RAQUEL DO CARMO SANTOS
Identificar talentos para a pintura em um hospital psiquiátrico, nos anos de 1940, em meio a mais de dois mil internos, não era tarefa das mais fáceis. Um desses artistas, Raphael Domingues, talvez tivesse seus dotes reconhecidos com facilidade, pois antes de sua internação freqüentara uma escola de belas artes. Muitos dos usuários dependiam do olhar atento do artista plástico Almir Mavignier, à época um simples monitor do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Sua obstinação e perspicácia na tarefa de fazer essa prospecção contribuíram para a notoriedade alcançada por muitos pacientes. Contando com o apoio incondicional da responsável pela área de terapêutica ocupacional do hospital, a psiquiatra alagoana Nise da Silveira, Mavignier implantou um ateliê de pintura nas dependências da instituição, dando origem ao Museu de Imagens do Inconsciente. Os primórdios dessa história acabam de ser passados a limpo.
"O objetivo desta pesquisa foi investigar os primeiros anos [1946 a 1951] do ateliê de pintura do ponto de vista dos artistas plásticos envolvidos, bem como a sua repercussão no campo das artes", revela o terapeuta ocupacional José Otávio Motta Pompeu e Silva, autor do estudo que originou a dissertação de mestrado A psiquiatra e o artista: Nise da Silveira e Almir Mavigner encontram as imagens do inconsciente, apresentada ao Instituto de Artes da Unicamp (IA) e orientada pela professora Lucia Helena Reily.
Para fundamentar sua pesquisa, o autor coletou dados por meio de entrevistas com pessoas que participaram do início do ateliê, analisou gravações em vídeo do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, além de fazer uma revisão bibliográfica que incluiu consulta a jornais e revistas da época.
O estudo sugere que o fato de um artista plástico desenvolver os trabalhos no ateliê no âmbito psiquiátrico representa um diferencial nos resultados. “Concluímos que este ateliê de pintura faz parte do mosaico da história da arte no Brasil, e que seu estudo mais sistemático nas diversas fases pode trazer contribuições para reflexões interdisciplinares nos campos da arte, da saúde mental e da educação”, observa o terapeuta ocupacional.
Reconstituição “A literatura já mostrou como a psiquiatra Nise da Silveira, uma das mais importantes personalidades femininas do século passado no Brasil, associou-se ao jovem artista Almir Mavignier para criar um ateliê que usava a arte como recurso terapêutico no tratamento de um grupo de internos do hospital psiquiátrico. O que fiz foi reconstituir partes ignoradas desta história, entre as quais como os internos foram convidados a freqüentar o ateliê, a atuação de Mavignier no desenvolvimento das atividades de arte, e como se deu a confluência de outros artistas ao Engenho de Dentro. Eles foram instigados pela produção plástica dos pacientes psiquiátricos e pela organização de exposições em espaços culturais, bem como em eventos de saúde mental”, descreve Pompeu e Silva na apresentação do trabalho, que procurou mostrar também os processos por meio dos quais os críticos tiveram contato com os trabalhos desenvolvidos no ateliê.
A produção plástica realizada no local ganhou notoriedade entre os críticos de arte da época Mário Pedrosa, por exemplo , sendo exposta em importantes instituições, entre as quais o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Ademais, as obras do Museu de Imagens do Inconsciente foram reconhecidas internacionalmente por personalidades como o psiquiatra suíço C. G. Jung e o escritor Albert Camus, e por artistas contemporâneos como Francisco Brennand, Ivan Serpa e Abraham Palatnik, que visitaram o ateliê.
Jung teve contato com as obras produzidas no Engenho de Dentro ao inaugurar uma mostra brasileira no II Congresso de Psiquiatria na Suíça, em 1957. O psiquiatra suíço ressaltou a qualidade do trabalho desenvolvido por Nise da Silveira, que estava presente à solenidade em razão de uma bolsa do CNPq.
Olhar atento Boa parte da pesquisa é dedicada ao papel e à trajetória do artista plástico Almir Mavignier (foto), que não se restringiu a identificar os talentos no Engenho de Dentro. Ficou no país até 1951, trabalhando no hospital carioca, partindo em seguida para a Europa, onde percorreu diversos países graças a uma bolsa de estudos do governo brasileiro. Não trabalhou mais com pacientes psiquiátricos. Fixou-se na Alemanha, onde vive até hoje, estudando na Escola Superior da Forma, de Ulm. Foi professor e cartazista, tendo sido um dos precursores do estilo Optical Art (Op Art), tendência artística iniciada na década de 1960 na Europa e logo difundida nos Estados Unidos. Entretanto, o conjunto de sua obra permanece praticamente ignorado no Brasil.
Aparentemente, segundo o pesquisador, Almir Mavignier tinha uma crença romântica de que poderia encontrar talentos artísticos no meio dos internos do centro psiquiátrico. Este é o ponto, observa Silva, que diferencia o trabalho desenvolvido por Mavignier de outros da mesma natureza. “Ele não descobriu muitas pessoas. De todas que passaram pelo ateliê entre 1946 e 1951, não mais que dez se destacaram e tiveram suas obras estudadas por Nise da Silveira e comentadas pelo crítico de arte Mário Pedrosa”, observa Silva.
Um dos exemplos é a exposição “Nove Artistas do Engenho de Dentro”, em 1949, que reuniu apenas a produção de nove pacientes. O nome da mostra foi dado pelo então diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Leon Degand. Mostrava obras de Adelina, Carlos, Emydgio Barros, Raphael, entre outros. Todos saíram do anonimato do hospital psiquiátrico para ganhar espaço em exposições no Brasil e no mundo. As obras nunca foram vendidas e constituíam objeto de estudo da psiquê dos pacientes.
Terapêutica - A psiquiatra Nise da Silveira (foto) foi presa política na época da ditadura de Vargas. Ficou afastada do serviço público, mas quando voltou, em 1944, decidiu mudar o enfoque da terapêutica aplicada aos doentes mentais. “Ela não concordava com os métodos de eletrochoque e outras formas desumanas de se tratar o paciente psiquiátrico”, revela Silva. Nise da Silveira dedicou a sua vida à tese de que os tratamentos precisavam ser redirecionados. Acreditava, por exemplo, na arte como recurso terapêutico. Sua morte, em 1999, foi sentida por uma legião de seguidores. A psiquiatra colecionou mais de 300 mil obras de pacientes em seus ateliês de pintura e modelagem.