Durante
oito semanas vivi uma espécie de sonho,
do qual custo a acordar. Fui o representante
brasileiro do programa multi-nações
da Eisenhower Fellowships, uma organização
norte-americana, sem fins lucrativos, que desde
1953 promove a paz e o entendimento através
do diálogo entre potenciais líderes
mundiais. Quando conto para as pessoas sobre
o programa, ninguém acredita. É
difícil acreditar mesmo, pois mais do
que o custeio da viagem para mim e minha esposa,
esta bolsa me permitiu desenvolver um programa
de visitas personalizado a 11 cidades norte-americanas,
onde realizei mais de 90 visitas, conversas
e entrevistas. Além das viagens e do
programa, tive a incrível oportunidade
de conviver com outros 24 “fellows”
de diferentes países, de diferentes áreas
de trabalho, que são pessoas fantásticas,
com enorme vontade de melhorar o mundo.
Durante o meu programa tentei entender um pouco
melhor o que pode ser chamado genericamente
de cultura científica norte-americana,
incluindo educação formal (escolas)
e informal (centros e museus de ciências),
percepção pública da ciência,
divulgação e jornalismo científico,
e pesquisas acadêmicas nessas áreas.
Para isso visitei diversos museus de ciências,
conversei com educadores e com instituições
governamentais, e discuti com diversos pesquisadores
na área de percepção pública
da ciência e jornalismo científico.
Certamente voltei com um entendimento melhor
da área, mas percebi também a
sua enorme complexidade, e, como ocorre freqüentemente,
surgiram muitas dúvidas que antes sequer
imaginava.
Há
uma enorme discussão nos EUA sobre a
questão da educação, e
em particular, sobre a educação
em ciências. Há uma contradição
importante no sistema educacional norte-americano,
pois não existem parâmetros curriculares
nacionais mínimos, que são determinados
localmente. Em outras palavras, cada comunidade,
ou cada estado, determina o que os estudantes
aprendem. Recentemente, entretanto, o atual
governo lançou um programa chamado “no
child left behind” (nenhuma criança
deixada para trás). Esse programa tem
diversos pontos discutíveis, entre eles
um teste nacional para determinar, em princípio,
a qualidade do conteúdo ensinado em diferentes
estados, que têm parâmetros curriculares
diferentes. Assim, cada estado faz o seu teste.
Quando os resultados desses testes são
comparados com os pouquíssimos dados
de alguns testes nacionais, o resultado é
um desastre. Os estados que têm uma educação
em ciências mais fraca, por exemplo, realizam
testes mais fáceis, e têm um bom
desempenho nos exames locais, mas péssimo
desempenho nos nacionais. Ou seja, os EUA estão
enfrentando uma situação insólita,
de discutir parâmetros nacionais em uma
sociedade onde a cultura é descentralizada
ao máximo, e portanto enfrenta enormes
resistências.
Na área de educação informal,
a situação é também
bastante complexa e interessante. O fato de
as escolas terem que ter um bom desempenho nos
exames tem inibido visitas extra-curriculares
a centros e museus de ciências. Estes,
por sua vez, vivem o dilema diário de
sobreviver, e precisam desesperadamente mais
público. É difícil também
congregar todos esses centros e museus em um
único corpo, pois eles são muito
heterogêneos. Há museus que dependem
muito de público escolar (chegando até
aproximadamente 60% do público, como
o New York Hall of Sciences), mas outros que
dependem quase que exclusivamente do público
avulso (como o Sciencenter de Ithaca, por exemplo,
que têm apenas 10% de público escolar).
Há
poucos museus que recebem auxílio das
cidades ou do governo do estado (como o Museu
de Ciências de St. Louis, ou o Museu de
Ciências de Denver, por exemplo), mas
a maioria não recebe nenhum tipo de suporte
governamental. Quase todos os Museus dependem
de projetos submetidos à National Science
Foundation (NSF) (entre 10 a 20% do orçamento),
e essencialmente dependem de ingressos do público
e de vendas em suas lojas e restaurantes. Finalmente,
uma fonte fundamental de recursos provém
da filantropia, uma área extremamente
desenvolvida nos EUA. As doações
de pessoas físicas ou apoios de empresas,
entretanto, geralmente destinam-se à
ampliação dos prédios,
ou novas construções. Isso tem
gerado uma situação sem limites,
pois as ampliações implicam em
custos mais elevados para a manutenção
e para infra-estrutura, que somente aumentam.
Desse modo, vários museus têm crescido,
e alguns deles alcançam orçamento
de mais de 35 milhões de dólares
anuais (como o Museu da Ciência e Indústria
de Chicago, e o Museu de Ciências de Boston,
por exemplo). Para sustentar tais orçamentos,
os Museus têm que atrair mais e mais público,
e naturalmente vivem uma situação
de tensão constante, à procura
de exposições blockbusters e de
formas alternativas de conseguir mais recursos.
E assim tornam-se excessivamente comerciais,
e acabam divergindo de sua missão natural
de divulgar a ciência com qualidade, de
realizar pesquisas na área de comunicação
pública da ciência, de inovar nas
práticas e nos programas de educação
informal de ciências. Não sei até
que ponto essa situação irá
se sustentar, mas a minha sensação
é que a maioria dos Museus e Centros
de Ciências nos EUA encontram-se em um
equilíbrio instável, e que bastaria
uma leve recessão financeira, por exemplo,
para criar enormes dificuldades de sobrevivência.
Além de visitar diversos museus de ciência,
visitei também algumas exposições
e projetos sobre a divulgação
da nanociência e nanotecnologia. A NSF
criou uma rede nacional, com orçamento
de US$ 20 milhões, onde participam diversos
Museus de Ciência unidos para criar exibições
e kits de divulgação de nanociência.
Visitei algumas das exposições
e dos projetos em andamento, e há algumas
idéias interessantes. Entretanto, confesso
que fiquei feliz ao perceber que o nosso projeto
NanoAventura, apesar de ter já mais de
dois anos, ainda é muito inovador e único.
Tentando ser o mais objetivo possível,
creio que é um projeto que se destaca
mundialmente, pois conseguimos encontrar uma
linguagem adequada para o público jovem,
e com uma dose certa de objetivos a serem cumpridos,
conteúdo didático e diversão.
O mesmo se aplica para a Oficina Desafio, pois
em todos os locais onde tive a oportunidade
de mostrar o caminhão, todos se maravilhavam
com o conceito e com a prática que temos
realizado aqui na Unicamp, no Museu Exploratório
de Ciências.
Finalmente, visitei diversas universidades e
centros de pesquisa, conheci muitos pesquisadores,
e em particular, conversei com três professores
que ganharam o prêmio Nobel (dois de Física
e um de Química). Nas horas vagas também
conheci as cidades, os seus museus de arte,
as suas atividades culturais e gastronômicas.
Voltei com inúmeras questões sobre
a sociedade norte-americana, sobre os seus valores,
sobre a questão da imigração,
sobre a questão da guerra, sobre a violência,
sobre as minorias, sobre a sua cultura. Mas
também consegui ter outra perspectiva
sobre a nossa vida aqui no Brasil, e em particular
na Unicamp, sobre as nossas práticas
cotidianas, sobre a nossa complexidade. Ainda
estou elaborando muito do que vivenciei, e certamente
não consegui digerir e organizar essa
enorme quantidade de informação.
Mas estou certo que foi uma experiência
única, que será determinante para
mudar a minha vida, e a forma como enxergo o
mundo.
Marcelo Knobel é professor
do Instituto de Física “Gleb Wataghin”
(IFGW) e diretor do Museu Exploratório
de Ciências da Unicamp. Sua viagem aos
EUA foi relatada no blog
“Diário de bordo: cultura científica
EUA 2007”