O trabalho virado do avesso
Dois projetos de pesquisa formulados
na Unicamp investigam a reestruturação
produtiva e a jornada de trabalho no país
ÁLVARO
KASSAB
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O
professor Ricardo Antunes: desemprego estrutural
é decorrente de uma liofilização
organizacional |
O ineditismo é a linha comum
de dois projetos de pesquisa, ambos coordenados por
professores da Unicamp, sobre o mundo do trabalho
no país. Os estudos desenredam as mazelas de
um mercado que usurpou milhões de postos de
trabalho a uma velocidade que apanhou os especialistas
no contrapé. Baixada a poeira e constatado
o óbvio o desemprego é um problema
planetário -, as teorias começaram a
pulular. É corrente, entretanto, que raras
pesquisas elegeram os trabalhadores como protagonistas.
Não é o caso dos dois
projetos formulados na Unicamp.
Para onde vai o mundo do trabalho?, pesquisa coordenada
pelo professor Ricardo Antunes, do Departamento de
Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH), esquadrinha há três anos
diferentes categorias que tiveram, sobretudo ao longo
dos anos 90, o seu poder de fogo reduzido por conta
do que se convencionou chamar de reestruturação
produtiva. Os primeiros resultados da pesquisa, que
acabam de ser publicados com o sugestivo nome de O
Avesso do Trabalho (Revista Idéia do IFCH,
484 pgs), mensuram o tamanho do estrago.
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O
professor Claudio Dedecca: mercado privilegia
fatores econômicos em detrimento da reprodução
social
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Pesquisadores da Unicamp e de outras
instituições (leia texto nesta página)
foram a canaviais, entraram em boléias de caminhão,
visitaram indústrias (metalúrgica e
de calçados, entre outras), percorreram agências
bancárias, vasculhando um universo cujos contornos
recentes, na maioria desenham um quadro
que reflete as marcas do trabalho, caracterizadas
pela superexploração e também
pelas incertezas em relação ao futuro,
de acordo com Antunes.
Já o projeto do professor
Claudio Salvadori Dedecca, do Instituto de Economia
detém-se a um fenômeno pouco conhecido
e estudado pela academia: o trabalho feito no âmbito
domiciliar, invariavelmente desprezado pelas estatísticas
oficiais. A pesquisa, que rendeu o ensaio Tempo, Trabalho
e Gênero, está em fase inicial. Algumas
das constatações, porém, desnudam
uma realidade em que a mulher, empregada ou não,
figura como a maior vítima de um mercado que,
na visão de Dedecca, privilegia fatores econômicos
em detrimento daquilo que ele chama de reprodução
social.
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Um
batente de 62 horas semanais
Quando fez a livre-docência,
em 1997, o professor Claudio Salvadori Dedecca, do
Instituto de Economia, sentiu-se incomodado com um
aspecto de sua tese que ficou em aberto: o fato de
o trabalho ser visto, pela maioria dos economistas,
como uma atividade meramente econômica. Dedecca
lembra que, apesar dessa visão começar
a ser bombardeada pelo movimento feminista a partir
dos anos 70, eram raros os levantamentos que levavam
em conta o conjunto de trabalhos realizados no âmbito
domiciliar. Uma prosaica pergunta introduzida na Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD/IBGE)
mudou as coisas. No questionário, o entrevistado
é indagado se realiza trabalhos domésticos
e qual é o tempo despendido nos afazeres. Os
números, tornados públicos em 2001,
se constituíram na ferramenta que faltava ao
docente. Sabia-se que o número de horas
trabalhadas é alto, mas era desconhecido o
tempo gasto nas atividades realizadas no domicílio,
necessário para a reprodução
social .
A partir da divulgação
dos dados, o professor deu início à
pesquisa. No estudo, Dedecca explicita as características
do trabalho no capitalismo, mostra a importância
e o uso do tempo nesse cenário, revela a correlação
entre regulação do tempo e desigualdade
e, por fim, avalia as condições brasileiras.
Uma análise preliminar do que ocorre no país
revela que o universo feminino é, de longe,
o mais afetado pelas distorções. Concluiu-se,
por exemplo, que a brasileira inserida no mercado
de trabalho realiza, em média, 62 horas semanais
de 36 a 40 delas no seu ramo de atividade,
e outras mais de duas dezenas no domicílio.
Outro dado que chama a atenção é
o tempo dedicado pelo desempregado aos afazeres domésticos.
Enquanto nos homens é de 12 horas semanais,
no caso das mulheres chega a 30 horas.
Dedecca esclarece que
sua pesquisa terá continuidade, mas que algumas
conclusões já emergem do estudo. A primeira
explicita a jornada dupla de trabalho como uma realidade
corrente no país. Trata-se de um fato
que não pode ser mais ignorado pelos economistas.
Fica patente também que caiu por terra o ideal
da chamada semana inglesa de trabalho, uma das conquistas
mais importantes da classe trabalhadora no século
20. Ao padronizar a jornada, explica Dedecca, a sociedade
contemporânea viu facilitada sua tarefa de sincronizar
o tempo nas duas dimensões a do trabalho
dito econômico e aquela para reprodução
social, realizada no âmbito dos domicílios.
A deterioração das relações
nos dois campos produziu um descompasso cujos resultados,
nefastos, já são visíveis e tendem
a se agravar. As pessoas passam, progressivamente,
a sentir necessidade de mais um mês no ano para
dar conta de suas demandas, compara o pesquisador.
Segundo Dedecca, estudos
indicam que, nas últimas duas décadas,
os problemas nos domicílios cresceram na mesma
proporção em que aumentou a pressão
no mercado de trabalho. Trata-se de uma lógica
perversa, uma coisa completamente ensandecida. Para
aqueles que trabalham, a dimensão do doméstico
é esmagada. No caso do desempregado,
o inferno é outro: a ausência de ganho
gera conflitos no ambiente domiciliar. Tais fatores,
na opinião do pesquisador, reforçam
a tese de que é necessário buscar a
gestão adequada dos dois tempos. É
preciso articular e integrar essas duas dimensões
e, mais do que isso, viabilizar o tempo de trabalho
para reprodução social, rompendo sua
subordinação à lógica
do tempo de trabalho remunerado. Dedecca reconhece
que o assunto ainda é pouco discutido, embora
o interesse dos sindicatos pelo tema tenha aumentado.
Recentemente, o professor expôs seu ponto de
vista em encontro promovido pela Secretaria Nacional
das Mulheres Trabalhadoras da CUT.
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O déspota de si mesmo
O projeto Para onde vai o
mundo do trabalho? não precisou recorrer
à proto-história da economia e
da sociologia para fazer um primeiro diagnóstico
do que ocorreu nos últimos anos no país.
Desprezou da mesma forma o admirável
mundo da empresa enxuta , como define
o professor Ricardo Antunes. Seus pesquisadores,
cerca de 20 espalhados por várias unidades
da Unicamp, além de representantes da
USP, Unesp-Marília, Universidade Federal
de Uberlândia, Universidade Federal de
Santa Catarina e Universidade Federal da Bahia,
apostaram em pesquisas localizadas, feitas em
seis ramos produtivos distintos, sempre pegando
o trabalhador como foco. Bancada pelo CNPq,
a pesquisa correu paralela ao projeto Gênero
e exclusão social, coordenado pelas professoras
Maria Aparecida Moraes Silva (Unesp-Araraquara
e Universidade Federal de São Carlos)
e Vera Lúcia Navarro (USP-Ribeirão
Preto). Trabalhos dos dois projetos convergiram
na publicação dos ensaios na revista
Idéias.
O projeto transcende os números
decorrentes da reestruturação
produtiva. Procura traduzi-los. Exemplo emblemático
foi o que ocorreu com os quadros do Sindicato
dos Metalúrgicos de Campinas. Em 1989,
o número de postos de trabalhos batia
na casa dos 70 mil. Os empregados hoje não
passam de 35 mil. A ceifa, de resto, varreu
todas as categorias estudadas. Na análise
do professor Antunes, alguns fatores contribuíram
para um quadro tão desolador. São
eles a reorganização do processo
produtivo, o incremento tecnológico e
a intensificação do ritmo de trabalho,
no qual a multifuncionalidade, a terceirização
e o enxugamento passaram a ser moeda corrente.
Ricardo Antunes recorre à
química para fundamentar as conclusões
contidas no projeto. Para o professor do IFCH,
o desemprego estrutural é decorrente
de uma liofilização organizacional
que foi muito profunda. Liofilizar é
enxugar. Muita gente vai perguntar qual o problema
de uma planta reduzir de 40 mil para 20 mil
postos, se ela produz três vezes mais.
Acho ótimo, desde que você saiba
o que fazer com os 20 mil que perderam o emprego.
O docente ilustra o diagnóstico com números
locais e mundiais. A taxa de desemprego
em algumas capitais brasileiras já está
na faixa dos 20%. A OIT fala em 185 milhões
de desempregados no mundo, além de outros
850 milhões de precarizados.
Tamanho déficit na
oferta, segundo o professor, contribuiu para
que o empregado assumisse papéis até
então desconhecidos. Não por acaso,
diz o docente, o trabalhador passa a ocupar,
no ideário patronal, o papel de colaborador
e de parceiro, na verdade eufemismos que mascaram
a condição de assalariamento.
A fatura dessa contrapartida é alta.
Há um estressamento do trabalho.
O empregado não sabe se amanhã
vai conseguir sobreviver ao emprego, avalia
Antunes, para quem, ao ser instigado à
condição de responsável
pela qualidade do trabalho que executa, o trabalhador
passa a ser um déspota de si mesmo.
Na outra ponta, essa instabilidade
abre caminho para o descumprimento da legislação,
iniciado no governo Collor e hoje prática
recorrente, sobretudo no que diz respeito aos
direitos sociais do trabalho. Uma flexibilização
servida em fatias. Como não foi
possível implodir a CLT por inteiro,
os empresários fizeram as mudanças
pela margem, diagnostica Antunes. Uma
margem que, pelos cálculos de Antunes,
leva à outra. Temos uma informalização
do trabalho que já chega a 58% da classe
trabalhadora, contabiliza o professor,
para quem a promessa de criação
de dez milhões de empregos feita por
Lula é doidivanas. O
governo Lula é hoje um paladino da política
do arrocho salarial e do neoliberalismo. Não
enfrentou o FMI, o endividamento externo e interno,
a política de juros e muito menos investiu
no adensamento interno com o incremento da política
de bens de consumo popular. O PT virou o MDB
dos anos 2000, virou um governo contingente.
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