Nepo lança livros sobre saúde
reprodutiva, gênero e sexualidade
Obra conta a trajetória do
programa da Unicamp que
se transformou em referência nacional
CLAYTON
LEVY
|
A
demógrafa Elza Berquó: Comprometimento
com o rigor científico, com o papel político
do conhecimento e com o saber humanizado |
O Núcleo de Estudos da
População (Nepo), da Unicamp, considerado
referência nacional em pesquisas demográficas,
lança no próximo dia 17, no Museu da
Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, duas importantes
publicações sobre saúde reprodutiva,
gênero e sexualidade no Brasil. O livro Construindo
Novos Caminhos, organizado pela demógrafa Elza
Berquó e pela socióloga Maria Isabel
Baltar da Rocha, faz um balanço dos trabalhos
desenvolvidos nos últimos 12 anos pelo Programa
de Saúde Reprodutiva e Sexualidade do Nepo,
enquanto a série Cadernos de Saúde Pública,
editada pela Escola Nacional de Saúde Pública,
ligada à Fundação Oswaldo Cruz,
apresenta um número especial com o tema Gênero,
Sexualidade e Saúde Reprodutiva: A Constituição
de Um Novo Campo na Saúde Coletiva, que reúne
25 artigos científicos de bolsistas, docentes
e coordenadores do Programa Interinstitucional de
Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade
e Saúde Reprodutiva, também ligado ao
NEPO. Ambos foram financiados pela Fundação
Ford.
Escrito em linguagem jornalística,
Construindo Novos Caminhos faz um relato minucioso
das atividades e resultados do Programa de Saúde
Reprodutiva e Sexualidade, desde 1992, quando foi
criado pelo Nepo em parceria com o Centro de Pesquisas
e Controle das Doenças Materno-Infantis de
Campinas (Cemicamp). O programa gerou várias
pesquisas e livros que servem de subsídio para
políticas públicas, integrou projetos
interinstitucionais e criou um Programa de Estudos
pioneiro nessa área.
Ao todo, 210 pessoas já
passaram pelo programa desde a sua criação,
pesquisando termas relacionados à sexualidade;
concepção e anticoncepção;
doenças sexualmente transmissíveis e
HIV/Aids; gravidez, parto, puerpério e amamentação;
aborto; e metodologia de pesquisa. Alguns dos participantes
também aparecem no livro, relatando as ações
que conseguiram realizar com base no conhecimento
obtido no Programa. Entre eles, a ministra da secretaria
de Promoção da Igualdade Racial, Matilde
Ribeiro.
O Programa se realizou
num momento em que os direitos reprodutivos, os direitos
sexuais, a saúde reprodutiva e a saúde
sexual eram temas que estavam em discussão
no âmbito internacional e também no das
políticas públicas, conta a socióloga
Maria Isabel Baltar da Rocha.
O outro trabalho a ser lançado,
um número especial da série Cadernos
de Saúde Pública, com o tema Gênero,
Sexualidade e Saúde Reprodutiva: A Constituição
de Um Novo Campo na Saúde Coletiva, é
fruto do Programa Interinstitucional de Treinamento
em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade
e Saúde Reprodutiva, que nasceu do Programa
de Estudos com o objetivo de formar novos investigadores
sobre esse tema em várias regiões do
País.
Trata-se de um esforço
conjunto de docentes e pesquisadores do Nepo; Instituto
de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro; Escola Nacional de Saúde Pública
da Fundação Oswaldo Cruz; Instituto
de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde
de São Paulo; e do Instituto de Saúde
Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Não
é possível encontrar em uma única
instituição todas essas especificidades;
trabalhar gênero, sexualidade e saúde
reprodutiva, a partir de metodologias qualitativas
e quantitativas, afirma Regina Barbosa, que
integra a equipe de coordenação e responsável
pelo trabalho no Nepo.
Além da formação
de 188 alunos e 84 bolsistas, os resultados do Programa
podem ser conferidos nos artigos científicos
que compõem a publicação. Os
trabalhos focalizam temas como contracepção
e gravidez na adolescência; pedofilia na mídia
impressa; violência contra mulheres; práticas
sexuais de jovens homossexuais; esterilização
feminina; e prevenção de DST/Aids, entre
outros. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, a demógrafa
Elza Berquó fala sobre os trabalhos.
Os
multiplicadores do conhecimento
JU
Que balanço a senhora faz desses doze anos
do Programa de Saúde Reprodutiva desenvolvido
pelo Nepo?
Elza Berquó O balanço
é extremamente positivo. Abriu-se um campo
novo na confluência das ciências sociais
com as ciências da saúde. Durante todo
esse período preparamos um grande número
de pesquisadores, profissionais da saúde e
ativistas da sociedade civil sobre a questão
dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.
As pessoas que passaram pelo Nepo se constituíram
em multiplicadores desse tipo de conhecimento, sempre
comprometido com o rigor científico, com o
papel político do conhecimento e com o saber
humanizado.
JU Já é
possível medir o impacto que a multiplicação
desse conhecimento está gerando na sociedade?
Elza Berquó Não há
dúvida sobre isso. Muitas das pessoas que atuam
nas áreas de saúde da mulher, quer no
ministério (da Saúde) ou em várias
secretarias de estado, passaram por nós. Produziram
e estão produzindo muita coisa nessa direção.
A própria Lei do Planejamento Familiar de 96,
por exemplo, surge no Ministério da Saúde
no momento em que a colaboradora do programa do Nepo
era responsável pela área de Saúde
da Mulher. Ela participou de vários programas
que promovemos e constituiu um elemento importante
na gestão publica. Isso se repete em várias
secretarias de saúde em muitos estados do Brasil.
JU — Qual a evolução
demográfica brasileira para as próximas
décadas?
Elza Berquó O crescimento anual
da população vem declinando sistematicamente.
Isso ocorre porque a fecundidade também está
declinando. Ela sofreu um declínio de 1991
para 2000 da ordem de 12% e vai continuar a declinar.
JU Quando o Brasil chegará
ao nível da simples reposição
demográfica?
Elza Berquó Os estudos que estou
conduzindo no momento, com base nos censos de 1991
e 2000, mostram que no Brasil, em 2000, 54% das mulheres
em idade reprodutiva já estavam abaixo do nível
de reposição. É bastante significativo.
Em 1991 isso correspondia a 45% dessas mulheres. Com
cinco ou mais filhos em 1991 estava a 11% e hoje é
6%. Isso vem declinando em todas as grande regiões
do Brasil. Nas áreas urbanas, 63% das mulheres
em idade reprodutiva em 2000 já estavam abaixo
do nível de reposição e apenas
1% com cinco ou mais filhos. Então, não
há dúvida nenhuma que estamos caminhando
para uma fecundidade cada vez menor.
JU Onde se concentra essa
maior parcela de fecundidade, que em 2000 era de 6%?
Elza Berquó Principalmente no
Norte e Nordeste, nas áreas rurais e entre
a população negra.
JU É possível
fazer uma projeção para as próximas
décadas?
Elza Berquó Não fizemos
isso ainda. Mas se fôssemos projetar diria que
em 2010 a proporção de mulheres urbanas
na idade reprodutiva com fecundidade abaixo do nível
de reposição deverá chegar a
70%. A tendência é muito veloz.
JU E quais as razões
para essa veloz redução na fecundidade
das mulheres urbanas?
Elza Berquó A experiência
histórica de outros países, principalmente
da Europa, mostra que não se reverte rapidamente
uma tendência. Criar filhos fica cada vez mais
difícil. As pessoas preferem ter menos filhos
para criá-los melhor. Além disso, cada
vez mais as mulheres adiam o casamento visando a constituição
da família, o que não significa que
também adiem sua iniciação sexual.
Elas também cotejam entre se realizar profissionalmente
e ter família.
JU Qual a situação
da saúde reprodutiva no Brasil atualmente?
Elza Berquó Comparando com outros
países, acho que o Brasil tem políticas
muito avançadas. A Lei do Planejamento Familiar
e a portaria sobre a esterilização voluntária
são extremamente avançadas. O Brasil
continua fiel aos princípios defendidos nas
conferências das Nações Unidas,
destacando-se a Conferência Internacional de
População e Desenvolvimento, realizada
no Cairo em 1994, e a Conferência Cairo + 5,
princípios estes que estabeleceram os direitos
sexuais e reprodutivos como direitos humanos. Não
posso garantir que lá na ponta dos serviços
de saúde, em todos os rincões do Brasil,
será possível encontrar todos os métodos.
Mas, em princípio, é o que diz a Lei
do Planejamento Familiar.
JU — A lei de planejamento familiar
no Brasil, sancionada em 1996, regulamentou a esterilização
voluntária. Que balanço a senhora faz
dessa medida?
Elza Berquó O que tem de fundamental
nisso é que a esterilização masculina
ou feminina passou a ser um direito reprodutivo. Colocada
a questão nesse plano, era preciso normatizar
a sua prática, porque antes ela era proibida
pelo Código Penal, mas todo mundo fazia. E
para fazer recorria à cesariana. Daí
o aumento vertiginoso das cesarianas no Brasil. A
normatização da esterilização,
no caso das mulheres, também pretendeu uma
redução nas cesarianas. Não tenho
números exatos, mas posso garantir que estão
caindo.
JU — Um estudo coordenado pela
senhora em 2003 sobre direitos reprodutivos de mulheres
e homens face à nova legislação
sobre esterilização voluntária,
mostrou que ainda falta muito para que a população
tenha garantia de acesso a esses serviços nos
hospitais públicos. Quais os principais entraves?
Elza Berquó Verificamos que das
mulheres que recorrem ao serviço público
para esterilização apenas 30% conseguem
realizá-la. Muitos diretores de hospitais e
centros de saúde não concordam com os
critérios que estão colocados na lei,
determinando que a mulher tenha mais de 25 anos ou
pelo menos dois filhos vivos. Muitos acham que seria
preciso a mulher reunir as duas condições.
Começaram a achar que era muito cedo 25 anos
e, dois filhos, muito pouco.
JU — Sob a perspectiva de gênero,
o estudo também mostrou que os pedidos de esterilização
masculina obtinham mais sucesso que os de mulheres.
Quais as razões disso?
Elza Berquó O homem tem mais
sucesso porque a vasectomia pode ser feita em ambulatório.
A mulher precisa ir para o hospital, onde vai competir
com outros casos mais sérios do que uma laqueadura.
JU Qual é a prioridade
para o Brasil no âmbito de uma política
para a saúde reprodutiva?
Elza Berquó A prioridade é
informação e educação.
Temos de ter educação sexual nas escolas.
Nada de posturas discriminatórias, conservadoras
e moralistas, porque essa não é a linguagem
do jovem. Precisamos de muita informação
e muito acesso da população à
camisinha e à contracepção de
emergência. O jovem deve fazer sexo com dupla
proteção. Contra a Aids e contra a concepção.
Numa perspectiva mais ampla, manter a eficiência
dos programas de pré-natal e prevenção
contra o câncer.