Os
frascos de vitamina B12 usados como matéria-prima
no laboratório farmacêutico onde
o garoto Fernando Galembeck trabalhava como
oficce boy, em São Paulo, na década
de 1950, valiam muito. Tanto que eram guardados
no cofre, de onde só saíam com
ordem expressa do dono da empresa. Cada vez
que ele olhava o farmacêutico-chefe ir
até o cofre pegar os frascos, pensava:
“se eu soubesse fazer vitamina B12, poderia
me dar bem na vida”.
Galembeck não inventou nenhum elixir
revolucionário, mas se deu muito bem
como cientista. O sorriso discreto que lhe riscava
a face no dia 15 de maio, quando recebeu das
mãos do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva o prêmio “Almirante
Álvaro Alberto”, uma espécie
de Oscar da ciência e tecnologia, assinalou
o capítulo mais recente de uma carreira
de 40 anos, ao longo da qual orientou 28 teses
de doutorado e 34 mestrados, sendo produzidas
16 patentes, 220 artigos e 1,3 mil citações
em revistas indexadas. E consolidou uma certeza
que vem desde os tempos de menino: ciência
também gera riqueza.
Alguns dias antes de seguir para Brasília,
num fim de tarde como outro qualquer, Galembeck
sentou-se à cabeceira da mesa numa das
incontáveis salas do Instituto de Química
da Unicamp (IQ) e começou a falar. Num
discurso pausado, reto e limpo, falou de quase
tudo. No começo, ainda manteve o tom
sóbrio e protocolar. Ao final de duas
horas de conversa, porém, já contava
anedotas e falava de coisas pessoais, como a
paixão pelos quatro pés de cacau
que ele mesmo plantou com seus filhos no quintal
de sua casa, uma mini-reserva formada por dezenas
de árvores frutíferas, plantas
nativas e espécies do cerrado, como a
pitoresca cagaita, cujo nome, aliás,
decorre dos desarranjos intestinais que costuma
provocar quando consumida em excesso.
Alegoria
Paulistano da Bela Vista, Galembeck descobriu
que gostava de ciência ainda criança,
lendo a obra de Monteiro Lobato. “O livro
A Chave do Tamanho, por exemplo, é a
melhor alegoria do conhecimento associado à
sua aplicação”. Com o tempo,
porém, ele aprenderia que fazer ciência
no Brasil não era nenhum faz-de-conta,
sendo preciso bem mais que o mágico pó
de pirlimpimpim para chegar a resultados satisfatórios.
“Por lidar com o desconhecido, a pesquisa
é uma atividade de altíssimo risco,
nem tudo sai como planejado”.
O fato de nem tudo sair como planejado, porém,
às vezes é o melhor jeito de chegar
a um bom resultado. Pelo menos no seu caso.
“Em ciência, um dos meios mais freqüentes
para obtenção de conhecimento
ocorre por serendipitia”, acredita Galembeck,
referindo-se à tradução
da palavra inglesa serendipity, cunhada em 1754
pelo escritor e político inglês
Horace Walpole, para exprimir descobertas ocasionais
diferentes daquelas que estavam sendo buscadas.
“Todos os meus trabalhos mais originais
resultaram de alguma coisa que apareceu no meio
do caminho”
Foi
assim, por exemplo, com o Biphor, o pigmento
branco desenvolvido em 2005 a partir de nanopartículas
de fosfato de alumínio, um feito tão
extraordinário que promete revolucionar
o mercado mundial de tintas à base de
água. Um dia, um estudante de doutorado
descobriu que aquecendo pó de polifosfato
de ferro obtinha-se uma espuma sólida
e preta. Galembeck viu aquilo e pensou: “Se
conseguíssemos fazer a mesma coisa com
alumínio, talvez obtivéssemos
o pigmento branco”. Dito e feito. Quando
viu o resultado, o pesquisador sentiu-se como
Pedro Álvares Cabral. “Saí
de Portugal para chegar às Índias,
mas acabei descobrindo o Brasil”.
Motor fundido
Houve momentos, porém, em que a perseguição
a determinado objetivo exigiu certa dose de
sacrifício. Como da vez em que fundiu
o motor da Brasília de sua mulher durante
os testes para o primeiro catalisador de escapamentos
desenvolvido no Brasil. Na época, as
discussões sobre a obrigatoriedade do
equipamento nos automóveis começava
a esquentar e o invento caía como uma
luva. Galembeck chegou a patentear o produto,
algumas empresas se interessaram, mas o projeto
acabou emperrando na burocracia e nunca chegou
ao mercado. Ao recordar o episódio, Galembeck
coça a cabeça e suspira fundo:
“Fiquei sem a Brasília e o catalisador”.
Mesmo
com toda quilometragem acumulada, Galembeck
não esconde a frustração
com o atraso do Brasil quando o assunto é
patentes. “É desastroso”,
desabafa. Desde os tempos de oficce boy no laboratório
farmacêutico, a associação
entre conhecimento, inovação e
desenvolvimento econômico sempre soou
como uma coisa óbvia. “Há
necessidades a serem atendidas, e quem sabe
fazer alguma coisa importante para satisfazer
estas necessidades pode movimentar a economia
e ganhar um bom dinheiro”.
Para ele, o fosso entre produção
científica e transferência tecnológica
no Brasil tem uma razão tão simples
quanto antiga: “os estudantes brasileiros
aprendem a escrever papers, mas saem da universidade
sem jamais ter lido uma patente”. Um erro
de cálculo cometido no passado, cuja
fatura está sendo cobrada agora. “O
país contribuiu cada vez mais para o
patrimônio mundial de conhecimento, sem
se preocupar em proteger o resultado de suas
pesquisas”. E arremata: “É
um tiro no pé”.
Impacto no PIB
Apesar do tom crítico, Galembeck vai
na contramão do discurso que minimiza
a inovação feita dentro das empresas
brasileiras. “Esse discurso está
baseado em números agregados e pouca
reflexão”. Para ele, é irrelevante
se apenas 1% das empresas faz inovação.
“O que conta de verdade é se aquelas
que geram impacto no PIB são inovadoras”.
E completa: “Não me importo se
o serralheiro da esquina não for muito
inovador, mas ficaria desesperado se empresas
como Vale do Rio Doce, Oxiteno e Petrobrás
não fossem inovadoras”.
Galembeck
se empolga, cita dados, busca exemplos. “Veja
o caso do álcool, do papel, da soja,
do frango”, relaciona. “Se estes
setores não fossem inovadores, não
teriam o peso que têm na pauta de exportações”.
Ele chama atenção, em especial,
para o álcool. “Não é
todo dia que o presidente dos Estados Unidos
vem ao Brasil conhecer nossa tecnologia”.
E dá números: em 1970, plantava-se
em São Paulo apenas uma variedade de
cana. Em 2007, já são mais de
500. “Tudo isso saiu dos laboratórios
das universidades, dos institutos de pesquisa
públicos e, principalmente, dos centros
privados, como o CTC de Piracicaba”.
Certa vez, uma pessoa comentou com Galembeck
que a Embraer não tem patentes. Ele olhou
o interlocutor e respondeu que não se
pode julgar esse tipo de desempenho de forma
descontextualizada. Seria preciso comparar com
o seu maior concorrente, que é a canadense
Bombardier. “Fiz um levantamento e constatei
que a única patente recente da Bombardier
em aeronáutica é um sistema de
bilhetagem de passageiros”. Não
satisfeito, Galembeck também levantou
a ficha da Boeing em nanotecnologia. “Apareceram
duas ou três patentes, uma mixaria”.
Divergências à parte, Galembeck
concorda que o problema tem causas profundas.
“O que o Brasil precisa é de uma
política de desenvolvimento científico
e tecnológico em geral”. E aponta
as bases para um eventual programa nacional:
uma ciência de alta qualidade gerando
conhecimento relevante para todas as cadeias
produtivas nas quais o Brasil é ou pode
ser competitivo. “Hoje somos o máximo
no álcool, mas continuaremos a ser daqui
cinco anos?”, questiona. Ele mesmo responde:
“Não podemos parar”.
Enquanto a política científica
dos seus sonhos não acontece, Galembeck
seguirá entre a complexidade do campus
universitário e o bucolismo de seu quintal
arborizado. Em ambos os casos, agirá
como se nunca houvesse saído do laboratório.
“Sei se a terra está boa ou não
pelo jeito como a fruta apodrece quando cai
no chão; se fica esverdeada é
porque tem muito fungo enriquecedor de solo”.
E em muitas manhãs, antes de pensar em
algum invento novo, ouvirá da janela
de seu quarto a zoada de abelhas que produzem
mel nos pés de cambuí.