Nem é preciso tanta penúria. Considerando um grupo de cem pessoas que apresentam alguma forma de epilepsia, 70 ou 80 delas podem levar uma vida sem crises se contarem com a medicação adequada. O primeiro anticonvulsivante foi descoberto há um século, e as fórmulas tradicionais de hoje oferecem baixo custo. Apesar disso, existe uma omissão gritante nos países em desenvolvimento, em que 60% a 90% dos portadores da síndrome não recebem tratamento. "O número de doentes é grande, o tratamento para evitar este sofrimento existe e os custos de um programa compensam de longe o que o país perde com a exclusão desta população economicamente ativa. Então, por que não se faz?", questiona o neurologista Li Li Min, professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.
Depois de quase uma década fazendo cursos de especialização em hospitais de Havana, Londres e Montreal, e com PhD em neurociências pela McGill University, o professor Li Min poderia centrar seu conhecimento em pesquisas com instrumentos de alta tecnologia para diagnóstico e entendimento de questões neurobiológicas epilepsia, inclusive. Porém, voltando ao Brasil em 2000, e percebendo a situação crítica em que vivem os pacientes com epilepsia, optou por ajudar na solução deste problema imediato, aderindo à Campanha Global Epilepsia Fora das Sombras. Hoje, está à frente da Aspe (Assistência à Saúde de Pacientes com Epilepsia), que reúne profissionais da FCM e da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp e de outras instituições paulistas. Em matéria nesta página, resumimos o que a Aspe fez em apenas dois anos de existência.
O que é A crise epiléptica é desencadeada quando um grupamento de neurônios deixa de funcionar adequadamente por certo tempo. O cérebro envia impulsos elétricos de forma errática, levando a manifestações clínicas em partes do corpo que comanda. Figurativamente, o que acontece é um curto-circuito. A crise "tônico-crônica" (a convulsão), aquela que testemunhamos nas ruas, corresponde à cerca de metade dos casos. Os outros 50% são outros tipos de crises epilépticas que podem passar despercebidas. Uma delas afeta principalmente a criança, que está conversando normalmente e, de repente, desliga por segundos; se tais crises são múltiplas, a mãe vai achar que o filho vive no mundo da lua.
Na crise "parcial complexa", o paciente desliga, mas mantém certos movimentos complexos pode, por exemplo, tirar a roupa sem se dar conta de que está em público. "Quando confundida com drogadição ou doenças psiquiátricas, esta crise pode levar o paciente à delegacia ou mesmo ao hospital psiquiátrico", lamenta Li Li Min. Nos variados graus de severidade de epilepsia, não havendo resposta à medicação, existe o tratamento cirúrgico, removendo-se parte do cérebro. Uma avaliação pré-cirúrgica indica se a intervenção será mesmo eficaz para acabar com a crise e se a pessoa poderá conviver sem aquele tecido.
Atente-se que a epilepsia não é uma doença em si, é um leque grande de doenças que podem desencadeá-la. Um tumor cerebral pode causar epilepsia, assim como má- formação do cérebro, traumatismo crânioencefálico em acidente, defeito genético, problemas no parto. Diagnosticar a epilepsia, portando, nem sempre é fácil, a não ser naqueles 50% dos casos em que a crise é do tipo convulsão e de fácil reconhecimento. Daí, a importância dos cursos de qualificação que a Aspe vem ministrando aos profissionais da rede de saúde. "O diagnóstico surge essencialmente da história do paciente e da pessoa que presenciou a crise, não existem aparelhos ou exames que acusem a epilepsia. É a história que o portador conta, o testemunho de quem o vê em crise. Confirmada a síndrome, investiga-se por que o paciente sofre essas crises", explica o pesquisador da Unicamp.
O preconceito O Museu Britânico guarda pedras onde mercadores da Babilônia esculpiam seus contratos. No negócio com um escravo, em duas situações o comprador podia devolvê-lo ao vendedor: se sofresse de hanseníase ou de epilepsia. "Já havia, então, uma carga de preconceito contra essas duas doenças antes de Cristo. Por outro lado, vemos nos relatos de Hipócrates na realidade uma coletânea escrita por vários médicos e não apenas pelo ‘pai da medicina’-, há 2.400 anos, a afirmação de que a epilepsia não era um problema espiritual, mas que decorria de alterações no fluido corporal", ilustra Li Min.
Em alguns países da África, a síndrome é conhecida como "a doença que queima": se na tribo que cozinha no meio da savana, uma pessoa em crise cair sobre o fogo, não será socorrida porque com o contato os demais seriam tomados pelo espírito maléfico. Da mesma forma, nas Filipinas, chamam-na de a "doença que afoga", visto que o paciente será abandonado à própria sorte no rio. "Nesses países, a síndrome é conhecida mais por suas conseqüências. De fato, o risco de óbito aumenta quando a crise não é controlada, embora os latinos não gostem de falar sobre a morte. A taxa de morte súbita, que é de 1% na população em geral, duplica ou triplica entre as pessoas com epilepsia", informa o professor.
Suicídio A psicóloga Paula Fernandes, doutoranda da FCM e secretária executiva da Aspe, destaca ainda a propensão ao suicídio. "O paciente, quando suas crises não são controladas, começa a se fechar e a se esconder. Não só pelo constrangimento de sofrer uma crise em público, mas pelo preconceito da sociedade. Se ele está empregado, é despedido; se namora, ela desiste da relação. É o que chamamos de ‘estigma percebido’, que acaba com a auto-estima. O risco de suicídio realmente é grande em comparação com outras pessoas", afirma. O preconceito se estende aos letrados, havendo registros de promotores que acusaram o diagnóstico de epilepsia a pessoas que cometeram crimes seriados, julgando-os capazes de atitudes violentas e cuidadosamente premeditadas quando estão em crise. "Pura fantasia, pois as manifestações são totalmente elementares e, nos poucos segundos de crise, o paciente fica incapacitado, sem domínio sobre seu corpo", ironiza Li Min.
Qualificação dos
profissionais deixa a desejar
Quem consultar a página da Aspe na Internet, em www.aspebrasil.org, poderá baixar as edições da revista Sem Crise, que traz informações e estatísticas importantes sobre a síndrome, entrevistas com autoridades e especialistas, o esforço de diversas associações espalhadas pelo país para fazer com que o atendimento a suas carências vire lei, e depoimentos crus e comoventes de pacientes. Contudo, viabilizada a participação inicial do Brasil no projeto demonstrativo da Campanha Global Epilepsia Fora das Sombras, o professor Li Li Min concluiu que esclarecimento à população, apenas, não bastava: era necessário intervir.
"A qualificação do atendimento às pessoas com epilepsia no país deixa a desejar. Os médicos, em boa parte, não se sentem confortáveis em assistir um portador da síndrome, pois seu conhecimento está desatualizado. A Aspe planejou cursos intensivos de capacitação, com o objetivo de contemplar, direta ou indiretamente, as 17 mil equipes do Programa de Saúde da Família brasileiro. Já fizemos acordos em Campinas, São Paulo, Curitiba e também no Mato Grosso e Amazonas. Promovemos cursos relâmpagos na Paraíba e, em abril, faremos o mesmo em um grande congresso no Rio", resume o neurologista da FCM.
A Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, por sua vez, tem levado o conhecimento aos professores da rede pública, preparando-os para atender a criança com epilepsia e lutar por sua permanência na escola não é raro que um aluno, depois de uma crise na classe, seja convidado a sair. O governo federal, nesta linha, deve manter projeto que prevê a epilepsia entre os temas transversais do currículo (como a Aids).
Todas essas ações, agora em execução, foram precedidas por ampla pesquisa em 30 mil domicílios de Campinas e São José do Rio Preto, quando se confirmou a prevalência de epilepsia em 1,8% desta população. No número 3 da revista Sem Crise, o professor Antônio Carlos de Carvalho, que coordenou a pesquisa de campo, conta os dramas que ele e os estudantes da equipe testemunharam, ouvindo pessoas que fugiam do assunto como o diabo foge da cruz.
Como ajudar um paciente em crise
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-No primeiro momento da crise de um portador da síndrome de epilepsia, todos os seus músculos se contraem, ele cai, não consegue respirar nem engolir a saliva; por isso, não devemos forçá-lo a ingerir líquidos.
-A língua, sendo um músculo, também fica rija e se contrai, mas não há risco de o paciente engoli-la; por isso, não devemos introduzir o dedo ou qualquer objeto em sua boca.
-No segundo momento, o paciente se debate e, faltando o ar, seu abdômen força a respiração, como uma bomba; por isso, a saliva começa a espumar. Não devemos passar álcool ou outra substância em seu corpo.
Na verdade, o que se faz é muito pouco:
1 - apóia-se a cabeça do paciente para que não se machuque
2 - vira-se seu rosto de lado para que não aspire a saliva
3 - espera-se o fim da crise, que dura entre 1 e 2 minutos.
Nas raras vezes em que a crise é mais prolongada cinco minutos, por exemplo , o paciente pode estar evoluindo para o estado de mal epiléptico, devendo ser transportado até o pronto-socorro.
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