| |
ARTIGO O engodo do superávit anticíclico
GERALDO BIASOTO JUNIOR
|
Geraldo Biasoto Júnior é professor do Instituto de Economia. Este artigo foi publicado no Suplemento de número 4 do Boletim Quadrimestral do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp.
|
A arquitetura da política econômica pós-1999 engendrou um conjunto de conceitos
que foi bem-aceito pelo mercado financeiro: política fiscal contracionista para segurar a relação dívida-PIB, metas de inflação para assegurar uma âncora nominal para a economia e plena mobilidade de capitais com câmbio flutuante.
O superávit primário ganhou destaque como grande pilar de sustentação da política econômica. No entanto, as inconsistências conceituais e a forma de medida que acompanham este padrão de política fiscal nos permitem questionar sua validade como indicador. Ao mesmo tempo, o foco no superávit tem produzido a concentração da dívida no endividamento mobiliário, elemento de grande potencial instabilizador, e obscurecido a questão substantiva: a reconstrução de formas de financiamento sustentáveis para o setor público.
A relação dívida-PIB é o ponto de partida da política fiscal no âmbito da tese de que este indicador seria o elemento crucial da construção das expectativas inflacionárias. Esta concepção está fundada nas teses monetaristas contemporâneas, para as quais o controle da dívida mobiliária passa a ser a alternativa para a base monetária, conceito que a evolução das formas de moeda fez perder importância teórica e prática. Ou seja, a evolução da dívida passou a ser tomada como proxy da evolução da moeda.
A fragilidade teórica destas teses já foi discutida e questionada por autores que tentaram analisar a dinâmica das economias capitalistas. No caso brasileiro, no entanto, além do equívoco teórico, a adequação das formas contábeis aos conceitos encerra diversos equívocos. Falta base teórica que dê suporte à prática de igualar o impacto de uma dívida de empresa estatal com um banco interno ou externo a uma dívida mobiliária transacionada no mercado monetário.
O conceito de Dívida Líquida do Setor Público, utilizado pela política fiscal, foi muito além da dívida mobiliária e espelha esta fragilidade teórica de forma ampliada. Todas as formas de endividamento, incluindo as dívidas por contrato de empréstimo com o sistema bancário interno, as emissões de papéis de longo prazo no mercado internacional, o endividamento de 15 ou 20 anos junto aos organismos internacionais (BID e BIRD) foram empasteladas aos atrasos junto a fornecedores, operações de antecipação de receita orçamentária (ARO) e dívidas de prazos diversos, em títulos financiados diariamente no mercado monetário.
O mesmo conceito de Dívida Líquida do Setor Público promoveu uma alteração na forma de contabilizar os passivos externos de forte impacto sobre a percepção das contas públicas. Toda a dívida denominada em moeda estrangeira é aferida pela taxa de câmbio presente. Com isto, qualquer desvalorização cambial altera a relação dívida-PIB, passando a exigir a elevação do superávit primário. Uma valorização promove o efeito inverso. Deste modo, a sensibilidade instantânea derivada da forma de construção do conceito transmite ao mercado os sinais para cobrança de resposta imediata da política fiscal.
Não é imprescindível que assim fosse; o próprio FMI utilizava-se, nos anos 80, de uma forma de aferir as necessidades de financiamento do setor público que expurgava a diferença entre a variação cambial e a monetária. Isto era feito justamente porque o objetivo era avaliar o financiamento público junto aos agentes internos, o que poderia ser obscurecido pelos movimentos cambiais. Ou seja, a política econômica gera necessidades de superávit fiscal a partir de conceitos que estão longe de uma clareza conceitual mínima.
Os números podem mostrar estas distorções de forma irretocável e deixar claro que, sob o manto da política fiscal responsável, o país está vivendo a desmontagem das estruturas de financiamento público e construindo uma fragilidade financeira sem precedentes.
O fechamento do ano de 2003 mostra que o superávit primário do setor público, de 4,32% do PIB, superior à meta anunciada no início do ano, foi pouco maior do que a metade dos juros internos. De fato, ele foi muito menor que os juros reais de 5,96% do PIB. A escalada dos juros de 2003 produziu uma deterioração ainda maior da situação fiscal que a vivida em anos anteriores; em 2001 e 2003, os juros reais foram de 3,5% e 0,05 do PIB. No acumulado de 12 meses até janeiro, há um movimento de queda nos juros reais e nominais, mas ainda em patamar extremamente elevado.
Tabela 1 - Setor Público Consolidado - Usos Valores acumulados en 12 meses em % do PIB
Mais perversos que os dados expostos na Tabela 1 são os referentes às fontes de financiamento do setor público. Como mostra a Tabela 2, a tendência é uma brutal concentração na dívida mobiliária. Os dados anualizados de dezembro e janeiro esgotam as dúvidas quanto à gravidade da situação. Eles indicam crescimento na dívida mobiliária de cerca de 8% do PIB, quase 3% do PIB acima do próprio déficit nominal.
Tabela 2 - Setor Público Consolidado - Fontes Valores acumulados en 12 meses em % do PIB
A expansão da dívida mobiliária no conjunto das fontes de recursos que financiam o setor público é concomitante ao aprofundamento do desmonte da sua estrutura de financiamento. A dívida contratual, ou bancária, segue em queda livre, como reflexo direto de todas as restrições postas ao endividamento dos estados, municípios e empresas. O financiamento externo, que mostrava fluxo positivo em finais de 2001 e 2002, virou de sinal, em 2003, e nada indica recuperação em 2004.
Os dados dos estoques da dívida líquida do setor público apresentam a mesma dinâmica perversa. Entre 2002 e 2003 a dívida consolidada cresceu de 55,5% do PIB para 58,1% do PIB, mesmo com todos os esforços realizados para conter o endividamento e os gastos reais. Pior é que a dívida mobiliária do Tesouro Nacional subiu de 33,6% do PIB para 43,3% do PIB. Também o financiamento externo tem tido sua importância reduzida. Ao mesmo tempo, a dívida externa caía de 14,3% para 11,9% do PIB, sem que isto seja explicável por algum movimento de reservas internacionais.
Tabela 3 - Dívida Líquida do Setor Público em % PIB
A avaliação das contas públicas por um conceito muito pouco utilizado, os fatores condicionantes da dívida líquida, pode ser especialmente elucidativa. A tabela 4 mostra como a evolução da dívida segue uma rotina que desconhece os esforços da política fiscal, situando sua expansão entre 2,6% e 3,8% do PIB ano a ano. No entanto, diferentemente de 2001 e 2002, quando os efeitos da desvalorização cambial sobre a dívida interna e externa foram avassaladores, em 2003, o câmbio valorizado gerou efeito redutor da dívida de nada menos que 5,5% do PIB.
Tabela 4 - Fatores Condicionantes da Dívida Líquida do Setor Público Valores acumulados no ano em % do PIB
A dívida líquida cresceu 2,65% do PIB, em 2003, como efeito direto da escalada dos juros nominais que chegaram a 9,25% do PIB, somando-se juros internos e externos. Vale dizer, se não fosse a revalorização da dívida em moeda estrangeira, a dívida líquida teria avançado cerca de 7% do PIB. A introdução de uma variação cambial de estoques só pode tornar ainda mais complexa a gestão da política fiscal, com efeitos de extrema volatilidade sobre a definição do superávit primário necessário para controlar a expansão da dívida.
O conjunto de dados indicado nesta página não demonstra uma política fiscal permissiva, muito pelo contrário, dado que ela tem sido extremamente rígida. O que sim podemos dizer é que a política econômica enfocou o superávit primário sem atentar para a estrutura de financiamento ao setor público, que vem experimentando uma deterioração dramática com efeito imprevisíveis sobre a percepção de risco dos agentes econômicos.
Para demonstrá-lo construiu-se um indicador de solvência do setor público. Foi tomada a evolução anualizada da receita federal, em termos reais. Ao mesmo tempo, foi tomada a divida mobiliária do Tesouro Nacional. O indicador de solvência mede quantas receitas anuais são necessárias para pagar a dívida. Os resultados (Gráfico 1) mostram uma tendência altamente instabilizadora. O crescimento da relação entre a dívida e o PIB foi, de 1995 a 2001, concomitante à piora do indicador de solvência. Depois de uma fugaz melhoria, em 2002, o ano de 2003 mostrou a retomada da trajetória de forte expansão anteriormente verificada.
Gráfico 1 - Evolução da Dívida e Indicador de Solvência
A conclusão que se impõe é tripla. Primeiro, uma urgente necessidade de novos conceitos e formas de medida das contas públicas. Segundo, a impossibilidade da continuidade da atual política financeira que implica o desmantelamento das contas públicas. Terceiro, e talvez mais importante, a premência absoluta da reestruturação das fontes de financiamento do setor público.
Ao invés de discutir estes pontos, a política econômica preferiu "inovar" com o superávit anticíclico. Ele significa um abrandamento das necessidades de contenção da despesa na retração do ciclo e uma expansão, na mesma magnitude, quando da expansão cíclica. No entanto, para o Brasil, que pretende atravessar uma fase expansiva, ele significa mais contenção das despesas. Justamente no momento em que os gargalos ao crescimento deverão ser removidos, inclusive com aumento do investimento público, a proposta é gerar mais poupança governamental para garantir a redução da relação dívida-PIB no longo prazo.
|
|
|