levaram jovens a pegar em armas contra a ditadura militar. “Pode-se discordar do projeto político, mas não esvaziá-lo. Vivemos uma época muito pobre em termos de lutas sociais, quando grupos que pensam em modificar a sociedade e trabalhar pelo comum são tidos como utópicos”.
O autor observa que, no auge da ditadura, foram derrotados tanto os jovens românticos como os setores da esquerda brasileira que escolheram outros caminhos. “Os sobreviventes continuam entre nós, fazendo cada um a sua política”.