Crescimento e emprego:
perguntando ao governo
CLAUDIO
SALVADORI DEDECCA
O problema de geração
de emprego ocupou a arena principal das eleições
de 2002 em todos os níveis de governo. Não
faltaram motivos para justificar a relevância
do tema. Após mais de 20 anos de desempenho
insatisfatório da economia brasileira, a sociedade
almejava com vigor um período de crescimento
com geração de emprego e elevação
dos níveis de renda.
O primeiro ano do Governo Lula não
conseguiu sinalizar caminhos para a retomada sustentada
da economia. A situação crítica
de instabilidade trilhada a partir do final de 2002
exigia uma política que garantisse, por um
lado, a reconquista da capacidade de monitoramento
da economia e, por outro, que recompusesse as condições
mínimas para o crescimento sustentado do país.
Analistas mais cautelosos consideravam ser impossível
crescer em 2003. Acreditavam que a política
deveria restabelecer as condições de
monitoramento da economia, buscando fazê-la
sem provocar um agravamento das condições
de emprego e renda no país.
Passado esse primeiro ano, pode-se
afirmar que a política econômica obteve,
mesmo que considerado relevante, êxito parcial.
Mais uma vez, cabe ter uma postura cautelosa em relação
aos seus resultados. As principais conquistas foram
o controle da inflação, o restabelecimento
do fluxo de capitais externos e o superávit
comercial. As duas primeiras podem ser creditadas
à política econômica, enquanto
a última tem sua raiz no mercado interno contraído
e na situação favorável da economia
internacional. Quanto aos aspectos negativos cabe
ressaltar a manutenção de uma taxa de
juros real elevada que continuou alimentando o caráter
financeiro de valorização da riqueza
no país, a valorização cambial
em um contexto de reservas de moeda estrangeira relativamente
baixas e a necessidade de um superávit com
contração do gasto público sem
precedentes.
Os efeitos sociais dessa política
foram o crescimento do desemprego com redução
dos níveis de renda real e constrangimento
exacerbado da capacidade de gasto das políticas
sociais. A queda da renda per capita foi Il grande
finale dessa ópera.
No final de 2003, governo e sociedade começaram
a perguntar se o ano de dificuldades tinha valido
a pena e se ele havia criado as condições
para o crescimento a partir de 2004. As expectativas
de 2002 se fazem ainda mais presentes nesse início
do ano. O governo afirma ser possível atendê-las,
sob o argumento que a estabilidade econômica
criou as condições para o crescimento
sustentado da economia brasileira a partir desse ano.
Contudo, são parcos os sinais de recuperação
econômica sustentada.
A dúvida sobre a possibilidade
de um crescimento sustentado é reconhecida
pelo próprio governo, quando este defende uma
redução lenta da taxa de juros, necessária
para o monitoramento da situação de
estabilidade econômica relativa, e estima uma
taxa máxima de crescimento de 3,5% para 2004.
Essa taxa de crescimento, sem uma redução
mais rápida da taxa de juros, somente poderá
estar associada a uma redução do nível
de endividamento do Governo Federal, se os gastos
públicos continuarem sendo mantidos sob custódia.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
-
IPEA, o gasto efetivo do Governo
Federal cresceu 3% a.a., entre 1995 e 2001, enquanto
o gasto financeiro teve um incremento de 21% a.a.
Um baixo crescimento com taxa de juros elevada caracterizou
esse período, situação que foi
reforçada pela política econômica
no ano de 2003 e que não deve ser modificada
significativamente em 2004. Desse modo, é possível
prever crescimento máximo de 3,5% e um aumento
semelhante para o gasto público, desde que
as condições externas não sofram
maiores alterações.
Frente a esse quadro, cabe perguntar: é possível
esperar uma melhora significativa do mercado de trabalho?
Haverá uma recomposição apreciável
da renda, em especial dos salários?
Infelizmente, a resposta é
não. Poderá haver uma descompressão
do mercado de trabalho e alguma recuperação
dos níveis de renda. Entretanto, esse movimento
não deverá ser suficientemente vigoroso
para causar uma queda acentuada do desemprego com
aumento expressivo do emprego formal, em condições
de recompor o poder de compra dos trabalhadores. Cabe
agora explicitar o porquê desse prognóstico.
Um crescimento do PIB de 3,5%, com
um aumento da população brasileira de
1,7%, deverá permitir uma elevação
de 2% da renda per capita em 2004. Esse mesmo crescimento
deverá viabilizar um incremento máximo
do emprego formal de 1,5% contra um crescimento da
População
Economicamente Ativa, ao redor de
2,4%. Isto é, o crescimento do emprego formal
será insuficiente para induzir uma redução
do desemprego, necessitando-se, portanto, de um aumento
trabalho informal, geralmente observado em períodos
de recuperação econômica.
Esses elementos mostram a fragilidade
da recuperação econômica esperada
para o emprego e a renda. As condições
econômicas continuam ainda limitadas para permitir
um crescimento a uma taxa que gere um volume de empregos
compatível, ao menos, com aquela de incremento
da População Economicamente Ativa. Qualquer
modificação positiva do quadro atual
do mercado nacional de trabalho exige um crescimento
do produto superior a 5% a.a., por um período
prolongado. Ademais, a recuperação do
poder de compra dos trabalhadores depende de uma taxa
de crescimento desse porte associada a um aumento
virtuoso da produtividade. Isto é, não
assentado em mecanismos espúrios como a terceirização
de atividades.
Apresentadas essas observações,
cabe refletir se o quadro atual da economia tem condições
de ir lastreando um crescimento mais intenso ao longo
de 2004 e nos anos seguintes, que pudesse gerar empregos
em volume ponderável e viabilizar uma recuperação
da renda mais robusta nos próximos anos.
Apesar da grande expectativa em
relação a um crescimento mais acelerado,
não existem sinais que ela venha ocorrer proximamente.
Confirmado o prognóstico do governo sobre a
efetividade da política econômica, uma
elevação da taxa de crescimento depende
de um incremento do investimento privado e público
e da recuperação da renda dos trabalhadores.
Como apontado anteriormente, é
muito difícil que uma recuperação
do PIB de 3,5% possa gerar um aumento mais significativo
da renda per capita. Face o caráter desigual
de nossa distribuição de renda e o baixo
peso da renda do trabalho no PIB, inferior a 30%,
o crescimento esperado para 2004 não deverá
ter um impacto positivo sobre os salários e
o rendimento do trabalho autônomo.
Portanto, a aceleração
da taxa de crescimento depende da recuperação
do investimento, que nos últimos 20 anos não
tem conseguido superar a taxa anual de 15%. O aumento
do investimento é necessário mesmo que
o crescimento continue sendo induzido pelas exportações,
dado a situação de esgotamento da capacidade
produtiva em vários setores de nosso parque
industrial e a crescente precariedade do sistema de
infra-estrutura. Ademais, é preciso que o investimento
público seja revigorado tanto nos setores de
apoio à atividade econômica, como naqueles
voltados para a política social.
Será que as condições para elevação
da taxa de investimento encontram-se já estabelecidas?
Analisemos um pouco essa situação
tanto para o setor privado como para o público.
As decisões de investimento privado, tomadas
em 2004, deverão, em sua maioria, se traduzir
em aumento de capacidade produtiva somente daqui algum
tempo. Portanto, elas dependem da existência
de expectativas positivas em relação
ao comportamento da economia no próximo ano,
as quais ainda não estão delineadas
nesse momento. Além disso, a recuperação
do investimento exige disponibilidade de financiamento
de longo prazo e taxas de juros compatíveis
com os níveis de rentabilidade esperados.
Essas condições ainda
não se encontram estabelecidas.
Pode-se afirmar que, como no passado, essa sinalização
para o setor privado depende da retomada dos investimentos
do setor público e de suas linhas de financiamento
de longo prazo. Analisando as contas públicas,
nota-se um baixo nível de investimento do governo
nas áreas de habitação, transporte
e saneamento, que recomposto poderia servir de sinalizador
para o investimento do setor privado.
Contudo, esse papel do governo somente poderá
ser exercido se sua capacidade de gasto expandir acima
do crescimento do produto, o que dependeria de uma
maior disponibilidade de recursos. Esses poderiam
ter origem em um aumento da carga fiscal ou na redução
do superávit e dos custos de manutenção
da dívida pública. Essa situação
não se encontra no horizonte da política
econômica atual, que coloca sob sistemático
garrote a capacidade de gasto do setor público.
Portanto, cabe perguntar: existe
alguma outra brecha para recuperar o investimento
público nos marcos da política econômica
atual? Cabe ao governo responder por ser ele o principal
defensor da política. Até o presente
momento, ele não apresentou pistas claras pelas
quais o investimento público poderia se elevar,
respeitando-se os fundamentos da atual política
econômica. Nada foi colocado à sociedade
além da proposição Parceria Público-Privada
PPP, a qual depende ainda de discussão
e aprovação no Congresso Nacional.
Portanto, continua presente a pergunta colocada no
início desse ensaio: é possível
esperar uma melhora expressiva das condições
do mercado nacional de trabalho a partir de 2004?
A resposta positiva depende da capacidade
do governo sinalizar claramente as pistas para uma
trajetória de crescimento mais acelerado. Como
se procurou apontar nessas notas, não há
evidências que o governo tenha condições
de apresentá-las prontamente. E, desse modo,
cabe ao governo dizer à nação
quais os instrumentos da política atual que
podem consolidar as expectativas adequadas para a
recuperação do investimento necessária
para a aceleração da taxa de crescimento.
Sem que isso ocorra, não haverá melhora
significativa do mercado nacional de trabalho e nem
da renda. O desafio está com o governo e cabe
a ele mostrar a sociedade que sua política
é suficientemente eficaz para dele dar conta.
Claudio Salvadori Dedecca é professor
do Instituto de Economia da Unicamp