ARTIGO
A propósito do Araguaia
SANDRA
NEGRAES BRISOLLA
Osvaldo Orlando da Costa era um
homem grande e simples, como seu nome. Tinha mais
de dois metros de altura, era negro e bonito. Eu o
conheci quando ele terminava o curso de Engenharia
na Universidade de Praga, na Checoslováquia,
no início dos anos 60. Eu estava chegando para
estudar e ele já estava quase de saída.
Osvaldão, como era mais conhecido,
era um líder inato. Aliava o bom humor contagiante
com uma bondade infinita. Sempre disponível
para estudar com os colegas checos e latino-americanos,
andava permanentemente rodeado de estudantes, falando
alegremente e chamando a atenção dos
circunstantes. Sua capacidade de liderança
era inconteste: chegou a participar da organização
de um dos primeiros centros acadêmicos da Universidade
de Praga. Alguns anos mais tarde esse tipo de atividades
desembocaria na Primavera de Praga, um movimento que
se iniciou a partir da mobilização de
intelectuais e de estudantes.
Figura exótica no contexto europeu dos anos
60, Osvaldão era foco de curiosidade por onde
quer que andasse:
- Quando cheguei, os meninos
passavam saliva no dedo e esfregavam meu braço,
para ver se a cor saía! As pessoas passavam
a mão no meu cabelo! Nunca tinham visto um
negro antes. - ele me contava.
Chegou até a figurar em vários
filmes na Checoslováquia. Sua estampa era cobiçada
pelos cineastas também no Brasil, onde queriam
que ele interpretasse Zumbi
dos Palmares.
Uma vez foi um grupo de brasileiros
a uma festa de comemoração do aniversário
da independência do Quênia. Osvaldão
fez o maior sucesso! Um dos integrantes do grupo de
repente virou-se para os demais e disse:
- Vou-me embora, gente! As
checas que estão nessa festa estão a
fim de preto, não a fim de branco! Aqui o preconceito
existe, sim. É francamente favorável
aos negros! - completou. E saiu.
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Osvaldo
Orlando da Costa, o Osvaldão: desaparecido
em Xambioá, em 1974 |
Em outra ocasião estávamos
percorrendo o Campus da Escola de Engenharia da Universidade
de Praga e Osvaldão cruzou com alguns amigos
africanos, que conversaram com ele em francês
por alguns minutos. Quando se afastaram, pôs-se
pensativo e comentou:
- É, Sandrinha. Preciso
mesmo voltar pro Brasil! Onde já se viu preto
falando francês? Tô ficando besta, sô!
- e soltou aquela gargalhada.
Já estava preparando sua
volta. Tinha uma namorada loiríssima, quase
da sua altura. Quando chegou a época de voltar
pro Brasil, a checa queria acompanhá-lo. Mas
ele ponderava, decidido:
- Você acha que eu vou
poder passear com uma lourona dessas na calçada
de Copacabana? Vou ser linchado !!!
Pouco tempo depois regressou à
terra natal, deixando a loira em Praga, inconsolável.
Nunca mais o vi. Um dia eu também voltei ao
Brasil. Alguns anos mais tarde fiquei sabendo que
Osvaldão era um dos líderes mais destacados
da guerrilha do Araguaia. Levou consigo para Ximbioá
Gilberto Olímpio, com quem havia estudado em
Praga.
Gilberto não chegou a terminar
o curso de Engenharia, preferindo seguir as pegadas
de seu amigo. Osvaldão foi um dos últimos
a desaparecer no Araguaia, em 1974.
Hoje, 21 anos depois, procuro ansiosa seu nome entre
os desaparecidos.
Percorrendo a lista por ordem alfabética,
passo primeiro pelo nome de Gilberto Olímpio
Maria, estudante, PC do B - Araguaia, 1973. E mais
adiante, para meu espanto, leio: Osvaldo Orlando da
Costa, lutador de boxe, PC do B - Araguaia, 1974.
Meu susto foi por não ver engenheiro,
no lugar da profissão, ao lado de seu nome.
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Sandra
Negraes Brisolla, professora aposentada e voluntária
do Depto. de Política Científica
e Tecnológica da Unicamp, morou dois anos
na Checoslováquia, entre 1962 e 1964 |
Mas não sei por quê
me espantei! Afinal, lutador de boxe combina
melhor com seu porte e sua cor! E foi então
que concordei com ele! Pois é, Osvaldão!
Você estava coberto de razão! Não
dava pra trazer uma loira de quase dois metros de
altura com você em 1963! Você teria sido
linchado! Onze anos antes de ser desaparecido!
Dizia-se na época que perto
de Xambioá havia uma reserva de mineral radioativo,
que era alvo de contrabando por helicópteros
norte-americanos que pousavam no campo, seus tripulantes
desciam com roupas especiais e abriam a porta para
que os moradores locais carregassem o minério,
sem proteção nenhuma, a troco de algum
dinheiro. Não sei se era lenda!
Hoje estão revirando o terreno
de Xambioá em busca dos restos de Osvaldão
e seus companheiros, 30 anos depois do massacre de
que foram vítima.
Homens como Osvaldão, sacrificados na luta
contra a ditadura, teriam feito muita diferença
na construção de um Brasil melhor, depois
da democratização! Osvaldão não
era o ser insensível que se acredita encarnar
nos guerrilheiros por força das condições
adversas. Transpirava solidariedade e o que o movia
não era nenhum complexo ou frustração,
a não ser com as condições inumanas
em que vivem seus concidadãos. Foi por isso
que se transformou em lenda! Osvaldão antes
disso já era um caso de sucesso!
Encontrar neste momento seus restos
mortais, assim como o de seus companheiros, e prestar-lhe
uma homenagem, não vai reparar o mal causado
por seu assassinato, mas vai manter viva sua memória,
para que outros se mirem em seu exemplo, tirando dele
a lição de que mais importante que ter
sucesso na vida é dar a ela algum sentido!
Um sentido que resgate a dignidade do homem brasileiro!