Dentro
de aproximadamente uma década, conforme
as estimativas mais ponderadas, o Brasil deverá
ter dominado a técnica das hidrólises
ácida e enzimática, processos
que permitirão ao país obter etanol
(álcool) também a partir do bagaço
e da palha da cana-de-açúcar.
Com isso, será possível aumentar
significativamente a produção
do combustível, sem a necessidade de
ampliar de forma drástica a área
cultivada.
Embora ansiosamente aguardada por todos, a solução
poderá se constituir em um sério
problema para as usinas, que atualmente aproveitam
o bagaço para gerar a energia que consomem
e, em alguns casos, vendem. A alternativa que
vem ganhado corpo para enfrentar essa provável
dificuldade é o desenvolvimento de métodos
e tecnologias baseados no conceito da integração
energética. A idéia é utilizar
ao máximo a energia disponível
na indústria, da maneira mais inteligente.
A professora Silvia Nebra, da Faculdade de Engenharia
Mecânica (FEM) e do Núcleo Interdisciplinar
de Planejamento Energético (Nipe), ambos
da Unicamp, vem trabalhando há quase
duas décadas na área de otimização
de sistemas energéticos. No Brasil, de
acordo com ela, a integração energética
é adotada com bons resultados por alguns
segmentos industriais, notadamente o químico
e petroquímico. “Entretanto, o
setor sucroalcooleiro só agora tem começado
a despertar para essa nova realidade. Nossas
pesquisas objetivam justamente levar o conceito
para o interior das usinas”, afirma. Tradicionalmente,
explica, os produtores de álcool e açúcar
adotavam posições relativamente
conservadoras em relação às
inovações. Ela lembra que até
a década de 80, por exemplo, os usineiros
não demonstravam interesse pela co-geração
de energia elétrica para venda, produto
até então considerado de difícil
mercado por eles. A energia co-gerada era apenas
para consumo próprio.
“Marco
regulatório foi divisor de águas"
A partir de meados da década seguinte,
com a mudança do marco regulatório
do setor elétrico, os donos de usina
mudaram de idéia. Começaram a
ampliar o faturamento dos negócios com
a venda do excedente da co-geração.
Com a perspectiva da introdução
das hidrólises ácida e enzimática,
um novo e promissor cenário deverá
se descortinar para a indústria sucroalcooleira.
O processo permitirá a ampliação
significativa da produção de etanol
– algumas projeções apontam
para um incremento de até 40% num prazo
de 20 anos –, sem a necessidade de estender
de forma brutal a área cultivada de cana-de-açúcar.
Um avanço extraordinário, mas
que trará um efeito adverso para as usinas.
Como o bagaço e a palha da cana poderão
ser empregados para a obtenção
de etanol, obviamente faltará insumo
para a produção de energia. Nas
palavras da professora Silvia Nebra, “o
cobertor ficará curto demais”.
Mas como, afinal, superar essa iminente dificuldade?
De acordo com a docente da FEM, a saída
está no uso otimizado da energia disponível.
Uma das alternativas é o aproveitamento
da lignina, subproduto que surge do processamento
do bagaço, como combustível para
a geração de vapor. Além
disso, prossegue Silvia Nebra, o conceito de
integração energética contempla
outras medidas, como a transferência de
calor de correntes quentes para correntes frias.
“Muitas vezes, isso exige não apenas
o uso de novos equipamentos, mas também
a mudança do layout das indústrias”,
explica.
Um exemplo de integração energética
vem de uma tecnologia desenvolvida a partir
de pesquisa coordenada pela própria Silvia
Nebra, voltada ao melhoramento da capacidade
térmica da indústria sucroalcooleira.
Trata-se de um equipamento que aproveita os
gases emitidos pelas caldeiras da usina para
secar o bagaço de cana. Com a matéria-prima
previamente seca, a sua queima torna-se muito
mais eficiente, melhorando conseqüentemente
o desempenho do sistema como um todo. Dentro
do mesmo contexto da integração
energética, uma proposta que vem sendo
investigada pela equipe da docente é
utilizar o calor da vinhaça, subproduto
advindo da produção do etanol.
Para compreender a lógica desse processo,
primeiro é preciso saber como o álcool
é produzido.
Após a extração, o caldo
da cana é fermentado. Em seguida, são
obtidos o vinho, que será destilado e
dará origem ao etanol, e a vinhaça,
que tem sido usualmente empregada pela agricultura
na recomposição do solo. Ocorre
que essa vinhaça sai muito quente da
planta industrial. “Nossa idéia
é criar um modelo que permita transferir
esse calor para o vinho, que seguiria para a
destilação a uma temperatura mais
elevada que a usual. Isso certamente traria
um ganho de eficiência para o sistema
energético como um todo”, prevê.
Também como parte desse conceito está
o aperfeiçoamento das caldeiras, de modo
que elas permitam a elevação da
pressão e temperatura do vapor. “No
aspecto específico do melhoramento das
caldeiras, o Brasil vem obtendo bons resultados.
Entretanto, falta conciliar esse avanço
com o esforço de implantação
da integração energética”,
analisa a professora Silvia Nebra.
De acordo com ela, as pesquisas conduzidas por
sua equipe contam com a colaboração
de especialistas da Faculdade de Engenharia
Química (FEQ) da Unicamp, da USP e de
instituições da Argentina, Espanha
e Suíça. “Sem essa abordagem
multidisciplinar, os estudos certamente não
teriam a mesma qualidade”, considera.
No Brasil, os trabalhos contam com financiamento
da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep),
órgão do Ministério da
Ciência e Tecnologia (MCT).
Pesquisas integram projeto nacional
As
pesquisas conduzidas atualmente pela equipe
da professora Silvia Nebra estão inseridas
no Projeto Etanol, estudo desenvolvido pelo
Núcleo Interdisciplinar de Planejamento
Estratégico (Nipe) da Unicamp em conjunto
com o Ministério da Ciência e Tecnologia
(MCT). Na coordenação geral do
trabalho está o físico Rogério
Cerqueira Leite, professor emérito da
Universidade. De acordo com um relatório
já apresentado pelo Nipe, o Brasil teria
condições de produzir, em 2025,
álcool combustível suficiente
para substituir 10% de toda a gasolina consumida
no mundo. Isso equivaleria a algo como 205 bilhões
de litros por ano.
Em reportagem publicada em março deste
ano pelo Jornal da Unicamp, o pesquisador colaborador
do Nipe, Carlos Eduardo Rossell, considerou
esse objetivo perfeitamente possível
de ser alcançado, desde que o país
consiga conjugar vontade política do
governo, planejamento por parte do setor sucroalcooleiro
e desenvolvimento científico e tecnológico.
Considerado o principal especialista brasileiro
em hidrólise ácida, Rossell afirmou
que uma das bases do Projeto Etanol está
justamente no aproveitamento do bagaço
e da palha da cana-de-açúcar para
a produção de álcool combustível.
Diversas nações do mundo estão
empreendendo esforços para dominar o
processo de hidrólise para a produção
de etanol. O Brasil está entre eles.
Na Europa e Estados Unidos, no entanto, os estudos
se concentram na palha do trigo e nos resíduos
da colheita do milho. Assim, é importante
que o país busque sua própria
alternativa tecnológica, sob pena de
vir a se tornar dependente de um modelo que
provavelmente não se aplicará
à sua realidade e necessidades. Na hidrólise
ácida, o catalisador é um ácido,
cuja função é quebrar as
moléculas de celulose presentes no bagaço
e na palha. Com isso, obtêm-se açúcares,
que depois de fermentados se transformam em
álcool. Ocorre, porém, que essa
reação é muito rápida,
o que dificulta o seu controle e favorece o
surgimento de resultados adversos.
Há ainda a hidrólise enzimática,
que como o próprio nome indica utiliza
enzimas para promover a quebra das moléculas
de celulose. Esse processo está sujeito
a maior controle, mas em compensação
é muito mais lento. No curto prazo, conforme
o professor Rossell, a hidrólise ácida
deve se constituir no caminho mais rápido
para o Brasil aproveitar o bagaço e a
palha da cana para ampliar a sua produção
de etanol. “Isso não significa
que a hidrólise enzimática não
tenha interesse, muito pelo contrário,
mas é uma tecnologia mais complexa e
levará mais tempo para ser viabilizada”,