Viajando no tempo pela
rodovia dos Bandeirantes
Pesquisadora do Instituto de Geociências
descobre 96 fósseis de plantas com 310 milhões
de anos
LUIZ
SUGIMOTO
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Fóssil
vegetal encontrado na rodovia dos Bandeirantes:
descoberta na folga de sábado |
Os dois mil anos depois de Cristo,
essenciais para nossa transformação
no que somos hoje, correspondem a mero cisco dentro
da tabela do tempo geológico. Mas foi em 1999,
às margens da moderna rodovia dos Bandeirantes,
que a paleobotânica Fresia Ricardi Branco descobriu
um argumento sólido para sustentar o que costuma
dizer a leigos e alunos do Instituto de Geociências
(IG) da Unicamp: que a paleontologia estudo
dos fósseis de animais e vegetais está
bem mais próxima de nós do que supomos;
neste caso, no acostamento de uma estrada.
As obras de prolongamento no quilômetro
96 da Bandeirantes, entroncamento com a Santos Dumont,
exigiram explosões que revolveram grandes volumes
de rocha. Com tantas idas e vindas entre Campinas
e São Paulo (onde residem), Fresia e o marido
Fábio Branco, geólogo, não deixariam
de notar o paredão de rocha acinzentada que
surgiu na paisagem, com 20m de altura e mais de 100m
de largura, desnudado a dinamite. Sabiam que se tratava
de rocha sedimentar. Na folga do sábado seguinte,
estacionaram o carro e constataram que as finas camadas
de siltito guardavam incontáveis fósseis
de pequenas plantas, datadas de 310 milhões
de anos atrás, quando tudo isso era coberto
de gelo. Trata-se da mais antiga flora já registrada
no Estado.
Encontramos briófitas
(musgos de 20 milímetros) e licófitas
(pequenas plantas de folhas verdes) que cobriam porções
de terra do interior paulista durante o período
Carbonífero (há cerca de 310 milhões
de anos), época em que toda a região
encontrava-se coberta por gelo. Lembram a tundra vista
atualmente no norte do Canadá e na Sibéria,
informa a professora da Unicamp. Fresia Branco integra
um grupo de pesquisadores financiado pela Fapesp,
coordenado pela professora Mary Elizabeth Bernardes
de Oliveira (USP e Universidade Guarulhos), que durante
quatro anos percorreu o Estado atrás de fósseis
de vegetais dos tempos do Gondwana, o supercontinente
composto pela América do Sul, África,
Índia, Austrália, Nova Zelândia,
Madagascar e Antártica.
Os cientistas estudaram plantas
primitivas fossilizadas em Monte Mor, Itapeva, Cerquilho,
Salto, Tietê e Campinas, com idades variando
entre 310 milhões e 285 milhões de anos,
em camadas de origem glacial pertencentes à
bacia do Paraná, e que receberam o nome de
Subgrupo Itararé. Segundo a pesquisadora do
IG, esses fósseis trazem informações
sobre os tipos de plantas que habitavam essa região
paulista nesse período e ajudam a entender
as mudanças climáticas naturais ocorridas
no passado remoto. Ela assume esta descoberta na Rodovia
dos Bandeirantes, cientificamente importante, mas
pede o crédito pelo estudo detalhado dos fósseis
vegetais, inclusive a datação, para
a aluna Paula Garcia Carvalho do Amaral, a quem co-orientou
na monografia de conclusão de curso
a orientadora foi a professora Mary Bernardes de Oliveira.
Gondwana Fresia Branco,
que se esforça para divulgar a paleontologia
em seu dia-a-dia, oferece aos leitores uma aula básica
que ajuda a mensurar o peso das pesquisas na área.
O Gondwana terra dos deuses, na
denominação dos indianos estava
muito próximo ao Pólo Sul. Entre os
períodos Carbonífero (310 milhões
de anos) e Permiano (250 milhões), a massa
continental, coberta de gelo na sua porção
meridional, foi se deslocando à deriva para
o norte, até se chocar com o Laurasia, o outro
supercontinente que juntava América do Norte,
Europa e Sibéria. O choque formou o Pangea,
a união de todas as terras. O Pangea só
viria a se fragmentar cerca de 100 milhões
de anos depois, no período Cretáceo,
quando se originou o Oceano Atlântico e os continentes
começaram a ganhar a conformação
que conhecemos hoje, o que é outra história.
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A
paleobotânica Fresia Ricardi Branco: camadas
da paleoflora mostram as mudanças de clima
e de vegetação |
Enquanto partes do Gondwana, América
do Sul e África encontravam-se unidas e, em
comparação a hoje, bastante inclinadas
à esquerda, quase na horizontal. No supercontinente
penetrava um mar (denominado mar interior), que dava
contornos à bacia do Paraná e banhava
o Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, sul de Minas Gerais,
São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul, parte do Uruguai, norte da Argentina
e sul da África. Do outro lado, os glaciais
grandes massas de gelo moviam-se lentamente
até o ponto mais meridional da geografia, do
sul da África até a bacia do Paraná,
arrastando ou ali retendo sedimentos com as evidências
que viriam a ser colhidas em nosso cisco de tempo,
como fósseis de plantas, conchas e microorganismos
(mais tarde viriam os animais terrestres).
Uma glaciação, como
a ocorrida durante o Carbonífero, corresponde
a algo em torno de 20 milhões de anos sob a
influência do frio. Mas o mundo também
passa por períodos interglaciais, de alguns
milhares ou milhões de anos, com clima mais
quente e em que pelo menos parte do gelo derrete.
Nos últimos 12 mil anos de história,
têm- se alternados períodos quentes e
frios, ilustra a paleontóloga. Foi ao
final de uma glaciação que a vegetação
pôde colonizar este espaço do território
paulista, não apenas com plantas pioneiras
como as briófitas, mas também com as
mais primitivas como as licófitas e as esfenófitas
(que lembram bambus finos). Quem sabe, terra
adentro, tivéssemos bosques de gimnospermas,
os antepassados dos pinheiros, supõe.
Concentração
A concentração de fósseis
vegetais no Estado de São Paulo se justifica,
pois era a porção de terra mais ao norte
da bacia do Paraná, tendo sido o primeiro espaço
a se beneficiar do degelo. O grupo coordenado
por Mary Elizabeth encontrou vários depósitos
(camadas) da paleoflora que vão mostrando as
mudanças de clima e de vegetação.
Pode-se seguir a ordem: a partir dessas briófitas
e licófitas na Bandeirantes, temos o carvão,
que indica um período de vegetação
mais densa em Monte Mor, a diversificação
permitida por um clima ainda melhor em Tietê,
até as evidências de mata no Permiano,
em Cerquilho, enumera a pesquisadora do IG.
É importante ressaltar, ainda,
os fósseis da Flora de Glossopteris (uma planta
com folhas em formato de língua e com nervação
reticulada) encontrados por todo o sul e sudeste do
Brasil, e comuns a todos os continentes que formavam
o Gondwana durante o Permiano. São provas de
que esses continentes estiveram unidos no Carbonífero
e no Permiano, visto que a vegetação
migra, tal como os animais que apareceriam mais tarde.
O que sucede à Flora de Glossopteris também
é interessante: toda essa área de vegetação
variada vai se transformar num vasto deserto, na era
seguinte, do Mesozóico.
É no Permiano, há
280 milhões de anos, que o Gondwana e a Laurasia
juntam-se no Pangea, um continente tão grande
que as massas de ar formadas no oceano, carregadas
de umidade, não conseguiam levar chuva ao interior,
explica a paleontóloga. No decorrer dos dois
períodos seguintes, o Triássico e o
Jurássico (entre 250 e 200 milhões de
anos), aquele deserto já era o maior que existiu
no planeta, como denunciam os arenitos das formações
Pirambóia e Botucatu, que dariam origem ao
Aqüífero Guarani, o incrível reservatório
de água subterrânea que exploramos hoje
e que passa por baixo de oito estados brasileiros,
estendendo-se por regiões da Argentina, Paraguai
e Uruguai.
O paredão Na
superfície, durante o Cretáceo, entre
140 milhões e 65 milhões de anos, arrematou-se
a tragédia, quando o Pangea abriu-se para o
oceano e uma vazão de lavas e rochas cobriu
a bacia do Paraná, que já estava seca.
Da degradação desta lava por chuva e
sol, resultou a terra vermelha típica do interior
paulista. Sim: e por cima da lava formou-se outra
bacia, o que também é outra história,
esta mais conhecida, cheia de dinossauros e de novas
extinções.
Em nosso cisco de tempo, geólogos
buscam evidências do passado percorrendo leitos
de rios, praias ou linhas de ferrovias, vasculhando
o fundo do mar e torcendo por detonações
que removam infinitamente mais rochas do que são
capazes seus martelos. Esperançosa, Fresia
Branco considera interessante que se discutam mecanismos
de preservação desse patrimônio
geológico e paleontológico, tanto na
Rodovia dos Bandeirantes como em outras localidades
onde ocorreram descobertas significativas. Se conservado,
o paredão de 20m por 100m, no quilômetro
96, parece de bom tamanho para que o Instituto de
Geociências possa inscrever toda essa história
para conhecimento do público.