| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 396 - 26 de maio a 1° de junho de 2008
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Professor do Instituto de Economia acaba de
receber do CNPq o prêmio de Pesquisador Emérito 2008


A economia
bem-temperada
de Wilson Cano

CLAYTON LEVY

 (Fotos: Antoninho Perri)Traz os ingredientes na ponta da língua: frango, arroz, camarão, tomate, alho, pimentão. A receita é herança dos pais, imigrantes espanhóis que se conheceram no Brasil e aqui tiveram seis filhos. Ele é o caçula, e também o único a ter entrado para a universidade. Mas não se engane imaginando que o prato principal se limite à iguaria valenciana. Uma conversa com Wilson Cano pode ser tão ou mais saborosa que a paella que costuma preparar no fogão a lenha de sua casa, onde gosta de receber amigos para relembrar episódios e evocar personagens que povoam uma carreira acadêmica das mais produtivas, cujo brilho acaba de ser reconhecido com o prêmio de Pesquisador Emérito 2008, concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Docente chegou à Unicamp há 40 anos

Escolha uma época, qualquer uma da história recente brasileira, e ele encaixará um caso, descreverá cenários, fará desfilar os protagonistas. Sem papas na língua, também tecerá uma análise crítica com fundamentos históricos, sociais e políticos. Revelará detalhes como quem descasca uma cebola e emitirá opiniões quase sempre apimentadas, espalhando um aroma intelectual dos mais refinados, que só faz abrir o apetite de quem está por perto.

Da infância modesta no Tucuruvi, em São Paulo, onde chegou a trabalhar como office-boy, aos bastidores da política nacional, onde aguçou sua antena socialista e consolidou sua visão de mundo, Cano firmou-se como uma espécie de mestre-cuca da economia. Conhece os ingredientes para a estabilidade social tão bem quanto os erros que podem desandar o processo de crescimento. “A China está pondo o mundo de pernas para cima, mas é bom lembrar que o impacto disso no Brasil não vai além de um efeito exógeno, que amanhã pode passar”.

O tom cordial da conversa não esconde a crítica aguda, que atravessa um tema após o outro sem poupar personagens ou omitir fatos. “Uma economia subdesenvolvida não pode ser escancarada para o capital internacional”; “o Lula ouve conselhos do Delfin (Neto, ex-ministro da Fazenda), mas acata as diretrizes do Meireles (Henrique, presidente do Banco Central); “a reforma agrária era uma das principais bandeiras do governo, mas caiu no esquecimento”; “esquerda? que esquerda? cada vez vejo menos gente de esquerda em Brasília”.
 (Fotos: Antoninho Perri)

Esse olhar crítico Wilson Cano descobriu ainda nos tempos de estudante. Após formar-se em economia na PUC de São Paulo, em 1962, matriculou-se no curso de Planejamento e Desenvolvimento Econômico oferecido pela Comissão Econômica para América Latina (Cepal), na capital paulista. “Aquilo abriu minha cabeça e me fez enxergar a precariedade do que se ensinava nas universidades”, recorda. “Conheci um Brasil e uma América Latina que ainda não conhecia porque as escolas brasileiras se limitavam a transplantar o que vinha de fora, sem fazer um diagnóstico de nosso subdesenvolvimento”.

O curso da Cepal funcionaria como um divisor de águas na carreira do jovem economista. Ali ele encontraria professores que exerceriam grande influência em sua formação, como Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa e Aníbal Pinto. Também entraria em contato com o pensamento de Celso Furtado, a quem passaria a considerar seu principal êmulo. “Um dos homens mais lúcidos do Brasil”, assegura. Ainda hoje, quando fala do velho mestre, um ar de respeito beirando a reverência emerge de suas expressões.

Após quatro meses de estudos intensivos em tempo integral, Cano concluiu o curso mas não saiu da Cepal. Deixou de ser aluno para ser professor. Não raro, o debate saía da sala de aula e continuava nas mesas de bar, regado a chope e pastel. Nelas, os problemas econômicos do Brasil eram esmiuçados e projetos eram esboçados. Um deles consistia na criação de uma nova Escola de Economia, sem fins lucrativos, capaz de enfrentar a má qualidade da maioria dos cursos então ministrados no país.

Em meados de 1967, Cano já integrava a equipe de pesquisadores do escritório da Cepal no Rio de Janeiro. Os estudos, que aprofundavam dados sobre a realidade brasileira, também serviam de munição para as forças que se opunham à ditadura. De repente, o ex-office-boy do Tucuruvi passou a fazer parte do que os militares chamavam de ninho de esquerdistas. As pressões estavam prestes a provocar as primeiras baixas quando o economista recebe um convite inusitado: um tal de Zeferino Vaz planejava construir uma universidade pública em Campinas, e já havia escalado Cano para o time de professores.

Cano, que já estava de malas prontas para o Chile, mudou de idéia e estendeu o convite a outros dois colegas: Ferdinando Figueiredo e Roberto Gamboa. Em novembro de 1967, os três desembarcam em São Paulo para uma reunião com Zeferino. Após se inteirarem do projeto que começava dar forma à Unicamp, questionaram seu idealizador sobre a estrutura disponível. O reitor respondeu com o refrão de praxe: “primeiro, cérebros; segundo, cérebros, e, terceiro, cérebros”. O Plano era implantar o Departamento de Planejamento Econômico e Social, o Depes, que funcionaria como embrião do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e, mais tarde, do Instituto de Economia (IE).

O trio despediu-se do encontro convencido de que a mudança de ares faria bem a todos. Além disso, Zeferino oferecia-lhes salários de doutores, embora fossem apenas bacharéis. Em troca, teriam de apresentar produção científica e conquistar titulação. Àquela altura, o reitor também já havia recrutado alguns dos melhores alunos do curso da Cepal em São Paulo: Luiz Gonzaga Belluzzo, João Manuel Cardoso de Mello, Carlos Eduardo Nascimento Gonçalves e Osmar Marchese. Estava escalado o time que daria início às humanidades na Unicamp.

Cano, o primeiro a chegar, desembarcou em Campinas em fevereiro de 1968. Como o campus ainda não existia, Zeferino mandara adaptar salas nos porões de um antigo colégio, o Bento Quirino, na rua Culto à Ciência. O galpão reservado aos cepalinos não se parecia em nada com o escritório do Rio de Janeiro. Sem a menor cerimônia, o próprio Zeferino confidenciou ao economista que, no passado, o lugar havia funcionado como estrebaria. Cano olhou para aquilo, respirou fundo, mas não desistiu. Agarrou a chance pensando no velho ideal de formar a nova Escola de Economia com que sempre sonhara.
 (Fotos: Antoninho Perri)

Consolidado em 1968, o Depes passou a funcionar a todo vapor. Em breve, alguns cursos da Cepal, até então dados apenas no Chile, passaram a ser oferecidos pela Unicamp, numa iniciativa inédita no país. Em plena vigência do AI-5, a Universidade investia no espírito crítico. Já naquela época a preocupação inicial era construir uma política econômica alternativa ao padrão de crescimento que vinha sendo implementada pelo regime militar. Para isso, toda a agenda acadêmica estava colada à agenda da sociedade.

Ao mesmo tempo, Cano tinha a cautela de não fazer panfletagem. Escolado, sabia que bater de frente com os militares seria suicídio. “Não queríamos desperdiçar a oportunidade”, conta. “Sabíamos que não se tratava de criar mais uma escola de economia e sim de implantar uma linha de pensamento que viria para ficar”, completa. A crítica ao regime vinha na forma de pesquisas. Enquanto o governo militar anunciava o milagre econômico, Cano publicava artigos em tom de advertência, prevendo que a crise seria longa. Acertou na mosca. A crise veio e durou vinte anos.

Com liberdade para trabalhar, o admirador de Celso Furtado não parou mais de produzir. Tendo a economia brasileira como foco principal, fez mestrado, doutorado, pós-doutorado, livre-docência. Escreveu artigos, publicou quase uma dúzia de livros, orientou dezenas de teses. Esmiuçou a temática industrial e analisou a formação do mercado nacional. Estudou as raízes do subdesenvolvimento e analisou os efeitos macroeconômicos das políticas neoliberais em oito países latino-americanos. Entrou e saiu de partidos políticos com a mesma sem-cerimônia de quem não abre mão das próprias convicções. “Sou um nacionalista, e ponto final”.

Ao fazer um balanço da própria carreira, Cano não hesita; “Considero-me realizado porque fiz o que me propus a fazer”. Ainda hoje, mesmo aposentado, pode ser visto diariamente em sua sala no Instituto de Economia. “Agora sou professor voluntário”, avisa. Rodeado de livros, a mesa abarrotada de papéis, ele é o retrato acabado do intelectual que sabe avaliar o volume da própria obra. Em seu caso, porém, isso está longe de ser um ponto final. Entre uma paella e outra, Cano tem fôlego para muito mais.

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