Muita tecnologia e conhecimento foram incorporados desde então, a ponto de o câncer ser encarado, hoje, como uma doença crônica, possível de ser tratada e acompanhada por vários anos. O problema é que continua difícil o acesso a esta atenção integral e especializada, que está restrita a unidades e centros avançados.
“Todo o financiamento de atenção a pacientes com câncer através do Sistema Único de Saúde (SUS) é direcionado para as estruturas e as ações especializadas dos Cacons (Centros de Alta Complexidade em Oncologia) caso da Unicamp e as Unacons (Unidades de Alta Complexidade em Oncologia). Isto coloca de fora os sistemas locais de saúde, das cidades onde moram os pacientes”, explica Silvia Santiago, docente do Departamento de Medicina Preventiva.
A professora está à frente do Projeto OncoRede, da Unicamp, que começa a construir uma rede de cooperação entre os serviços de saúde municipais e os serviços especializados, num trabalho solidário e qualificado de atenção aos pacientes oncológicos.
Iniciado em 2005 na região de São João da Boa Vista, a OncoRede pretende ampliar-se para a macrorregião de Campinas, com seus 90 municípios e 6 milhões de habitantes sob influência dos serviços da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), Hospital das Clínicas (HC), Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), Gastrocentro e Hemocentro.
O projeto pressupõe canais de comunicação entre os diferentes serviços da Universidade, gestores estadual e municipais e profissionais de saúde das cidades da região. “Os centros especializados tendem a resolver seus problemas isoladamente. Mesmo um Cacon de referência como o da Unicamp é pequeno para responder à demanda da macrorregião”, observa Silvia Santiago.
É fato que o atendimento ao câncer exige uma estrutura especializada cirurgia, radioterapia, quimioterapia e terapias adjuvantes , mas a professora lembra que os pacientes têm necessidades múltiplas, como apoio nutricional, psicológico, fisioterápico, direitos sociais e, muitas vezes, de lazer e integração à sociedade.
“Toda essa assistência pode ser oferecida no município. Inclusive, nem todas as intercorrências clínicas como de quimio e radioterapia e da própria cirurgia precisam, necessariamente, ser tratadas em centros especializados. Pode-se disponibilizar cuidado adequado por meio da parceria entre as redes municipais de saúde e os Cacons”, sugere a docente.
Nesse sentido, três eixos norteiam a OncoRede: o acesso ao diagnóstico precoce do câncer e às ações de prevenção, a gestão do cuidado ao paciente e a qualificação da atenção através da capacitação de equipes multiprofissionais nos municípios. “Queremos identificar as necessidades dos pacientes e, também, dos profissionais quanto à capacitação e condições de trabalho”.
Uma boa sustentação a esses profissionais, na opinião de Silvia Santiago, embute outro propósito essencial do projeto, que é a humanização do atendimento. “Ganhamos bastante em estrutura e tecnologia, mas acho que a atenção não é a mais humana possível. Precisamos nos aproximar do paciente, a fim de entendê-lo e apoiá-lo nessa fase difícil da vida”.
Em Rio Pardo O projeto OncoRede reúne cerca de 20 profissionais da oncologia e de outros setores da FCM, Caism e HC. Desde meados do ano passado, eles já capacitaram perto de 150 profissionais da microrregião de São José do Rio Pardo: médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, nutricionistas, educadores físicos e até dentistas.
A equipe da OncoRede realizou reuniões com a Diretoria Regional de Saúde (DRS) e com secretários municipais, antes de optar pelo início do trabalho na região de São João da Boa Vista (20 municípios e 800 mil habitantes), onde está a microrregião de São José do Rio Pardo (8 cidades e 217 mil moradores).
“A região não possui nenhum centro especializado e, por isso, era a que mais dependia da atuação da Unicamp. Agora, pretendemos ampliar as atividades para Mogi Guaçu, Mogi Mirim e Itapira”, informa Silvia Santiago, que comemora o fato da região de São João da Boa Vista já ter solicitado o credenciamento de três Unacons, uma por microrregião.
A Unacon presta serviços de primeiro nível na atenção oncológica, referentes aos quatro cânceres prevalentes mama, cólon e reto, próstata e pulmão, sendo que naquela região também é importante o atendimento ao câncer de cabeça e pescoço. “Dessa forma, o Cacon da Unicamp poderá cumprir seu papel de referência e se dedicar às outras neoplasias”, diz a professora.
Em Piracicaba Apesar de contar com uma estrutura física pequena para a macrorregião, a área de saúde da Universidade conta com número elevado de docentes, médicos contratados e residentes de ótimo nível, que poderiam auxiliar na capacitação de profissionais, favorecendo a regionalização da atenção à saúde.
É com este propósito que a OncoRede vem mantendo contatos na região de Piracicaba, onde já existem vários serviços especializados em câncer e uma boa infra-estrutura, mas que reclama melhorias na gestão do cuidado ao paciente e na regulação do acesso e da qualidade dos serviços prestados.
Gestão do cuidado, explica Silvia Santiago, implica na identificação das necessidades do paciente e no adequado cumprimento dos passos do protocolo de longo prazo que é definido desde o diagnóstico do câncer: exames, radioterapia, quimioterapia, novos exames e tratamentos que sucedem a cirurgia, nutrição, fisioterapia, etc. “É importante contar com uma equipe que ajude o paciente a cumprir cada etapa”.
Identificar e capacitar os profissionais dispostos a realizar este trabalho nos municípios tem sido o trabalho mais intenso da OncoRede, atualmente. As equipes de gestão do cuidado têm composição variada, mas em geral são compostas por médico, enfermeiro e assistente social. “Há outros problemas do paciente, como os psicológicos, econômicos e sociais, que podem ser igualmente supridos por profissionais da cidade”.
Redes qualificadas Silvia Santiago prefere falar em uma capacitação entre aspas, pois se surpreendeu com a estrutura de saúde que encontrou nos municípios, sobretudo em termos de qualificação das equipes. “Vemos um pessoal competente, engajado e muito disposto a fazer valer esta parceria com a Unicamp”, assegura.
A carência observada pela professora é a de comunicação com os centros especializados, visto que os profissionais das redes municipais mostraram conhecer, por exemplo, muitos dos procedimentos frente a intercorrências clínicas no tratamento do câncer.
“O problema é que eles não se sentiam ‘autorizados’ a cuidar dos pacientes, achando que o correto seria sempre o encaminhamento para um centro especializado. Quando nossa equipe chegava e discutia a possibilidade de uma parceria nesse atendimento, os profissionais se sentiam honrados e satisfeitos. Na verdade, a capacitação tem servido para alguns ajustes técnicos e para combinar protocolos”, afirma a docente.
Estimativa é de 20 mil
casos novos de câncer na
macrorregião em 2007
Estima-se que a macrorregião de Campinas, com aproximadamente 6 milhões de habitantes, apresentará 21 mil casos novos de câncer em 2007, com 7,5 mil mortes causadas pela doença. Em relação a pacientes para os quais não existam novas propostas terapêuticas, uma preocupação da OncoRede é fazer com que eles recebam cuidados especiais em seus municípios, ao lado dos familiares.
“A assistência na fase paliativa ou de cuidados especiais, quando centralizada em hospitais como o Caism e o HC, é muito penosa para o paciente, que fica distante e isolado da família. Muitos ainda encontram-se bem e seriam atendidos com maior qualidade e de forma mais humanizada por profissionais da sua cidade”, afirma a professora Silvia Santiago.
Na opinião da docente, foi importante que os serviços especializados tenham assumido tais cuidados inicialmente, pois seus profissionais puderam acumular grande experiência nesta atenção ao paciente. “Agora, já estamos aptos a qualificar as redes locais para prestar esse atendimento”.
Em outra vertente, a OncoRede prepara-se para disponibilizar material teórico e informativo a profissionais da saúde, pacientes e familiares, via Internet. A elaboração deste material vem sendo discutida com a professora Denise Bértoli Braga, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, que se especializou no uso da rede para veiculação de conteúdos educativos.
O primeiro conteúdo na Internet deverá tratar justamente dos cuidados paliativos, mas Silvia Santiago adianta que a ferramenta servirá para ajudar a OncoRede a derrubar outras barreiras, começando pelo estigma que ainda cerca o câncer, visto como uma sentença de morte. “Podemos dizer que, hoje, o paciente estabelece uma relação de longo prazo com os serviços de saúde”.
Outra justificativa para este trabalho de divulgação, segundo a pesquisadora, é que os avanços tecnológicos não conseguiram derrubar o histórico do câncer no Brasil, que permanece marcado por diagnósticos tardios. “Se você me perguntar qual é o sonho que projeto para a OncoRede, direi que são dois: humanizar a atenção ao paciente e promover diagnósticos cada vez mais precoces, aumentando as chances de cura e a sobrevida”.