No início da década de 1990, o historiador e professor Paulo Miceli vasculhava documentos em arquivos históricos de Lisboa para uma tese de doutorado sobre a “invenção do Brasil” planejada como uma espécie de diálogo com o livro Visão do Paraíso, do historiador Sérgio Buarque de Holanda. À semelhança de alguém na praia que vê surgir de repente, empurrada pelo movimento das ondas, uma garrafa contendo em seu interior a mensagem desesperada de algum náufrago, Paulo, ao acaso, pôs as mãos em um relato de um padre jesuíta do século XVI. A breve carta de não mais que três páginas narrava situações pitorescas da vida de bordo de um navio de madeira integrante das expedições que zarpavam de Portugal na época dos descobrimentos. O que estava ali relatado era muito diferente das descrições epopéicas e celebrativas do cotidiano de uma viagem marítima no período da expansão européia. Impulsionado pelo fascínio por navegações e navegadores que remonta às leituras juvenis de Gulliver e Robinson Crusoé, o pesquisador, como quem se determina a resgatar o autor do manuscrito encerrado na garrafa, decidiu mudar o rumo de sua empreita e embarcou em uma fascinante viagem até então muito pouco explorada pelos investigadores, em que o épico cedia lugar ao trágico e ao grotesco.
O resultado de quatro anos de um perseverante e meticuloso estudo foi o livro O ponto onde estamos Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista (Portugal, séculos XV e XVI). Lançada em 1994, a obra chega agora, por meio da Editora da Unicamp, à sua quarta edição. Será distribuída pelo MEC a bibliotecas escolares brasileiras, e contribuirá para fazer vir à tona uma dramática e cruel realidade que as páginas dos livros didáticos mantêm imersa sob as linhas pontilhadas tradicionalmente empregadas para demonstrar, de maneira simplista, o percurso das embarcações de um continente a outro no mapa impresso.
A integração de novas terras ao universo hegemônico da Europa católica, a propagação da religião e o estabelecimento de um mercado mundial estão na origem das grandes viagens oceânicas do período quinhentista. O discurso histórico em geral retrata a época com tons acentuadamente ufanistas: celebra a glória e o arrojo de bravos viajantes, comemora o feito de alguns heróis e faz a apologia do rei, da Igreja ou da nação. Nesses registros poéticos e magistrais, quase sempre quem navegava eram os súditos do infante, a gente valiosa da terra, os soldados e apóstolos da propagação e defesa da fé, entre outras generalizações.
Porém, ao invadir a privacidade das naus por meio de relatos pacientemente garimpados em bibliotecas e arquivos lusitanos, Paulo encontrou um exército de homens miseráveis e completamente despreparados para as missões que lhe eram confiadas. Entregues à própria sorte, embarcavam sem saber se conseguiriam chegar ao porto de destino e, confinados no pequeno espaço do navio, compartilhavam, por meses até, uma rotina de desconforto, fome, sede e epidemias somente superada em sofrimento pelo horror do naufrágio.
“Muito mais que toneladas de pimenta trazidas da Índia, as naus transportavam uma bagagem invisível: a cultura de seus ocupantes, presente nos costumes, nos hábitos alimentares, nas crenças, nos passatempos, na sexualidade, nas transgressões”, observa o professor de história moderna no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. “Essas, entre outras manifestações, caracterizavam a sociedade do navio, com todas as suas desigualdades sociais, temores, egoísmos e conflitos. Foi isso o que me atraiu.”
Comunidade flutuante As dimensões das embarcações colaboravam para exasperar as contradições nessas comunidades flutuantes. O comprimento de uma caravela não ultrapassava os 20 metros e mesmo uma nau de grande porte, como as que integravam a célebre armada de Vasco da Gama, mediam da proa à popa no máximo o triplo, e transportavam de 800 a 1.200 pessoas em média.
Cada navio tinha seu capitão, um representante do rei, com autoridade suprema sobre homens e coisas. Abaixo dele estava o piloto (também nomeado pelo rei), que decidia todos os assuntos relativos à navegação. A ele subordinavam-se diretamente o sota-piloto e o mestre, que comandava todos os marinheiros, grumetes e pessoal de serviço do navio, auxiliado por um contramestre, a quem cabiam as responsabilidades pela carga da embarcação. Um escrivão, um capelão (auxiliado em seus serviços pelos padres em viagem de catequização), cirurgiões, carpinteiros, escravos e passageiros, incluindo mercadores, também integravam o grupo a bordo.
O principal contingente era formado por soldados, que os relatos classificam de “filhos de camponeses e outra gente de baixa condição”, existindo ainda os bombardeiros, “artífices, como sapateiros, alfaiates e outros que não sabem o que é dar um tiro de peça quando é mister”. Algumas vezes completava-se a tripulação com criminosos retirados das prisões, que aceitavam embarcar em troca da liberdade.
Os oficiais tinham entre seus privilégios a permissão de embarcarem galinhas principalmente para o preparo de canjas com que se tentava remediar os doentes , além de cabritos, porcos e até vacas. Mas, conforme assinala Paulo, essa nutritiva bagagem, como tudo que se levava a bordo, não era compartilhada por todos os embarcados. A alimentação dos viajantes dependia quase somente dos gêneros que cada um conseguia embarcar na partida, conforme o que a sua própria condição social permitia. Como a maioria era malprovida, a escassez acabava sendo a regra para a quase totalidade dos viajantes.
“Quando a viagem transcorria sem incidentes, a comida mal bastava para as necessidades dos embarcados, mas, se um longo período de calmaria, a imperícia do piloto ou qualquer outra ocorrência provocassem o alongamento da viagem, a fome atingia o navio de modo implacável”, destaca o autor de O ponto onde estamos.
O problema se agravava pelas péssimas condições de conservação dos alimentos nos navios: o biscoito, principal alimento a bordo, freqüentemente apodrecia, e a água, armazenada em tonéis ou grandes tanques nem sempre apropriados, acumulava bactérias e provocava a ocorrência de infecções e diarréias. Em meio a tudo isso, ratos e baratas proliferavam e disputavam aos homens o alimento escasso, comprometendo ainda mais as precárias condições de higiene das longas travessias.
Sangrias Muitos passageiros já subiam doentes aos navios, levando consigo a peste, que afligia as populações européias no período e encontrava no ambiente de miséria a bordo as condições ideais para se alastrar, vitimando centenas de mareantes. Cabia aos padres, quando também não adoeciam, o cuidado dos doentes febris.
O método largamente utilizado para a cura era a sangria. As pungentes narrativas dos sacerdotes desenham o quadro mórbido, em que soldados pobres e desamparados, sangrados às vezes até a exaustão, definham no convés da nau sob sol e chuva.
O escorbuto, provocado pela carência de vitamina C, era outra enfermidade freqüente nas embarcações, causando tal inchamento e putrefação das gengivas que era preciso cortá-las fora para que não comprometessem a dentição e impedissem os enfermos de se alimentar. Tripulações praticamente inteiras foram dizimadas pelas doenças e lançadas ao mar, sepultura dos que morriam durante as viagens.
Segundo o historiador, esse quadro de horrores que emerge dos textos que mencionam a vida a bordo também resultava da ação cobiçosa e corrupta dos que tinham a seu cargo o aparelhamento dos galeões e das naus. Em carta aos seus superiores na ordem ou mesmo diretamente ao rei, sacerdotes denunciaram que as dificuldades a bordo advinham da atitude de capitães e mestres que carregavam as naus de vinhos, azeites e de outras mercadorias suas e de particulares, em detrimento do transporte de água em número suficiente para todos. Isso, quando não embarcavam um número de passageiros superior ao permitido, o que também comprometia as acomodações e a alimentação a bordo.
Peçonha do diabo Os zelosos padres também cuidavam dos males do espírito com a mesma dedicação dispensada às doenças corporais, enfatiza Paulo. Organizavam encenações teatrais religiosas e, ao anoitecer, promoviam procissões pelo convés iluminadas por velas e tochas. O jogo, principalmente as cartas, constituía uma das poucas (e condenadas) atividades de lazer a bordo. Em suas pregações e confissões os jesuítas também travavam uma árdua cruzada contra a leitura do que consideravam livros profanos (“de cavalaria e desonestos, que eram uma armadilha do demônio”), oferecendo em seu lugar obras religiosas.
Mas, na luta tenaz pela manutenção da “santidade” de bordo, nada se compara à obstinação dos padres contra a presença feminina nos navios. Masculino por excelência, observa o pesquisador, o mundo das viagens tinha nas mulheres especialmente nas prostitutas alguns de seus principais problemas, segundo passagens relatadas pelos sacerdotes nas cartas em que prestavam contas do processo de cristianização na Índia.
Elas entravam escondidas ou com disfarces masculinos. Quando descobertas em alto mar, as “peçonhas que o diabo costuma introduzir para perdição dos navegantes” conforme classificou um dos religiosos eram desembarcadas à força em ilhas ao longo do caminho ou postas sob rigorosa guarda até o destino. Mas havia também aquelas levadas a bordo pelos próprios oficiais. Nesses casos, a repreensão dos jesuítas era inócua e não lhes restava alternativa a não ser denunciar a situação em cartas indignadas ao rei, atribuindo a essas práticas até a responsabilidade por algumas tragédias marítimas.
Alhos e cebolas Os naufrágios, aliás, são uma das mais contundentes exposições das mazelas da história das viagens à época da expansão européia, salienta Paulo. Se é fato que as minúsculas embarcações eram incapazes de resistir à fúria das tempestades, também é inegável que a negligência na construção e manutenção das naus e a ganância de comerciantes que carregavam os navios com mercadorias em excesso e dispostas de modo absurdo contribuíam decisivamente para interromper viagens de modo trágico. Não raro os problemas decorrentes desse tipo de descaso começavam antes mesmo da partida, como nos episódios das naus que começaram a fazer água ainda no porto por causa de furos destapados no casco por descuido de carpinteiros.
Muitas dessas dificuldades, ressalta o escritor, vinham também da insuficiente qualificação da gente do mar, já que nem sempre os profissionais que integravam as tripulações tinham experiência para enfrentar as mais elementares exigências da navegação. Há o caso dos marinheiros que, em uma grande armada com destino à Índia, eram incapazes de manobrar o leme a bombordo e a estibordo por desconhecerem a terminologia náutica. A solução encontrada foi hilária: penduraram alhos e cebolas à esquerda e à direita do navio para que os marinheiros pudessem distinguir um lado do outro pela denominação desses vegetais.
Bisonhos também eram alguns daqueles que tinham o destino dos navios literalmente nas mãos. O privilégio de ocupar o posto de piloto (autoridade inquestionável nas viagens) podia até ser comprado por quem dispusesse de dinheiro suficiente para satisfazer essa vontade. Outros, os chamados “pilotos aderentes”, assumiam o cargo graças a algum vínculo com a realeza. Incapazes de ler cartas marítimas e muito menos manusear instrumentos como o astrolábio e o sextante transformados em meros adornos dos quais se envaideciam eles juntavam à imperícia a teimosia, o que levava as embarcações a ficar semanas à deriva, agravando o quadro de fome, sede e doenças, ou punha a perder vidas e cargas sem conta nos choques de naus contra recifes.
Estima-se que, dos cerca de 800 navios que zarparam do Tejo para a Índia no período de 1497 a 1612, aproximadamente 30% não regressaram, ou por naufrágio, ou por incêndio, ou porque foram tomadas por inimigos ou porque se desintegravam em alto mar por conta de precariedade da construção.
Sucumbiram naus e marinheiros na imensidão das águas revoltas, mas não suas histórias humanas. Resgatadas das profundezas oceânicas nos achados de Paulo Miceli e expostas de forma crua, como um antiépico, nas páginas de O ponto onde estamos, nos lembram que, a exemplo da edificação de outros impérios, o gigantesco processo das viagens na história da humanidade também só foi possível com o esforço e, acima de tudo, com o martírio de gente comum e anônima que singrou mares nunca dantes navegados.