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Páginas 2 e 3

Histórico

O Projeto Perus, passo a passo

Todas as fases do trabalho da Unicamp para identificar desaparecidos políticos em meio às ossadas dos cemitérios Dom Bosco, Campo Grande e Xambioá

Em setembro de 1990, uma página importante da história do Brasil começou a ser reescrita. Centenas de ossadas humanas foram encontradas em uma vala comum do Cemitério Dom Bosco, em Perus, na Grande São Paulo. A descoberta chocou a opinião pública, mas também reacendeu a esperança de familiares de presos políticos desaparecidos durante o regime militar. Algumas das ossadas, cogitava-se, poderiam pertencer aos militantes que se opunham à ditadura. Mais tarde, graças ao esforço da Unicamp e de uma equipe formada por professores, funcionários e alunos, a desconfiança transformou-se em certeza.

Ao longo de sete anos de trabalho, período que exigiu grandes esforços financeiros, técnicos e institucionais por parte da Universidade, os peritos chegaram a sete identificações. Estava resgatado, assim, um capítulo importante do passado recente do País. Um fragmento histórico do qual os brasileiros não sentem qualquer orgulho, mas que precisava ficar registrado para as futuras gerações como forma de alerta contra eventuais novos ataques à democracia.

Os resultados dos trabalhos de identificação das ossadas foram bastante significativos, como destaca o legista José Eduardo Bueno Zappa. Ele integrou a equipe original de peritos da Unicamp e mais tarde assumiu a função de assessor técnico da Comissão de Perícias, mesmo não pertencendo mais ao corpo docente da Universidade. "Tecnicamente, identificamos todos que poderíamos identificar. Dentro daquilo que tínhamos na Universidade e dos subsídios fornecidos pelos parentes dos desaparecidos políticos, posso garantir que não houve erro. Se não identificamos todos é porque não tínhamos elementos para fazê-lo ou porque as ossadas não estavam em Perus", sustenta Zappa.

Testemunha ocular – Além de ter ajudado nas perícias, o legista é uma espécie de testemunha ocular de todo o processo. Segundo Zappa, logo após a descoberta da vala comum no Cemitério Dom Bosco, a Prefeitura de São Paulo e o governo do Estado assumiram o compromisso de tentar identificar entre o acervo possíveis presos políticos desaparecidos durante o período de exceção. Legalmente, a tarefa caberia ao Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, pois Perus está dentro da área de cobertura do órgão. Tal procedimento, porém, foi descartado por causa da restrição dos familiares de ex-presos políticos e de organismos ligados à defesa dos direitos humanos. Na visão dessas pessoas e entidades, o IML não mereceria crédito, pois não teria apontado em seus laudos que militantes de esquerda mortos ao longo do regime ditatorial apresentavam lesões compatíveis com torturas.

Diante desse problema, as autoridades chegaram à conclusão de que a alternativa mais viável para tentar o reconhecimento das ossadas seria encaminhá-las ao então Departamento de Medicina Legal (DML) da Unicamp, atualmente extinto, que na época gozava de prestígio tanto em nível nacional quanto internacional. Mas para que o procedimento fosse concretizado, seria necessário superar um outro impedimento legal. A Unicamp não poderia receber as ossadas, pois não era uma instituição oficial para realizar esse tipo de exame. A saída encontrada na oportunidade foi transferir todo o acervo para o IML de Campinas, sob a responsabilidade do médico Fortunato Badan Palhares, que além de legista do órgão também era professor da Universidade. "Assim foi possível trazer as ossadas diretamente para a Unicamp", lembra Zappa.

Para completar o processo, foi firmado um convênio entre a Prefeitura de São Paulo, o governo do Estado e a Unicamp, no qual as três partes assumiam uma série de compromissos. Posteriormente, como revela Zappa, ficaria claro que a Universidade seria a única a não medir esforços para tentar identificar as ossadas. "A Prefeitura ainda deu algum apoio operacional, principalmente nos trabalhos de campo. Já o Estado praticamente não honrou a sua parte", diz o legista. Zappa ressalta que, à época, nenhuma outra instituição se dispôs a tentar realizar as identificações ou auxiliar os trabalhos. "Ninguém tinha coragem de assumir uma perícia daquele tamanho. Teríamos que procurar seis desaparecidos em meio a mais de mil ossadas", recorda. Até hoje, segundo ele, não há registro na literatura mundial de um trabalho dessa envergadura.

Certeza de nada – O grau de dificuldade encontrado pelos peritos foi muito grande. Conforme Zappa, nem a comissão formada por familiares dos desaparecidos políticos sabia ao certo se as ossadas de seus filhos, irmãos e maridos estavam realmente na vala comum do Cemitério Dom Bosco. "Isso precisa ficar claro. Nunca houve certeza absoluta de que haviam ossadas de presos políticos entre o material que estava sendo analisado pela Unicamp. Na época, não havia registros fiéis sobre os sepultamentos realizados no Cemitério Dom Bosco. Era muito comum escrever uma coisa na requisição funerária e mandar o corpo para outro cemitério, justamente para confundir. Além disso, também não havia certeza de quais quadras haviam sido exumadas em Perus. Na verdade, ninguém tinha certeza de nada", esclarece o legista.

De acordo com ele, a perícia começou a ser feita antes mesmo das ossadas serem transferidas para a Unicamp. Durante quase três meses, uma equipe formada por legistas, odontolegistas e estudantes catalogou todas as ossadas ainda no Cemitério Dom Bosco. Cada saco encontrado na vala comum era aberto. Os ossos eram separados da seguinte forma: longos (membros inferiores e superiores), médios (vértebras) e pequenos (pés e mãos). Cada ossada recebia um número e era filmada e fotografada. "Nós partimos do princípio de que cada saco continha apenas um corpo. Mas encontramos em alguns sacos três crânios, o que indicava que havia ocorrido mistura de corpos", explica o assessor ténico da Comissão de Perícias.

Ao mesmo tempo em que o acervo era catalogado, os peritos elaboraram uma espécie de protocolo, baseado na literatura internacional. Nele, os especialistas registrariam os dados obtidos pela análise das ossadas. "Nós partimos de quatro princípios básicos de identificação: sexo, altura, raça e idade. Para cada parâmetro, montamos no mínimo três tabelas para que pudéssemos aferir com uma possibilidade maior de acerto. Criamos também um questionário para ser entregue aos familiares dos desaparecidos. Nele, nós pedíamos dados sobre os militantes políticos que pudessem ajudar na identificação, tais como idade, altura e uso de próteses", conta Zappa.

Seis entre mil – Ao final de três meses, os peritos haviam concluído o trabalho de catalogação e já dispunham de dossiês sobre cada desaparecido político. "A comissão dos familiares nos forneceu, num primeiro momento, o nome de seis pessoas que poderiam estar na vala comum. Nossa missão era descobrir entre 1.049 ossadas seis possíveis desaparecidos", afirma o legista. Segundo ele, esses familiares realizaram um trabalho "fantástico". Zappa relata que a comissão levantou os seis nomes com base em uma análise minuciosa dos registros do Cemitério Dom Bosco e dos documentos contidos no arquivo do IML de São Paulo, que era considerado uma caixa-preta.

O trabalho pericial de identificação, adverte Zappa, fica mais fácil quanto mais íntegros estiverem os ossos, principalmente o crânio. Por isso, os peritos fizeram uma outra divisão das ossadas. Elas foram separadas em grupos, obedecendo ao seguinte critério: as que tinham crânios íntegros, as que tinham crânios quase íntegros e as que tinham crânios com várias fraturas. No último grupo também ficaram as ossadas que tinham crânios completamente fragmentados, as que tinham mais de um crânio e as que não tinham crânio. Em seguida, os peritos começaram a analisar as ossadas detalhadamente. Cada uma era examinada por no mínimo quatro pessoas. Ao mesmo tempo, um programa de computador era desenvolvido para armazenar todos os dados que iam sendo obtidos ao longo do trabalho. Ainda no primeiro ano, o resultado desse esforço já pôde ser medido de maneira prática: foram identificadas as ossadas de Frederico Eduardo Mayr e Dênis Casemiro, ambas localizadas na vala comum do Cemitério Dom Bosco.

‘Fomos corretos técnica e eticamente’, afirma legista

Logo após as duas primeiras identificações, a perícia começou a sofrer alguns revezes. De acordo com o legista José Eduardo Bueno Zappa, assistente técnico da Comissão de Perícias, problemas políticos fizeram com que os odontolegistas se afastassem do caso. "Os dentistas que ficaram não eram especialistas. Além disso, quando o trabalho caiu na rotina, os alunos e outros técnicos também começaram a se afastar", diz. "Mesmo a Unicamp tendo contratado três médicos, dois legistas e um ortopedista, tudo foi ficando mais difícil devido ao reduzido número de pessoas envolvidas no processo. Há que se destacar também que nós tínhamos outras atividades, como a docência, das quais não fomos dispensados", acrescenta Zappa.

Outro problema enfrentado, de acordo com o legista, foi o crescimento das solicitações feitas pelos familiares dos desaparecidos políticos, estas relacionadas a ossadas encontradas fora da vala comum de Perus. "No começo, nós chamávamos o trabalho de Ossadas de Perus. Depois que a coisa cresceu, passamos a denominá-lo Projeto Perus", lembra o assessor técnico da Comissão de Perícias. Zappa conta que os peritos tiveram que se deslocar até outros cemitérios como os de Campo Grande e Vila Formosa, em São Paulo, e de Xambioá, em Tocantins, onde também foram encontradas ossadas que poderiam pertencer aos militantes de esquerda. "Os pedidos começaram a chegar de vários locais. Isso tornou o trabalho mais lento".

A despeito de todas as dificuldades, os peritos da Unicamp conseguiram identificar outras cinco ossadas dos seguintes desaparecidos políticos: Sônia Maria de Moraes Angel Jones, Antônio Carlos Bicalho Lana e Helber José Gomes Goulart (também encontradas no Cemitério Dom Bosco, mas fora da vala comum), Emanuel Bezerra dos Santos (encontrada no Cemitério de Campo Grande, em São Paulo) e Maria Lúcia Petit da Silva (encontrada no Cemitério de Xambioá, em Tocantins). No último mês de trabalho, em janeiro de 1997, Zappa estava trabalhando sozinho na perícia. "Fui o único que comecei e terminei. Na verdade, é um erro dizer que o trabalho de identificação demorou dez anos. Nós trabalhamos do final de 1990 até o início de 1997". Em abril de 1997, Zappa elaborou um relatório em que afirmava que a Unicamp já não dispunha mais de recursos técnicos para tentar identificar novas ossadas. Em maio de 98, todo o acervo foi colocado à disposição da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

A Unicamp iniciou, então, gestões junto à Secretaria para promover a transferência das ossadas para o IML de São Paulo, que foi indicado pela Pasta para retomar os trabalhos de identificação. Oito delas, que poderiam pertencer a Hiroaki Torigoi, Flávio Carvalho Molina, Luiz José da Cunha e Francisco Manoel Chaves já estão no órgão. As demais devem ser encaminhadas ao Cemitério do Araçá nas próximas semanas. A transferência ainda não foi concretizada porque o local não está preparado para receber o acervo. A perícia agora está a cargo do legista Daniel Muñoz. Em uma reunião realizada no último dia 9 de fevereiro, ele reforçou o que Zappa já havia adiantado aos familiares dos desaparecidos políticos: não há elementos que permitam a identificação da ossada que pertenceria a Torigoi. Quanto à ossada que supostamente seria de Cunha, Zappa destaca que, embora possua várias características que batem com os dados do desaparecido, ela não tem crânio, o que dificulta a identificação.

Fato estranho – Quanto ao caso de Molina, a ossada foi submetida a exames de DNA no Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Os técnicos extraíram DNA de três ossos diferentes e obtiveram três resultados distintos. "Seria o mesmo que tivessem feito o exame em três corpos diferentes. É um fato muito estranho. E, por incrível que pareça, nenhum dos resultados bate com o DNA da família do militante político", relata Zappa. O legista afirma que considera Muñoz um excelente profissional, mas acha extremamente difícil que ele consiga identificar mais ossadas. "A não ser que surja algum fato novo. Embora novas técnicas tenham sido desenvolvidas depois que a Unicamp encerrou os trabalhos, os dados de confronto são muito exíguos. Além disso, as condições das ossadas dificultam o trabalho", esclarece.

De acordo com ele, a Unicamp só não avançou no trabalho porque não teve mais condições técnicas. "Nós fomos corretos técnica e eticamente. Não seria difícil fazer uma identificação falsa. Qualquer ossada que identificássemos seria aceita pelas famílias. Ninguém exumou as ossadas que identificamos numa tentativa de dizer que erramos. Se tivéssemos que fazer algum tipo de tramóia ou tirar algum proveito em benefício próprio, seria muito fácil. Os familiares ficariam contentes, a imprensa ficaria contente e a universidade ficaria contente. O extinto DML, nesse caso, sairia coberto de glórias e não haveria problema algum. Não posso falar da política de condução dos trabalhos, pois não era minha área. Mas tecnicamente, identificamos todos que podíamos identificar", sustenta Zappa.

Mesmo parecer – Essa posição foi reforçada pelo legista chefe do IML de São Paulo, Carlos Delmonte, que foi indicado pela Secretaria de Segurança Pública para avaliar os trabalhos desenvolvidos pelos peritos da Unicamp. Em abril de 97, ele assinou um parecer dando o trabalho da Universidade por encerrado. "As identificações possíveis, considerando os dados de confronto, foram realizadas. Nenhuma outra instituição poderia, no momento, ter realizado pesquisa de tal porte", sustentou o especialista no documento.

Presidente da Comissão de Perícias da Unicamp, encarregada pela Reitoria de concluir o Projeto Perus, o filósofo e professor de Ética Roberto Romano avalia, como observador privilegiado do processo, que a Universidade cumpriu seu dever enquanto instituição pública. "Do ponto de vista científico e tecnológico, a Unicamp mostrou-se uma instituição preocupada com o diálogo e o debate", salienta. Para o legista Zappa, se houve algum "pecado" na condução dos trabalhos de identificação, ele pode ser traduzido pela falta de elaboração de relatórios sobre as atividades. "A coisa foi feita muito de boca e coisas de boca funcionam até um determinado ponto. Depois, não funcionam mais. Houve falta de experiência para a condução dos trabalhos", analisa.

O esforço financeiro da Universidade

Para chegar às sete identificações, os peritos da Unicamp tiveram que desenvolver uma técnica específica, baseada nos dados da literatura disponível à época. O principal recurso usado foi a confrontação das informações obtidas a partir dos exames das ossadas com as fornecidas pelos familiares dos desaparecidos. Conforme Zappa, se não existem dados fidedignos, não adianta ter milhares de ossadas para checar. "Também não adianta ter três ou quatro características apenas. Pouco vale saber se a pessoa era branca e tinha 1,80 metro de altura. Existem milhares de homens com essas características", explica.

Segundo o assessor técnico da Comissão de Perícias, os dados levantados pelos familiares foram armazenados em computador. Um programa desenvolvido especificamente para esse fim apontava as ossadas com características coincidentes. "Diante disso, estudávamos detalhadamente cada ossada. Foi um trabalho de garimpagem, praticamente artesanal. Fizemos também sobreposição de imagens, usando fotos fornecidas pelos parentes", afirma Zappa. Os peritos lançaram mão, ainda, de recursos mais prosaicos, mas eficientes para a tentativa de identificação. O legista conta que foi montado um quadro em cartolina, no qual constavam as principais características dos desaparecidos políticos. "Através de artifício, nós pudemos cruzar novos dados, como as informações contidas nos laudos necroscópicos feitos pelo IML".

Todos esse esforço técnico requereu também altos investimentos financeiros. Embora o convênio firmado entre a Prefeitura de São Paulo, o governo do Estado e a Unicamp previsse o repasse de recursos dos poderes públicos para a Universidade, esse compromisso praticamente não foi cumprido. Em junho de 96, o legista Badan Palhares encaminhou ofício à Secretaria de Segurança Pública estimando que os trabalhos de identificação consumiriam cerca de R$ 150 mil. Em setembro do mesmo ano, o órgão estadual repassou somente R$ 16.038,70. A Universidade, porém, gastou ao todo R$ 142.095,38 com o pagamento de servidores contratados para trabalhar nas perícias, além de R$ 409.600,00 em obras físicas e compra de equipamentos. Até hoje, a participação do Estado se resumiu ao repasse inicial das verbas, suficientes para comprar um carro popular.


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