Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 246 - de 29 de março a 4 de abril de 2004
Leia nessa edição
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1964 - Democracia Golpeada
No inferno da câmara fria
Ex-ativista: Robêni
Dossiê: Congresso da UNE
Dossiê: Zeferino
Dossiê: General de brigada
Dossiê: Homem do sistema
Dossiê: Zeferino nos porões
Quatro visões do golpe
Meninos do ITA
 

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1964: A DEMOCRACIA GOLPEADA

CAIO NAVARRO DE TOLEDO*

Num depoimento em 1981, o ex-ditador Ernesto Geisel, com rara lucidez, afirmou:João Goulart discursa no Automóvel Clube do Brasil, Rio, na noite de 30 de março de 64: suicídio político "o que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções se fazem por uma idéia, em favor de uma doutrina". Para o vitorioso de 1964, o movimento se fez contra Goulart, contra a corrupção, contra a subversão. Estritamente falando, o movimento liderado pelas Forças Armadas, lembrou o militar, não era a favor da construção de algo novo no país.

Embora lúcidas - na medida em que rejeitam a noção de Revolução -, as formulações do ex-ditador podem ser objeto de uma contraleitura. Assim, com legitimidade teórica, podemos ressignificar todos os contras presentes no depoimento do militar. Mais apropriado seria então afirmar que 1964 representou um golpe contra a nascente democracia política brasileira; um movimento contra as reformas sociais e econômicas; uma ação repressiva contra a politização das organizações dos trabalhadores (no campo e nas cidades); um golpe contra o amplo e rico debate teórico-ideológico e cultural que estava em curso no país.

A luta pela ampliação da cidadania

O golpe visou estancar a democracia que se expressava pela demanda da ampliação da cidadania política dos trabalhadores urbanos e rurais.

No triênio 1961/1963, o sindicalismo brasileiro alcançou um de seus momentos de mais intensa atividade. Enquanto nos anos de 1958 a 1960, sob o governo JK, tinham ocorrido cerca de 177 greves, nos três primeiros anos de Goulart, foram deflagradas mais de 430 paralisações1.

Para afronta dos setores de direita, as lideranças do CGT eram recebidas em Palácio pelo presidente da República e reconhecidas como interlocutores de importantes dirigentes partidários. A imprensa conservadora designava o CGT como o "quarto poder", reforçando o fantasma, forjado na época de Vargas, de que Goulart visava instituir no país uma "República sindicalista".

A luta pela cidadania política dos trabalhadores do campo também se constituiu uma realidade nova na história social do país. As Ligas Camponesas, que notabilizaram o advogado e deputado federal Francisco Julião, nasceram das lutas de resistência de pequenos agricultores e trabalhadores não-proprietários contra a tentativa de expulsão das terras onde trabalhavam; de 1959 a 1962, as Ligas tiveram uma acelerada expansão em todo o NE. Contestavam elas a dominação política e econômica a que as populações rurais estavam secularmente submetidas. Em algumas localidades, ocorreram conflitos armados entre camponeses e proprietários de terras; lideranças camponesas eram perseguidas e assassinadas a mando dos latifundiários, alarmados com a politização das massas rurais.

Na luta pela Reforma Agrária, as Ligas se associaram às demais organizações políticas progressistas do país, participando - tal como ocorre hoje com o MST - de comícios, passeatas e manifestações no Congresso em defesa das reformas de base, em particular da Reforma Agrária.

Extensas reportagens, em revistas e jornais do Brasil e do exterior, informavam seus leitores acerca da ação e dos objetivos, "subversivos" e "revolucionários", das Ligas Camponesas. O NE, faminto e sedento, estava a um passo de uma radical e violenta "guerra camponesa" era a conclusão a que se chegava com a leitura dessas alarmistas reportagens da grande imprensa.

No pré-64, outras reivindicações políticas visavam o alargamento da democracia liberal vigente no país: entre elas, o direito de voto aos analfabetos, o direito dos setores subalternos das forças armadas de postularem cargos eletivos (a carta de 46 lhes vedava este direito) e a legalidade do Partido Comunista Brasileiro, posto fora da lei desde 1947.

A radicalização do processo político

Ao afirmarmos que o golpe de 1964 teve como protagonistas principais as facções duras das forças armadas e o empresariado nacional (através de seus partidos, entidades de classe e aparelhos ideológicos) 2 - com o decidido apoio e o incentivo da embaixada e de agências norte-americanas (Departamento de Estado, Pentágono e outras) -, não significa que devemos isentar os setores nacionalistas e de esquerda pelo dramático desfecho do processo político.

Atitudes, gestos e declarações - altissonantes e, freqüentemente, na forma de autênticas bravatas - de lideranças progressistas contribuíram para o agravamento do processo político. Paralelamente às versões alarmistas e fantasiosas, forjadas pelos setores conservadores, alguns comportamentos de lideranças importantes do movimento nacionalista - pelo radicalismo verbal de que se revestiram - tiveram o efeito inesperado de unificar a direita civil e militar3.

No entanto, em termos de palavras e gestos, Goulart foi o ator mais eloqüente do drama que se encenava nos últimos dias de março. Dois de seus gestos foram decisivos para o desencadeamento do golpe final.

Primeiro ato: sua complacência em relação à insubordinação de cabos e marinheiros no Rio de Janeiro. Ao anistiar os revoltosos, o presidente afrontou o ministro da Marinha que, dias antes, havia punido os "rebeldes"; provocou, assim, a indignação da maioria da corporação militar.

Segundo ato: seu panfletário discurso numa assembléia de marinheiros, no Automóvel Clube do Brasil, na noite do dia 30.

Transmitido pela TV, diante de um auditório repleto de cabos e soldados, sindicalistas e políticos nacionalistas, Goulart denunciou as forças reacionárias e golpistas. Com veemência defendeu - para a redenção do país - a necessidade de um "golpe das reformas". As palavras contundentes e os gestos dramáticos do Presidente da República muito se assemelhavam à carta-testamento de Vargas. Sem atirar contra o próprio peito, Goulart parecia decidir pelo suicídio político.

Poucas horas após a transmissão do discurso, reduzidas tropas - comandadas por oficiais golpistas de Minas - puseram o pé na estrada. Troca de telefonemas entre oficiais foram suficientes para desmontar o chamado "dispositivo militar" de Goulart.

Mas, diante de insinuações de que os setores progressistas e de esquerda4 - pela intransigência de suas demandas e ações no pré-64 - também devem ser responsabilizados pelo desfecho dos acontecimentos de abril, é preciso sempre lembrar e ressaltar que quem planejou e desencadeou o golpe contra a democracia foram as classes dominantes, através de suas forças políticas e entidades de classe.

Destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais de esquerda e progressistas, o golpe foi saudado pelas classes dominantes e seus ideólogos, civis e militares, como uma autêntica Revolução redentora. Aliviadas por não terem de se envolver militarmente no país, as autoridades norte-americanas congratularam-se com os militares e políticos brasileiros pela "solução" que encontraram para superar a "crise política" no país. Para a administração Lyndon Johnson, uma nova (e grandiosa) Cuba era evitada abaixo do Equador...

O governo Goulart que, nos últimos dias de março de 1964, contava com elevada simpatia junto à opinião pública, ruiu como um castelo de areia. As classes populares e trabalhadoras estiveram ausentes das manifestações e passeatas que, em algumas capitais do país, pediam a destituição de Goulart. Embora não se opusessem ao governo, os setores populares e os trabalhadores nada fizeram para evitar a derrubada do governo. As forças políticas que afirmavam representar esses setores nenhuma ação efetiva desenvolveram para impedir o golpe anunciado.

Desarmados, desorganizados e fragmentados, os setores progressistas e de esquerda nenhuma resistência ofereceram aos golpistas. Alegando que não queria assistir uma "guerra civil" no país, Goulart negou-se a atender alguns apelos de oficiais legalistas no sentido de ordenar uma ação repressiva - de caráter meramente intimidatório - contra os sediciosos que vinham de Minas5. Preferiu o exílio político.

No calor da hora, algumas lideranças nacionalistas afirmaram que os golpistas teriam suas "cabeças cortadas" caso ousassem romper com a legalidade democrática; com a ação dos "vitoriosos de abril", a metáfora se tornou numa dura e cruel realidade para muitos homens e mulheres durante os 20 anos da ditadura militar.

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* Professor colaborador voluntário, IFCH. Diretor atual do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx), Unicamp. Autor de O governo Goulart e o golpe de 64, Editora Brasiliense; (org.) de 1964: Visões críticas do golpe. Democracia e reformas no populismo. Editora da Unicamp.

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1 No período, foram decretadas as primeiras greves de caráter explicitamente político.

2 O livro de René Dreifuss, 1964: a conquista do Estado, Rio de Janeiro, Vozes, 1981, é ainda o documento mais completo sobre atuação do empresariado nacional e do capital multinacional na preparação e desencadeamento do golpe de 1964

3 Alguns fatos contribuíram para inquietar a alta oficialidade e estimular ainda mais o golpismo latente de setores da sociedade civil; entre eles, podem ser lembrados a solidariedade do movimento nacionalista para com a rebelião dos sargentos em Brasília (setembro de 1963); denúncias de preparação de guerrilhas em Goiás e em fazendas do NE; as incitações de Brizola pela Rádio Mayrink Veiga (RJ) em torno dos chamados "grupo dos onze"; algumas palavras de ordem no comício do dia 13 na Central do Brasil; algumas declarações radicais atribuídas ao dirigente maior do PCB, Luis Carlos Prestes etc.

4. Passados 40 anos do golpe, não há evidências de que Goulart e/ou setores de esquerda preparavam um golpe de Estado. Esta era a versão propagandeada pela direita, em particular, após o famoso Comício do dia de 13 de março. Por sua vez, não têm consistência teórica e empírica as insinuações - recentemente formuladas por historiadores - de que todas as forças políticas no pré-64 (por "não morrerem de amores pela democracia" - esclareça-se, liberal-burguesa) eram virtualmente golpistas. Sugerir esta conclusão significa, objetivamente, atenuar a responsabilidade dos liberais-conservadores e dos setores duros das Forças Armadas pelos acontecimentos de abril de 1964. Se as esquerdas também eram golpistas, o golpe de 1964 teria um caráter meramente preventivo. A direita nada mais fez do que agir mediante um contragolpe.

5 O sociólogo Herbert de Souza (Betinho), cujas opiniões nunca poderiam ser consideradas de "esquerdistas" ou de "radicais", numa entrevista, ponderou o seguinte: "Acho que houve falta de direção política articulada com a resistência militar. Se as tropas de Mourão tivessem sido atacadas, elas se entregariam. Se esse movimento tivesse sido abortado lá, o General Amaury Kruel continuaria em cima do muro. O II Exército não se definiria, a Vila Militar não desceria, e, provavelmente, o golpe teria outro resultado". In. Dênis de Moraes, A esquerda e o golpe de 64, Rio de Janeiro, Espaço e tempo, 1989.

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