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Jornal da Unicamp -- Março de 2001

Página 16

PESQUISA

A história recontada

Projeto resgata milhares de documentos inéditos e lança luz sobre o Brasil Colônia

Alvará (cópia) do rei D.João IV ordenando que minas de ouro e prata, já descobertas ou as por descobrir, passem a ser propriedade dos vassalos que as achem, desde que paguem os devidos quintos e se submetam ao Regimento, passado ao ( superintendente-geral das Minas do Brasil), Salvador Correia de Sá e Benevides, para administrar as minas de São Paulo e São Vicente. Por este regimento, as pessoas que descubram minas devem se apresentar ao provedor delas para registrar sua descoberta, procedendo à exploração às suas próprias custas no prazo de 30 dias, devem demonstrar o metal achado. Seguem-se as medidas do terreno a explorar, como conviver com os exploradores vizinhos e todos os procedimentos a seguir para mineração do ouro beta.

O verbete acima consta no catálogo Documentos manuscritos avulsos da Capitania de São Paulo (1644-1830), coordenado pelo historiador José Jobson de Andrade Arruda, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Mais que um mero registro de junho de 1644, revela uma ínfima parte do universo do Brasil Colônia, cuja história agora passa a ser revista com a conclusão do Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, trabalho que passa a limpo e disponibiliza, ao público, fatos até então desconhecidos, que mostram como transcorria o dia-a-dia em 18 capitanias, que hoje correspondem a 22 Estados, entre os séculos 16 e 19.

Iniciado em 1994 com recursos do Ministério da Cultura, o Projeto Resgate mobilizou cerca de uma centena de pesquisadores brasileiros e portugueses, que vasculharam o Arquivo Ultramarino de Lisboa em busca de documentos inéditos. Os números impressionam: pelo menos 250 mil documentos foram digitalizados, microfilmados e catalogados, num trabalho que envolveu cerca de 110 instituições e consumiu US$ 3 milhões. A parte de São Paulo, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), ficou em US$ 250 mil.

Não foram poucas as descobertas, sobretudo no terreno dos hábitos e costumes. Como observa Andrade Arruda no texto de apresentação do catálogo, "a administração colonial era onipresente, tudo via e ouvia, reportando-se aos poderosos d’além mar, uma espécie de panóptico de Foucault aclimatado ao Novo Mundo, capaz de devassar todos os aspectos da vida em colônia, do público ao privado, urdindo no sentido da elaboração de regras coletivas da convivência em condições tão singulares da existência, que era o viver em colônia".

E é justamente o "viver em colônia" que vem à tona na massa documental, pelo menos metade dela com a chancela do inedetismo. As histórias resgatadas derrubam velhas teorias e lançam luz sobre o período e sobre a historiografia oficial . A idéia do colono amorfo, por exemplo, cai por terra. Os documentos revelam que ele não só reivindicava seus direitos, como também promovia manifestações quando não era atendido. Os documentos revelam, também, segundo Andrade Arruda, a relação entre a Metrópole e as colônias, as mazelas da burocracia, as condições em que viviam índios, mulheres, escravos e degradados.

O historiador vai mais longe na apresentação do catálogo. "A documentação fala da produção, da questão essencial dos alimentos, da produção mercantil, das formas de apropriação do excedente via dízimos e impostos, da meticulosa organização do regime exploratório das minas de metais preciosos, da extração madereira. Fala do mapeamento do território, dos caminhos terrestres e fluviais, da ação incontida dos contrabandistas nas barras marítimas. Fala da vida religiosa, do comportamento dos eclesiásticos, de suas relações com as autoridades, entre si e com a população em geral. Fala de tudo, em suma, dos homens e dos anjos".

Além dos aspectos do cotidiano da população, o trabalho resgata um vasto material cartográfico, como também plantas de fortalezas, cadeias, igrejas, quartéis e outros prédios públicos. Esse material revela como os colonizadores controlavam o espaço geopolítico e detinham conhecimentos de estratégia avançados para a época. "Os exímios cartógrafos portugueses em seus ateliês distorciam propositadamente as dimensões, aproximando ou alongando as distâncias quando lhes convinha, belo exemplo de manipulação ideológica da cartografia", constata Andrade Arruda.

Velho sonho - Na verdade, o mutirão feito por pesquisadores e especialistas no Projeto Resgate concretiza um velho sonho, iniciado em 1838 com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, cujo objetivo era a recuperação da documentação referente à história do Brasil. Apesar das inúmeras missões enviadas a Portugal, as tentativas foram frustradas.

Mais que a concretização de um sonho, o fato de a documentação se tornar acessível ao público está deixando os pesquisadores entusiasmados. Sobre a capitania de São Paulo, por exemplo, estão prontos 11 CDs, que guardam 7 mil documentos. Desse material, 20 coleções foram enviadas para universidades públicas e arquivos estaduais, que receberam rolos de microfilmes.

Assim, o interessado em pesquisar pode solicitar a duplicação do documento desejado. Além disso, outros dois catálogos serão publicados e distribuídos a partir do dia 22 de abril. A Fapesp também pretende colocar todo o material na Internet. "A democratização da informação é fundamental. Só os privilegiados tinham acesso aos documentos, como era o caso dos bolsistas. Como pesquisador, meu sonho era disponibilizá-los para uma massa muito grande, o que agora se tornou possível", revela Andrade Arruda.


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