Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 244 - de 15 a 21 de março de 2004
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Viajando no tempo pela
rodovia dos Bandeirantes
Pesquisadora do Instituto de Geociências descobre 96 fósseis de plantas com 310 milhões de anos

LUIZ SUGIMOTO

Fóssil vegetal encontrado na rodovia dos Bandeirantes: descoberta na folga de sábado

Os dois mil anos depois de Cristo, essenciais para nossa transformação no que somos hoje, correspondem a mero cisco dentro da tabela do tempo geológico. Mas foi em 1999, às margens da moderna rodovia dos Bandeirantes, que a paleobotânica Fresia Ricardi Branco descobriu um argumento sólido para sustentar o que costuma dizer a leigos e alunos do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp: que a paleontologia – estudo dos fósseis de animais e vegetais – está bem mais próxima de nós do que supomos; neste caso, no acostamento de uma estrada.

As obras de prolongamento no quilômetro 96 da Bandeirantes, entroncamento com a Santos Dumont, exigiram explosões que revolveram grandes volumes de rocha. Com tantas idas e vindas entre Campinas e São Paulo (onde residem), Fresia e o marido Fábio Branco, geólogo, não deixariam de notar o paredão de rocha acinzentada que surgiu na paisagem, com 20m de altura e mais de 100m de largura, desnudado a dinamite. Sabiam que se tratava de rocha sedimentar. Na folga do sábado seguinte, estacionaram o carro e constataram que as finas camadas de siltito guardavam incontáveis fósseis de pequenas plantas, datadas de 310 milhões de anos atrás, quando tudo isso era coberto de gelo. Trata-se da mais antiga flora já registrada no Estado.

“Encontramos briófitas (musgos de 20 milímetros) e licófitas (pequenas plantas de folhas verdes) que cobriam porções de terra do interior paulista durante o período Carbonífero (há cerca de 310 milhões de anos), época em que toda a região encontrava-se coberta por gelo. Lembram a tundra vista atualmente no norte do Canadá e na Sibéria”, informa a professora da Unicamp. Fresia Branco integra um grupo de pesquisadores financiado pela Fapesp, coordenado pela professora Mary Elizabeth Bernardes de Oliveira (USP e Universidade Guarulhos), que durante quatro anos percorreu o Estado atrás de fósseis de vegetais dos tempos do Gondwana, o supercontinente composto pela América do Sul, África, Índia, Austrália, Nova Zelândia, Madagascar e Antártica.

Os cientistas estudaram plantas primitivas fossilizadas em Monte Mor, Itapeva, Cerquilho, Salto, Tietê e Campinas, com idades variando entre 310 milhões e 285 milhões de anos, em camadas de origem glacial pertencentes à bacia do Paraná, e que receberam o nome de Subgrupo Itararé. Segundo a pesquisadora do IG, esses fósseis trazem informações sobre os tipos de plantas que habitavam essa região paulista nesse período e ajudam a entender as mudanças climáticas naturais ocorridas no passado remoto. Ela assume esta descoberta na Rodovia dos Bandeirantes, cientificamente importante, mas pede o crédito pelo estudo detalhado dos fósseis vegetais, inclusive a datação, para a aluna Paula Garcia Carvalho do Amaral, a quem co-orientou na monografia de conclusão de curso – a orientadora foi a professora Mary Bernardes de Oliveira.

Gondwana – Fresia Branco, que se esforça para divulgar a paleontologia em seu dia-a-dia, oferece aos leitores uma aula básica que ajuda a mensurar o peso das pesquisas na área. O Gondwana – “terra dos deuses”, na denominação dos indianos – estava muito próximo ao Pólo Sul. Entre os períodos Carbonífero (310 milhões de anos) e Permiano (250 milhões), a massa continental, coberta de gelo na sua porção meridional, foi se deslocando à deriva para o norte, até se chocar com o Laurasia, o outro supercontinente que juntava América do Norte, Europa e Sibéria. O choque formou o Pangea, a união de todas as terras. O Pangea só viria a se fragmentar cerca de 100 milhões de anos depois, no período Cretáceo, quando se originou o Oceano Atlântico e os continentes começaram a ganhar a conformação que conhecemos hoje, o que é outra história.

A paleobotânica Fresia Ricardi Branco: camadas da paleoflora mostram as mudanças de clima e de vegetação

Enquanto partes do Gondwana, América do Sul e África encontravam-se unidas e, em comparação a hoje, bastante inclinadas à esquerda, quase na horizontal. No supercontinente penetrava um mar (denominado mar interior), que dava contornos à bacia do Paraná e banhava o Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, sul de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, parte do Uruguai, norte da Argentina e sul da África. Do outro lado, os glaciais – grandes massas de gelo – moviam-se lentamente até o ponto mais meridional da geografia, do sul da África até a bacia do Paraná, arrastando ou ali retendo sedimentos com as evidências que viriam a ser colhidas em nosso cisco de tempo, como fósseis de plantas, conchas e microorganismos (mais tarde viriam os animais terrestres).

Uma glaciação, como a ocorrida durante o Carbonífero, corresponde a algo em torno de 20 milhões de anos sob a influência do frio. Mas o mundo também passa por períodos interglaciais, de alguns milhares ou milhões de anos, com clima mais quente e em que pelo menos parte do gelo derrete. “Nos últimos 12 mil anos de história, têm- se alternados períodos quentes e frios”, ilustra a paleontóloga. Foi ao final de uma glaciação que a vegetação pôde colonizar este espaço do território paulista, não apenas com plantas pioneiras como as briófitas, mas também com as mais primitivas como as licófitas e as esfenófitas (que lembram bambus finos). “Quem sabe, terra adentro, tivéssemos bosques de gimnospermas, os antepassados dos pinheiros”, supõe.

Concentração – A concentração de fósseis vegetais no Estado de São Paulo se justifica, pois era a porção de terra mais ao norte da bacia do Paraná, tendo sido o primeiro espaço a se beneficiar do degelo. “O grupo coordenado por Mary Elizabeth encontrou vários depósitos (camadas) da paleoflora que vão mostrando as mudanças de clima e de vegetação. Pode-se seguir a ordem: a partir dessas briófitas e licófitas na Bandeirantes, temos o carvão, que indica um período de vegetação mais densa em Monte Mor, a diversificação permitida por um clima ainda melhor em Tietê, até as evidências de mata no Permiano, em Cerquilho”, enumera a pesquisadora do IG.

É importante ressaltar, ainda, os fósseis da Flora de Glossopteris (uma planta com folhas em formato de língua e com nervação reticulada) encontrados por todo o sul e sudeste do Brasil, e comuns a todos os continentes que formavam o Gondwana durante o Permiano. São provas de que esses continentes estiveram unidos no Carbonífero e no Permiano, visto que a vegetação migra, tal como os animais que apareceriam mais tarde. O que sucede à Flora de Glossopteris também é interessante: toda essa área de vegetação variada vai se transformar num vasto deserto, na era seguinte, do Mesozóico.

“É no Permiano, há 280 milhões de anos, que o Gondwana e a Laurasia juntam-se no Pangea, um continente tão grande que as massas de ar formadas no oceano, carregadas de umidade, não conseguiam levar chuva ao interior”, explica a paleontóloga. No decorrer dos dois períodos seguintes, o Triássico e o Jurássico (entre 250 e 200 milhões de anos), aquele deserto já era o maior que existiu no planeta, como denunciam os arenitos das formações Pirambóia e Botucatu, que dariam origem ao Aqüífero Guarani, o incrível reservatório de água subterrânea que exploramos hoje e que passa por baixo de oito estados brasileiros, estendendo-se por regiões da Argentina, Paraguai e Uruguai.

O paredão – Na superfície, durante o Cretáceo, entre 140 milhões e 65 milhões de anos, arrematou-se a tragédia, quando o Pangea abriu-se para o oceano e uma vazão de lavas e rochas cobriu a bacia do Paraná, que já estava seca. Da degradação desta lava por chuva e sol, resultou a terra vermelha típica do interior paulista. Sim: e por cima da lava formou-se outra bacia, o que também é outra história, esta mais conhecida, cheia de dinossauros e de novas extinções.

Em nosso cisco de tempo, geólogos buscam evidências do passado percorrendo leitos de rios, praias ou linhas de ferrovias, vasculhando o fundo do mar e torcendo por detonações que removam infinitamente mais rochas do que são capazes seus martelos. Esperançosa, Fresia Branco considera interessante que se discutam mecanismos de preservação desse patrimônio geológico e paleontológico, tanto na Rodovia dos Bandeirantes como em outras localidades onde ocorreram descobertas significativas. Se conservado, o paredão de 20m por 100m, no quilômetro 96, parece de bom tamanho para que o Instituto de Geociências possa inscrever toda essa história para conhecimento do público.


 

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