No Brasil, o processo de construção da democracia vem registrando avanços importantes no plano do regime político, mas ainda não conseguiu dar conta de um aspecto fundamental para a sua consolidação: o estabelecimento de um regime social que reduza efetivamente as desigualdades. O descompasso é apontado pelo cientista social Gabriel de Santis Feltran, que analisou em sua tese de doutorado a relação entre política e violência, tendo como cenário a periferia da cidade de São Paulo. O estudo, que foi apresentado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, concentrou-se mais especificamente no trabalho de movimentos sociais em favor da defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.
Criminalidade é simulacro do mundo do trabalho
Do trabalho de Feltran, emergem dados impactantes. Um deles diz respeito ao senso comum, fortemente arraigado entre membros das camadas mais abastadas da população, de que crianças e adolescentes envolvidos com a criminalidade não merecem ter direitos. “Nessas esferas, ao contrário do que ocorre na favela, há uma forte tendência à criminalização dessas pessoas. Tentei notar como esta postura está ligada ao jogo de poder mais amplo. Ao serem submetidas a um regime que as coloca fora da lei, elas ficam automaticamente impedidas de avançarem na hierarquia social”, explica. Tal estratégia, segundo o pesquisador, torna-se mais sutil no regime democrático. “Num regime ditatorial ou escravocrata, esses processos de deslegitimação são mais claros”, compara.
Para entender melhor esses e outros elementos, o cientista social acompanhou durante três anos o trabalho desenvolvido por movimentos sociais voltados à defesa dos direitos de crianças e adolescentes, com especial atenção às atividades do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente “Mônica Paião Trevisan” (Cedeca), instalado no bairro de Sapopemba, um dos mais violentos da periferia de São Paulo. Constituída formalmente em 1991, a entidade, de orientação católica, presta atendimento às crianças e adolescentes e suas famílias nas áreas jurídica, psicológica e social. “O trabalho dessa organização é muito interessante, pois ele faz a mediação entre os adolescentes que estão envolvidos ou em vias de se envolver com o crime e a mobilização política em favor dos seus direitos”, afirma.
As atividades do Cedeca, prossegue o pesquisador, convergem para a defesa da cidadania desses indivíduos. O objetivo é mudar a compreensão prévia e generalizada de que são “bandidos”. “Tudo começa pela formulação das idéias. O termo ‘menor’, por exemplo, é evitado porque é carregado de estigma. Além disso, fala-se muito em direitos, visto tratar-se de condição universal, igual para todos. O trabalho compreende, ainda, medidas mais objetivas, como o atendimento jurídico, as atividades socioeducativas e o encaminhamento a cursos profissionalizantes”, elenca Feltran. A organização também tenta refazer os vínculos dos adolescentes, tanto com as famílias quanto com o sistema público de defesa dos direitos.
Durante os três anos em que acompanhou a atuação do Cedeca, o autor da tese teve a oportunidade não apenas de analisar o trabalho da entidade, mas também de conhecer a história de vida dos adolescentes e suas famílias. “Na minha pesquisa, tentei fazer a conexão entre a trajetória dos meninos e meninas que entram para o crime e a questão social”, diz Feltran. Um dado importante levantando por ele indica que uma minoria das crianças e adolescentes do bairro (perto de 10%) ingressa na criminalidade. De acordo com o cientista social, dois fatores contribuem para essa decisão. Do ponto de vista do adolescente, pesa a necessidade de consumo imediato. “Ter um celular de último tipo e um tênis da moda assegura status entre os pares e prestígio entre as garotas”, esclarece.
Do ponto de vista mais geral, aparece o caráter profissional do crime. O adolescente adota a criminalidade, notadamente o tráfico de drogas, como um simulacro do mundo do trabalho. A partir daí, ele passa a fazer parte de um sistema que tem hierarquia, concorrência, patrão e remuneração. É nessa fase que o garoto ou garota ganha algum dinheiro e consegue mostrar para os amigos que o crime vale à pena. “Em seguida, ele fica mais visado pela polícia. É nesse instante que ele perde boa parte das relações que tinha anteriormente, seja com a família ou com os amigos. Perde também parte dos benefícios de viver no crime. Na seqüência, vem a prisão. É quando a sua separação do corpo social torna-se oficial. É no aprofundamento desse processo que os casos de homicídio normalmente ocorrem, seja no confronto com a polícia, seja em razão de desentendimentos com seus pares”.
Esta cisão social, conforme o pesquisador, faz com que a pecha de bandido caia mais fortemente sobre o adolescente das periferias. É este indivíduo, reforça Feltran, que passa a ser visto por uma parcela da sociedade como “suspeito”, como “ameaça”, como alguém que não deve ter direitos porque coloca em risco os direitos do “cidadão de bem”. “Felizmente, essa visão não é generalizada. Se você perguntar para uma pessoa de classe média e para um morador da favela o que deve ser feito com um garoto que rouba um carro, as respostas possivelmente serão diferentes. Na favela, até onde pude constatar, não existe a idéia generalizada como em outros extratos de que esse adolescente é um monstro e deve morrer”, sustenta.
Sobre a efetividade do trabalho desenvolvido pelo Cedeca, o autor da tese disse ser difícil medi-la com precisão. De acordo com ele, há alguns anos, quando tinha melhores condições de atendimento, a entidade trabalhava com um índice de 80% de sucesso na reinserção social das crianças e adolescentes envolvidos com a criminalidade. Feltran acompanhou a história de 13 adolescentes, sendo que cinco deles foram selecionados para compor o seu estudo. Desse quinteto, dois deixaram o crime e três ou estavam presos ou em vias de voltar para a cadeia. “Felizmente, nenhum deles havia morrido”, informa o cientista social, que foi orientado pela professora Evelina Dagnino e contou com bolsas de estudos concedidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), vinculados respectivamente aos ministérios da Ciência e Tecnologia e Educação.
No entender de Feltran, não é possível negar o caráter altamente nocivo da criminalidade, mas não é correto analisar esse fenômeno a partir de um ponto de vista somente. Trata-se, segundo ele, de algo muito mais complexo, que tem relação íntima com o modelo de construção da democracia adotado pelo país. “Temos um claro descompasso entre o regime político e o mundo social. O sistema democrático, que em tese deveria assegurar a igualdade de direitos a todos, não tem proporcionado a efetivação desse princípio na esfera social. Dito de outra forma, quando uma parcela da população vislumbra a possibilidade de alcançar a igualdade social, ela depara com mecanismos sutis de deslegitimação e criminalização que a impedem de alcançar o seu objetivo. É aí que se demonstram alguns dos limites da democracia brasileira, que também contribuem para o agravamento da violência”, analisa.