Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 242 - de 1º a 07 de março de 2004
Leia nessa edição
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Artigo: crescimento e emprego
Trabalho: virado do avesso
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O trabalho virado do avesso
Dois projetos de pesquisa formulados na Unicamp investigam a reestruturação produtiva e a jornada de trabalho no país

ÁLVARO KASSAB

O professor Ricardo Antunes: desemprego estrutural é decorrente de uma “liofilização organizacional”

O ineditismo é a linha comum de dois projetos de pesquisa, ambos coordenados por professores da Unicamp, sobre o mundo do trabalho no país. Os estudos desenredam as mazelas de um mercado que usurpou milhões de postos de trabalho a uma velocidade que apanhou os especialistas no contrapé. Baixada a poeira e constatado o óbvio – o desemprego é um problema planetário -, as teorias começaram a pulular. É corrente, entretanto, que raras pesquisas elegeram os trabalhadores como protagonistas.

Não é o caso dos dois projetos formulados na Unicamp.
Para onde vai o mundo do trabalho?, pesquisa coordenada pelo professor Ricardo Antunes, do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), esquadrinha há três anos diferentes categorias que tiveram, sobretudo ao longo dos anos 90, o seu poder de fogo reduzido por conta do que se convencionou chamar de reestruturação produtiva. Os primeiros resultados da pesquisa, que acabam de ser publicados com o sugestivo nome de O Avesso do Trabalho (Revista Idéia do IFCH, 484 pgs), mensuram o tamanho do estrago.

O professor Claudio Dedecca: mercado privilegia fatores econômicos em detrimento da reprodução social

Pesquisadores da Unicamp e de outras instituições (leia texto nesta página) foram a canaviais, entraram em boléias de caminhão, visitaram indústrias (metalúrgica e de calçados, entre outras), percorreram agências bancárias, vasculhando um universo cujos contornos – recentes, na maioria – desenham um quadro “que reflete as marcas do trabalho, caracterizadas pela superexploração e também pelas incertezas em relação ao futuro”, de acordo com Antunes.

Já o projeto do professor Claudio Salvadori Dedecca, do Instituto de Economia detém-se a um fenômeno pouco conhecido e estudado pela academia: o trabalho feito no âmbito domiciliar, invariavelmente desprezado pelas estatísticas oficiais. A pesquisa, que rendeu o ensaio Tempo, Trabalho e Gênero, está em fase inicial. Algumas das constatações, porém, desnudam uma realidade em que a mulher, empregada ou não, figura como a maior vítima de um mercado que, na visão de Dedecca, privilegia fatores econômicos em detrimento daquilo que ele chama de reprodução social.

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Um batente de 62 horas semanais

Quando fez a livre-docência, em 1997, o professor Claudio Salvadori Dedecca, do Instituto de Economia, sentiu-se incomodado com um aspecto de sua tese que ficou em aberto: o fato de o trabalho ser visto, pela maioria dos economistas, como uma atividade meramente econômica. Dedecca lembra que, apesar dessa visão começar a ser bombardeada pelo movimento feminista a partir dos anos 70, eram raros os levantamentos que levavam em conta o conjunto de trabalhos realizados no âmbito domiciliar. Uma prosaica pergunta introduzida na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD/IBGE) mudou as coisas. No questionário, o entrevistado é indagado se realiza trabalhos domésticos e qual é o tempo despendido nos afazeres. Os números, tornados públicos em 2001, se constituíram na ferramenta que faltava ao docente. “Sabia-se que o número de horas trabalhadas é alto, mas era desconhecido o tempo gasto nas atividades realizadas no domicílio, necessário para a reprodução social ”.

A partir da divulgação dos dados, o professor deu início à pesquisa. No estudo, Dedecca explicita as características do trabalho no capitalismo, mostra a importância e o uso do tempo nesse cenário, revela a correlação entre regulação do tempo e desigualdade e, por fim, avalia as condições brasileiras. Uma análise preliminar do que ocorre no país revela que o universo feminino é, de longe, o mais afetado pelas distorções. Concluiu-se, por exemplo, que a brasileira inserida no mercado de trabalho realiza, em média, 62 horas semanais – de 36 a 40 delas no seu ramo de atividade, e outras mais de duas dezenas no domicílio. Outro dado que chama a atenção é o tempo dedicado pelo desempregado aos afazeres domésticos. Enquanto nos homens é de 12 horas semanais, no caso das mulheres chega a 30 horas.

Dedecca esclarece que sua pesquisa terá continuidade, mas que algumas conclusões já emergem do estudo. A primeira explicita a jornada dupla de trabalho como uma realidade corrente no país. “Trata-se de um fato que não pode ser mais ignorado pelos economistas”. Fica patente também que caiu por terra o ideal da chamada semana inglesa de trabalho, uma das conquistas mais importantes da classe trabalhadora no século 20. Ao padronizar a jornada, explica Dedecca, a sociedade contemporânea viu facilitada sua tarefa de sincronizar o tempo nas duas dimensões – a do trabalho dito econômico e aquela para reprodução social, realizada no âmbito dos domicílios. A deterioração das relações nos dois campos produziu um descompasso cujos resultados, nefastos, já são visíveis e tendem a se agravar. “As pessoas passam, progressivamente, a sentir necessidade de mais um mês no ano para dar conta de suas demandas”, compara o pesquisador.

Segundo Dedecca, estudos indicam que, nas últimas duas décadas, os problemas nos domicílios cresceram na mesma proporção em que aumentou a pressão no mercado de trabalho. “Trata-se de uma lógica perversa, uma coisa completamente ensandecida. Para aqueles que trabalham, a dimensão do doméstico é esmagada”. No caso do desempregado, o inferno é outro: a ausência de ganho gera conflitos no ambiente domiciliar. Tais fatores, na opinião do pesquisador, reforçam a tese de que é necessário buscar a gestão adequada dos dois tempos. “É preciso articular e integrar essas duas dimensões e, mais do que isso, viabilizar o tempo de trabalho para reprodução social, rompendo sua subordinação à lógica do tempo de trabalho remunerado”. Dedecca reconhece que o assunto ainda é pouco discutido, embora o interesse dos sindicatos pelo tema tenha aumentado. Recentemente, o professor expôs seu ponto de vista em encontro promovido pela Secretaria Nacional das Mulheres Trabalhadoras da CUT.

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O déspota de si mesmo

O projeto Para onde vai o mundo do trabalho? não precisou recorrer à proto-história da economia e da sociologia para fazer um primeiro diagnóstico do que ocorreu nos últimos anos no país. Desprezou da mesma forma o “admirável mundo da empresa enxuta ”, como define o professor Ricardo Antunes. Seus pesquisadores, cerca de 20 espalhados por várias unidades da Unicamp, além de representantes da USP, Unesp-Marília, Universidade Federal de Uberlândia, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal da Bahia, apostaram em pesquisas localizadas, feitas em seis ramos produtivos distintos, sempre pegando o trabalhador como foco. Bancada pelo CNPq, a pesquisa correu paralela ao projeto Gênero e exclusão social, coordenado pelas professoras Maria Aparecida Moraes Silva (Unesp-Araraquara e Universidade Federal de São Carlos) e Vera Lúcia Navarro (USP-Ribeirão Preto). Trabalhos dos dois projetos convergiram na publicação dos ensaios na revista Idéias.

O projeto transcende os números decorrentes da reestruturação produtiva. Procura traduzi-los. Exemplo emblemático foi o que ocorreu com os quadros do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas. Em 1989, o número de postos de trabalhos batia na casa dos 70 mil. Os empregados hoje não passam de 35 mil. A ceifa, de resto, varreu todas as categorias estudadas. Na análise do professor Antunes, alguns fatores contribuíram para um quadro tão desolador. São eles a reorganização do processo produtivo, o incremento tecnológico e a intensificação do ritmo de trabalho, no qual a multifuncionalidade, a terceirização e o enxugamento passaram a ser moeda corrente.

Ricardo Antunes recorre à química para fundamentar as conclusões contidas no projeto. Para o professor do IFCH, o desemprego estrutural é decorrente de uma “liofilização organizacional” que foi muito profunda. “Liofilizar é enxugar. Muita gente vai perguntar qual o problema de uma planta reduzir de 40 mil para 20 mil postos, se ela produz três vezes mais. Acho ótimo, desde que você saiba o que fazer com os 20 mil que perderam o emprego”. O docente ilustra o diagnóstico com números locais e mundiais. “A taxa de desemprego em algumas capitais brasileiras já está na faixa dos 20%. A OIT fala em 185 milhões de desempregados no mundo, além de outros 850 milhões de precarizados”.

Tamanho déficit na oferta, segundo o professor, contribuiu para que o empregado assumisse papéis até então desconhecidos. Não por acaso, diz o docente, o trabalhador passa a ocupar, no ideário patronal, o papel de colaborador e de parceiro, na verdade eufemismos que mascaram a condição de assalariamento. A fatura dessa contrapartida é alta. “Há um estressamento do trabalho. O empregado não sabe se amanhã vai conseguir sobreviver ao emprego”, avalia Antunes, para quem, ao ser instigado à condição de responsável pela qualidade do trabalho que executa, o trabalhador passa a ser “um déspota de si mesmo”.

Na outra ponta, essa instabilidade abre caminho para o descumprimento da legislação, iniciado no governo Collor e hoje prática recorrente, sobretudo no que diz respeito aos direitos sociais do trabalho. Uma “flexibilização” servida em fatias. “Como não foi possível implodir a CLT por inteiro, os empresários fizeram as mudanças pela margem”, diagnostica Antunes. Uma margem que, pelos cálculos de Antunes, leva à outra. “Temos uma informalização do trabalho que já chega a 58% da classe trabalhadora”, contabiliza o professor, para quem a promessa de criação de dez milhões de empregos feita por Lula é “doidivanas”. “O governo Lula é hoje um paladino da política do arrocho salarial e do neoliberalismo. Não enfrentou o FMI, o endividamento externo e interno, a política de juros e muito menos investiu no adensamento interno com o incremento da política de bens de consumo popular. O PT virou o MDB dos anos 2000, virou um governo contingente”.

 

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