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registro para as novas e futuras gerações Professor do IFCH contextualiza o caso das ossadas em meio aos anos de chumbo da ditadura, com respaldo de farta documentação guardada pelo Arquivo Edgard Leuenroth Os números gritam com uma exatidão assustadora: 262 mortos e uma incógnita sobre o paradeiro de 143 pessoas. Dessas, 63 (44%) "tomaram chá de sumiço" somente no Estado de São Paulo. Um calhamaço de 1.918 relatos de cidadãos que foram vítimas de tortura. E por meio de 283 modalidades diferentes. Essa contabilidade dramática, ainda tida como não concluída, é o que resultou de uma peregrinação, que já beira um quarto de século, por quartéis e delegacias de polícia, empreendida por familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar brasileira. A busca pelo menos na sua fase mais organizada, com respaldo de organizações de defesa dos direitos humanos começou em 1979, ano da Lei da Anistia, e experimentou seu pique em 1990, quando estourou o caso Perus. É o que situa o relatório Em busca dos desconhecidos a vala comum do Cemitério Dom Bosco, do Núcleo de Estudos da Violência da USP (leia box nesta página). Formalmente, a ditadura se estendeu de 1964 a 1985. Porém, o período no qual mais se matou e se "evaporou" com dissidentes do regime foi o de 1971 a 1973, compreendido no governo do general Emílio Garrastazu Médici. Anos do chumbo mais pesado, que ainda se deram ao luxo de reservar uma ingrata surpresa à maioria dos analistas políticos que nu-triam as avaliações de conjuntura da esquerda. Segundo as análises mais correntes, o alvorecer da era Médici inauguraria o "momento propício para o ataque frontal à ditadura". A lembrança desse equívoco histórico é feita pelo professor de Ciên-cia Política do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciên-cias Humanas) da Unicamp, Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes, 50 anos. "Não foi bem assim", frisa Corrêa de Moraes, que à época era militante do POC-Combate, partido clandestino de inspiração trotsquista. "O ano de 1968 terminava com sinais que confundiam todos os barômetros políticos e eram interpretados de maneiras completamente díspares pelos assim chamados atores políticos", diz. "A crise política do regime chegou a um ponto de ebulição, com manifestações de inconformismo entre parlamentares, empresários, militares nacionalistas e vários outros segmentos sociais. Mas no mês de dezembro, no dia 13, para sermos precisos, a resposta do general Costa e Silva fora curta e grossa: AI-5 e fechamento do Congresso". Enfim, um cenário tentador o bastante para se imaginar que o regime militar teria diante de si, nos anos seguintes, "uma crise econômica profunda e uma crise de legitimação social e política crescente". O professor elenca os principais elementos do tal cenário idealizado: "Estagnação, desemprego, inflação, movimentos sociais e políticos em escalada ascendente". Final infeliz - Mas ele resume o desfecho que, na realidade, a "platéia", inicialmente entusiasmada, acabou tendo que engolir: "Os quatro anos seguintes, de 1969 a 1972, foram, talvez, os mais luminosos para a ultra-direita e os mais tenebrosos para a esquerda, para os liberal-democratas, para a oposição, enfim". Corrêa de Moraes levanta dois sinais do endurecimento, que despontaram logo no início de 1969: "Cassações de parlamentares e aposentadorias compulsórias de professores universitários". Após sofrer um enfarte, em agosto daquele mesmo ano, Costa e Silva foi tirado do poder, morrendo logo em seguida. Assumiu uma junta militar, que preparou o terreno para Médici. Uma gestão que se estendeu até 1974 e que caracterizou-se, logo de início, como o mais violento e repressivo período de toda a História do Brasil. Foi também quando a ingerência do capitalismo internacional já nem se preocupava mais em manter o mínimo de discrição. "O capital financeiro buscava enfiar seus abundantes euro-dólares em aplicações rentáveis. E nem esperou pra encontrá-las: tratou de inventá-las. Para isso, encontrou parceiros convenientes. As autoridades econômicas do regime militar brasileiro, criatura do imperialismo norte-americano, estavam mais do que dispostas a essa colaboração", sustenta o professor. Condições que, segundo ele, deram largada a um projeto de crescimento econômico via endividamento externo: "Contrataram empréstimos fabulosos, a juros flutuantes, para financiar os mais variados empreendimentos. Alguns desses investimentos foram decisivos para o modelo de desenvolvimento dependente e também para a estratégia de controle político". "A rede de comunicação telefônica e de dados foi a base de um sistema bancário nacionalmente integrado. Satélites e telecomunicações foram também a base física para cadeias nacionais de TV, que iriam transmitir os discursos dos generais e as novas formas de ópio das massas: campeonato mundial de futebol, jornal nacional, comemorações do sesquicentenário da Independência, novelas e chacrinhas", não perdoa Moraes. Ainda mais que, na sua opinião, "outros gastos iriam fluir pelos ralos, fruto da inutilidade ou do superfaturamento". E cita alguns exemplos: "Estradas mirabolantes, como a Transamazônica e a Perimetral Norte; usinas hidroelétricas, como Itaipu, e atômicas, como Angra; pontes gigantescas, tanto na extensão quanto nos custos, caso da Rio-Niterói". Sanatório geral Ao abordar esse capítulo da história recente do Brasil, que rotula de "aventuras faraônicas", o acadêmico não resiste e recorre à música Vai passar, de Chico Buarque de Holanda a quem chama de "autor da crônica dessa tragi-farsa". E enfileira os versos: (...) um tempo (...)/Página infeliz da nossa história/Passagem desbotada na memória/Das nossas novas gerações/Dormia/A nossa pátria mãe tão distraída/Sem perceber que era subtraída/Em tenebrosas transações/Seus filhos/Erravam cegos pelo continente/Levavam pedras feito penitentes/Erguendo estranhas catedrais "Ironia das ironias, alguns anos depois, a Escola de Samba Beija-Flor iria desfilar com enredo homenageando o governo Médici e seu Plano de Integração Nacional", assinala Moraes. E abre mais uma deixa para Chico: Em um dia, afinal/Tinham direito a uma alegria fugaz/Uma ofegante epidemia/Que se chamava Carnaval/Palmas pra ala dos barões famintos/O bloco dos napoleões retintos/E os pigmeus do bulevar/(...)/O estandarte do sanatório geral vai passar Corrêa de Moraes ressalva, porém, que "essa ainda era a agenda positiva ou propositiva do regime". Segundo ele, "por esse caminho, se contornava a primeira das pragas previstas pela análise de conjuntura da esquerda, a estagnação econômica. E evitava a segunda: o regime ganharia a classes média com a ampliação de acesso a bens de consumo modernos: telefone, TV em cores, videocassetes, consórcio de automóveis, apartamentos financiados. Com as obras financiadas pela dívida, arrefecia pontos de estrangulamento do proletariado, como o desemprego". E conclui: "Por alguns anos, pelo menos, os fantasmas seriam afastados". E a "agenda negativa"? O analista aponta: "Ficava por conta de uma extraordinária ofensiva policial. Mandatos cassados, sindicatos com mais policiais do que operários, imprensa sob censura prévia, lei de segurança nacional". Ele lembra, inclusive, que em julho de 1972, até a Newseek teve uma edição apreendida, por conta de uma reportagem apenas levemente crítica sobre a Transamazônica. "Filmes, peças de teatro, livros, novelas, tudo passava pelo crivo dos guardiães da ordem", rememora. "Verdade, que grande parte dos meios de comunicação colaborou prazerosamente com a ditadura. Aqueles que se puseram na oposição, como o jornal O Estado de S. Paulo, recusavam disfarçar os cortes do censor: provocadoramente, preenchiam os espaços com receitas de bolos e versos de Camões. Mas foi uma exceção na grande mídia. Um dos jornais do grupo Folhas, a Folha da Tarde, chegava a ser tão acintoso, que dele se dizia ter altíssima tiragem: grande número de tiras na redação", alfineta. Isso era São Paulo - Moraes acelera sua viagem histórica: "Voltemos os olhos para São Paulo, onde grande parte das ossadas de Perus foram geradas. O prefeito nomeado da Capital era Paulo Maluf, o que dispensa apresentações. As forças da ordem, encarregadas de prender e interrogar os opositores do regime, eram comandadas pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, tido e havido como chefe do Esquadrão da Morte e dos grupos que controlavam o narcotráfico". "Paralelamente a essas forças legais de combate à subversão vermelha, patrióticos empresários paulistas financiaram e organizaram a Operação Bandeirantes", acrescenta. Trata-se do organismo que ficou mais conhecido pela sigla Oban, à qual ele se refere como "o braço clandestino da repressão, incumbido de seqüestrar opositores sem registrar sua prisão, para que não fosse necessário prestar contas de seu estado físico ou mesmo de seu paradeiro, caso algum acidente ocorresse ou tivesse que ser providenciado". E o professor contextualiza: "Recentemente, os jornais nos lembraram que um dos tesoureiros da Oban era... o ex-juiz Nicolau dos Santos, também dito Lalau. Isso era São Paulo. Era?" "Que tempos aqueles!", desabafa Moraes. E justifica: "Reclamar de restaurantes universitários era razão suficiente para expulsão e prisão. Citar o nome de algum político cassado Brizola, Jango, por exemplo bastava para uma cassação de mandato parlamentar. Distribuir uma folha de papel numa campanha salarial, numa porta de fábrica, poderia resultar em dois ou três dias de recolhimento no Dops. Ou, às vezes, bem mais do que isso. Também não seria brando o tratamento ao jornalista que noticiasse uma epidemia de meningite em São Paulo, provocada provavelmente pelo desmatamento na Estrada dos Imigrantes". A continuidade das reminiscências beira o insólito: "Encenar Shylock, o agiota de Shakeaspeare, podia ser um empreendimento de alto risco no teatro. O CCC, Comando de Caça aos Comunistas, podia não gostar de possíveis analogias com os banqueiros de Delfim Netto, então ministro da Fazenda, e Carlos Geraldo Langoni, que presidia o Banco Central. Dizem que um censor chegou a propor pequena mudança no final de Édipo-Rei..." Ame-o ou deixe-o - O professor cita o slogan mais emblemático dos anos Médici: "Brasil, ame-o ou deixe-o". Para, em seguida, considerar: "Alguns o deixaram. Outros foram deixados, inertes, no Cemitério de Perus, depois de passarem pelas salas de tortura que empresários paulistas financiaram, donos de jornais e TVs negaram. Até um alto prelado, no exterior, garantia, desmentindo seus corajosos companheiros de batina como o cardeal Arns, que tudo era invenção de comunistas empenhados em denegrir a imagem do País". Para Corrêa de Moraes, "se levássemos a sério esses notáveis brasileiros a maioria deles ainda vivos, bem vivos e dirigindo empresas e até o País teríamos que reconhecer que essas ossadas são ilusão de ótica. Fantasmas, nada mais. Quem sabe, não somos, nós outros, todos loucos e alucinados. Quem sabe, esses notáveis senhores, agora convertidos à democracia, sejam mesmo a voz da razão e da prudência. Não nos iludamos: eles continuam por cima". Última cutucada irônica e o professor do IFCH apela outra vez para o precioso auxílio de Chico Buarque: "Se assim for, o estandarte do sanatório geral vai passar. Outra vez". Uma ligação perigosa A superação do regime de terror que oprimiu o Brasil por 21anos não implicou na correção de todas as falhas institucionais que facilitaram as ações de seqüestro, tortura, assassinato e desaparecimento de dissidentes políticos. Uma delas reside no sistema médico legal do País, que continua vinculando os IMLs aos aparatos policiais. A crítica está contida no relatório Em busca dos desconhecidos - a vala comum do Cemitério Dom Bosco, redigido por Eric Stover, consultor da Physicians for Human Rights, e publicado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, em 1991. Stover integrou uma delegação de especialistas estrangeiros que, a convite do Fórum das Entidades de Direitos Humanos e Familiares de Desaparecidos e do Núcleo de Estudos da Violência, vieram a São Paulo logo após a abertura da vala de Perus. "Uma vez que o campo da Medicina Forense permanece ligado ao conceito de autoridade de um governo legítimo, os patologistas forenses acabam enfrentando uma desgastante e perigosa situação quando o próprio Estado subverte a ordem da Justiça", escreve Stover. Segundo ele, o fato de os IMLs trabalharem para a Polícia, faz com "apenas uma análise médica autenticada pelas autoridades policiais seja aceita num tribunal militar". O autor lembra que entre os cientistas forenses brasileiros, muitos defendem a proposta de um sistema médico legal completamente independente da Polícia. Algo como um organismo multi-setorial, formado por representantes de instituições como a OAB, universidade, conselhos de Medicina, comissões de defesa dos direitos humanos, órgãos públicos de saúde, Poder Judiciário. E, observando-se essa composição básica, não se refutaria necessariamente a participação das polícias estaduais. A força da memória dos derrotados "É impossível construir a democracia sem a memória dos derrotados". Essa é a convicção do historiador Sidney Chalhoub, diretor do Arquivo Edgard Leuenroth, mantido pelo IFCH. Com a transferência das ossadas para São Paulo, o arquivo continuará sendo uma referência de porte internacional para consultas sobre a ditadura militar brasileira, uma vez que guarda cópias de processos julgados pelos tribunais militares entre 1964 e 1979. O acervo foi reunido pela Arquidiocese de São Paulo e é constituído por 707 processos e fragmentos de outros tantos. Depois de servir de base para o estudo Brasil: Nunca Mais, foi doado ao Edgard Leuenroth pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, em meados da década de 80. Apesar da riqueza histórica do material, Chalhoub ressalva que "dificilmente" ele contribuirá diretamente para a continuidade dos esforços de identificação de mais restos mortais de desaparecidos políticos. Isso porque, em muitos casos, nem mesmo os tribunais militares e muito menos os familiares e advogados eram informados da detenção ou execução sumária dos desafetos do regime. As prisões eram efetuadas em operações clandestinas, para facilitar a interrogação sob tortura. Quando tinham sorte, os prisioneiros eram obrigados a assinar um termo de confissão chamado de "nota de culpa", antes de serem transferidos para as delegacias de polícia. Isso, quando tinham sorte. Para muitos, o destino final eram as valas de cemitérios públicos, onde os seus corpos se misturavam com os de indigentes e outros excluídos, sem muitas chances de serem reclamados por alguém. Isso, porém, não invalida o valor do acervo. Por ele, é possível contextualizar o período e reconstituir grande parte das atividades que se desenrolavam no labirinto das 242 unidades secretas de detenção e tortura, que o hiperdimensionado serviço de informação da ditadura apoiava no País. Nem todos esses centros mantinham relações totalmente oficiais com o governo. Caso da Oban que, apesar de operacionalizada por agentes das Forças Armadas e da Polícia, foi criada e financiada por empresários partidários do regime de exceção. "A reunião desses textos, anexados nos processos, que foram coletados principalmente por advogados das famílias afetadas, traz, portanto, um imenso valor para a preservação da memória do período", observa Chalhoub. O historiador lembra que desde outubro de 1965, quando da decretação do AI-2, todos os processos políticos passaram a tramitar na Justiça Militar. Com isso, ao juiz auditor competia decidir sobre a aceitação ou rejeição da denúncia. Acontecia que as instâncias julgadoras, chamadas de "conselhos de Justiça", eram compostas também por militares. A intimidade com o acervo Brasil: Nunca Mais incentiva a equipe do Arquivo Edgard Leuenroth a pontificar: "Apesar do zelo implacável dos funcionários do sistema, os autos falam também por aquilo que deixam de registrar, obrigando-nos a ver na negativa a afirmação, na aprovação o assentimento, na omissão o compromisso". Voltando à importância que confere aos registros sobre as vítimas do golpe militar, Chalhoub conclui: "Se a sociedade não abrir canais para a divulgação da experiência dos que tombaram em confronto com a ditadura, é como se os matassem duas vezes". |
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