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Jornal da Unicamp -- Março de 2001

Páginas 10 e 11

DROGAS

A Aids sob uma cortina de fumaça

Pesquisa aponta taxa preocupante de contaminação pelo HIV entre usuários de ‘crack’ e origina alerta ao Ministério da Saúde

CARLOS LEMES PEREIRA

O desafio está instalado no submundo dos grandes centros urbanos
brasileiros há tempos. Mas só recentemente o Ministério da Saúde
recebeu um alerta fundamentado o bastante para ampliar e até redirecionar as políticas de prevenção à Aids. A contribuição é da psiquiatra Renata Cruz Soares de Azevedo, professora do 4º ano de psicopatologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e coordenadora de Saúde Mental do Centro Corsini, e indica o crescente poder do crack como fator de contaminação e disseminação do HIV, embora essa variação da cocaína não seja consumida pela via injetável.

Mais conhecido nas ruas como "casca" ou "pedra", o crack é produzido a partir da mistura da pasta da cocaína com bicarbonato de sódio, que resulta em porções apropriadas para serem fumadas (leia box na próxima página). Dispensa seringas e agulhas, cujo uso compartilhado é um dos principais fatores de transmissão do HIV e outros agentes patogênicos. Além disso, a droga não cai tão diretamente na corrente sangüínea. Então, qual a resposta para o aumento da contaminação entre essa parcela de viciados?

"Principalmente a prática de sexo descuidado, muitas vezes agravada pela prostituição, na qual a moeda, buscada com desespero, é a própria droga", esclarece Renata. Embora esse indicativo já se esboçasse em estudos anteriores, a expressão estatística alcançada pela pesquisadora a faz admitir: "Inicialmente, eu própria me surpreendi com o elevado índice de soroprevalência para HIV entre usuários de cocaína pela via pulmonar".

Esse dado foi se configurando à medida que ela desenvolvia a tese Usuários de cocaína e Aids – um estudo sobre comportamentos de risco, que lhe conferiu o doutorado em ciências médicas na área de saúde mental, em novembro de 2000. Ao longo de um ano de investigações, 252 usuários de cocaína (nas variantes injetável e crack), na faixa etária entre 16 e 51 anos, constituíram o grupo de voluntários para o trabalho. Dos quais, 20% se mostraram portadores do HIV, segundo a testagem sorológica.

"Ou seja, proporção de um em cinco", frisa a médica. "Naturalmente, o uso de cocaína injetável continua representando o maior risco de contágio, tendo correspondido a 33% da amostra estudada, índice compatível com os consolidados pelas literaturas nacional e internacional", ressalva. "O que, porém, está longe de afastar a apreensão quanto à elevada taxa de soroprevalência entre consumidores de crack, que atingiu 11% no total. Ou mesmo 7%, quando excluímos os que relataram também histórico de uso injetável", conclui a psiquiatra.

Triste contradição – Sob a frieza desses números, reside uma contradição que Renata lamenta: "Nas entrevistas, houve voluntários que declararam ter se desviado do uso injetável para o crack, justamente numa tentativa de fuga da Aids. Na cabeça deles, seria uma ‘prevenção’, sem que precisassem abrir mão da potência da droga, que, fumada, quase equivale à da aplicação direta nas veias".

A explosão do crack no Brasil se deu no início da última década do século 20, quase dez anos após a detecção dos primeiros casos de Aids no mundo. Portanto, o grupo pesquisado pela médica era constituído por usuários de drogas ditas "pesadas" com vivência suficiente para saberem o quanto eram rondados de perto pelo perigo.

Não tão suficiente, porém. A pesquisa mostrou que 51% dos consumidores de cocaína, injetada ou fumada, não mudaram os hábitos, apesar de saberem dos riscos relativos ao HIV. "Só que, enquanto os que se enquadravam mais na categoria de usuários pela via injetável diziam não se importar com tais riscos, a resposta mudava para ‘não imaginava que aconteceria comigo’, em se tratando dos entrevistados que privilegiavam o uso pulmonar", relata a pesquisadora.

Inocência desastrosa – O perfil dos usuários de crack traçado na pesquisa dá as pistas para essa inocência desastrosa. "Geralmente, eram os mais jovens. E, enquanto o tempo médio de uso de cocaína era de nove anos para os que injetavam, os que fumavam se situavam na faixa de três anos, em termos de consumo", diferencia Renata. "Menos tempo, porém o mesmo grau de prejuízo social", ressalta. Por aí, se mapeou o grau de comportamento de risco: "Eram também os que apresentavam maior comprometimento familiar, valiam-se mais freqüentemente de renda ilegal e – acima de tudo – tinham maior envolvimento com prostituição".

As entrevistas revelaram que, em comparação com os consumidores de cocaína endovenosa, os de crack mantinham um número maior de parceiros sexuais, ao mesmo tempo que confessavam ter menor preocupação com uso de camisinha.

"Esses dados me preocuparam muito. A tal ponto, que me senti motivada a encaminhar ao Ministério da Saúde sugestões para que elabore estratégias preventivas à contaminação e disseminação do vírus HIV que atinjam mais efetivamente os consumidores de cocaína e que busquem focar melhor essa parcela cada vez mais significativa de usuários que não se drogam pela via injetável", declara a autora da tese.

Usuários de crack não vêem risco de HIV

"Doutora Renata adverte: o Ministério da Saúde faz campanhas fracas de prevenção à Aids". Tomando-se a liberdade de parodiar o estilo da própria instituição, pode-se resumir assim o tom do alerta feito pela pesquisadora à instância máxima de saúde pública do Brasil. "Se analisarmos as atuais campanhas, dá para compreender porque os usuários de crack não se vêem sob o risco do HIV", critica a médica. "Afinal, a justificativa ‘achei que nunca ia acontecer comigo’ foi a resposta mais freqüente entre esse segmento de usuários".

Segundo ela, os próprios relatos espontâneos dos pesquisados evidenciaram a inadequação da linguagem e da abordagem do material produzido para a prevenção à Aids entre consumidores de drogas: "Eles salientaram o uso de termos pouco claros ou de difícil interpretação pelos usuários de drogas em geral, além da ausência de vocábulos que fazem parte de seu glossário particular".

"Outra crítica", continua, "foi a não inclusão de situações de risco em potencial, como o compartilhamento do ‘cachimbo’ no uso do crack". A psiquiatra não descarta que essa prática, relatada por 95,2% dos entrevistados, contribua significativamente para o aumento da margem de risco de contaminação: "Geralmente, esses apetrechos são improvisados com latas, antenas de carros e outros materiais que, ao serem manipulados, podem resultar em partes cortantes. Como o crack é costumeiramente fumado em grupo, se houver ferimentos de mucosas, o perigo de infecção está colocado". Ela ressalva, porém, que a pesquisa não averiguou essa hipótese em nível laboratorial.

Em compensação, a médica obteve um dado capaz de forçar uma revisão estatística mundial: a faixa etária dos jovens que se tornam UDIs (usuários de drogas injetáveis) pode estar sofrendo um recuo. "Estudos internacionais situavam a média de idade, até agora, em 19 anos; minha pesquisa aponta para um ano a menos", revela. Renata incluiu essa informação no comunicado ao Ministério da Saúde do Brasil.

Roleta Russa

dos 252 pesquisados portavam HIV , sendo 33% entre UDIs (usuários de drogas injetáveis) e 11% entre UCs (usuários de crack)

51% não mudaram os hábitos, apesar de conhecerem os riscos

67% nunca usaram camisinha com o parceiro principal do sexo oposto

52% nunca usaram camisinha com parceiros ocasionais do sexo oposto

11% admitiram se prostituir em relações heterossexuais; desses, 56% nunca haviam usado camisinha

15% admitiram se prostituir em relações homossexuais; desses, só 8% responderam que sempre usaram camisinha e 46% fizeram uso ocasional do preservativo

Números cruéis, mas úteis

A psiquiatra Renata Azevedo não esconde que sentiu, na entrega dos resultados positivos para HIV, "a etapa mais difícil" do trabalho. "(...) embora a maioria dos participantes estivesse ‘protegido’ ou acolhido em seu local de tratamento, o momento em que um dependente opta por procurar tratamento costuma ser de esperança e otimismo. A descoberta de ser portador do HIV representou, portanto, intenso sofrimento para todos, porém não invalida o benefício trazido pelo diagnóstico precoce e a possibilidade de redução na disseminação do HIV", relata.

Afinal, sua tese foi concluída no momento em que o Ministério da Saúde divulga que, dos 169 milhões de brasileiros, 540 mil portam o HIV e, desses, 13% são crianças, adolescentes e jovens entre 10 e 24 anos. E um levantamento recente da OMS indica que jovens viciados se esquecem freqüentemente de usar camisinha, o que confirma que drogas são um dos mais importantes agentes de vulnerabilidade à Aids.

O Programa Conjunto da ONU para HIV/Aids (Unaids) situa o Brasil entre os quatro países do mundo com maior número de notificações. Em 1998, o Ministério da Saúde verificou que 25% dos casos notificados se relacionavam direta ou indiretamente a UDIs, com responsabilidade nos aumentos recentes na infecção de parceiras e em crianças, por transmissão vertical.

Finalmente, Campinas, cidade que serviu de base para a abordagem da pesquisadora, tem muito o que se beneficiar com esse trabalho. Em 1999, a Secretaria Municipal de Saúde comunicou que a principal via relatada de contaminação foi a sexual (43,4%), seguida da sangüínea (32,2%) e perinatal (2,2%). Porém, ao se dividir a transmissão sexual nas subcategorias hetero, homo e bi, e a via de transmissão sangüínea em UDI e transfusional, o UDI passa a ser a primeira subcategoria de transmissão.

A ‘dose’ que faltou no passado

"Se há uns 12 anos, rolasse um pouco mais de orientações claras e sem preconceitos, acho que eu não teria me contaminado. Ia dar um jeito de botar a saúde acima das drogas, apesar da vida zoada que levava". O depoimento é de Fábio (nome fictício), um dos jovens que integraram o grupo pesquisado. E atesta conclusões da médica: "Os usuários de cocaína estudados demonstraram ter acesso a informações sobre HIV e Aids, embora não fizessem pleno uso desses conhecimentos. Entretanto, de forma nenhuma, pareceram ser refratários a abordagens preventivas".

A memória de Fábio ainda é marcada pelo impacto do dia em que recebeu o diagnóstico de que era soropositivo. "Mas, com o tempo, com a cabeça mais fria, cheguei à conclusão de que foi uma oportunidade pra que eu começasse o tratamento mais cedo, o que me deu chance de mudar de rumo e ir garantindo minha qualidade de vida", pondera o ex-dependente, hoje estudante de fotografia.

Ele se diz "orgulhoso" de ter colaborado com a pesquisa: "É bom saber que a experiência da gente pode servir pra livrar a galera de hoje das roubadas da vida. Além disso, recebi um apoio psicológico, que era o que mais estava precisando no momento".

aids, eides, sida

Para o ouvinte de língua inglesa, Aids (eides) se entrelaça auditivamente como o verbo to aid – ajudar. Tal sonoridade convida a acreditar que o sujeito, ao se ver sentenciado pela palavra, se faz paciente e implora

aid-ajuda. Pelo mesmo raciocínio, nas línguas latinas "intrigaria" o fato de a tradução da sigla para Sida equivaler sonoramente a "Cida". Ou seja, o "hipocorístico" (reducionismo que visa conferir carinho a nomes próprios) daquelas que se chamam Aparecida, "senhora dos milagres".

A maldição do primo pobre

Em 1985, nos EUA, o contingente mais miserável dos dro-
gados, para quem a cocaína era cara demais, travou contato com as bem mais baratas pedrinhas ásperas e de um amarelado turvo que, ao serem fumadas em cachimbos improvisados (no Brasil, chamados de pipas), produziam efeito quase imediato. Era o advento do crack. Não uma droga nova, só um novo jeito de consumir cocaína.

O nome é uma onomatopéia inspirada pelos estalos emitidos na queima das lascas. Até então, o crack era produzido a partir da fusão, por calor, do cloridrato de cocaína com bicarbonato de sódio. Ao ser inalado, o princípio ativo da droga é absorvido rapidamente pelos capilares pulmonares, que o canalizam para a corrente sangüínea. O sistema nervoso central é atingido em, no máximo, três minutos. Embora mais lerdo que o propiciado pelo "pico" nas veias (efeito em dez segundos), o resultado do crack ainda se enquadra no que os usuários classificam de speed. Simplesmente aspirada, a cocaína pode demorar até meia hora para alcançar o efeito máximo.

Dos becos norte-americanos, o crack demorou uns cinco anos para se tornar de venda e uso freqüente nas grandes cidades brasileiras. No curso dessa "migração", já se começou a empregar a própria cocaína refinada na elaboração, o que praticamente eliminou a diferença de preços entre as duas modalidades da droga no mercado. Então, o que mantém o poder de atração do crack é justamente a velocidade com que causa o efeito euforizante.

Um efeito, contudo, que também se dissipa logo, no máximo em 20 minutos. Advém daí o poder viciante do crack: como se não bastasse a intensidade e quase imediata obtenção da euforia, o usuário é dominado pela "fissura" por nova pipada. E a maioria não mede esforços e riscos para isso.

Esse consumo desenfreado acelera os impactos físicos e psíquicos da droga. O sistema respiratório costuma ser o primeiro a ser afetado, com casos descritos até de edema pulmonar. Paralelamente, o viciado envereda por uma "montanha russa", que lhe reserva crises de ansiedade, hostilidade e depressão, até chegar, não raro, à chamada psicose cocaínica, marcada por delírios, mania de perseguição, enfim, todo um conjunto de sintomas que os próprios dependentes resumem no jargão nóia.

Por todas essas características, o consumo de crack tem se mostrado um incremento na violência urbana, incomparavelmente mais forte do que o proporcionado por qualquer outra droga até agora. Além do quê, como ressalta a tese de Renata Azevedo, ao degradar seu modo de vida, o dependente parte para relações sexuais descuidadas – muitas vezes no campo da prostituição, com vistas a conseguir manter o vício –, tornando-se um vetor em potencial para a disseminação de doenças sexualmente transmissíves.


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