Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 246 - de 29 de março a 4 de abril de 2004
Leia nessa edição
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1964 - Democracia Golpeada
No inferno da câmara fria
Ex-ativista: Robêni
Dossiê: Congresso da UNE
Dossiê: Zeferino
Dossiê: General de brigada
Dossiê: Homem do sistema
Dossiê: Zeferino nos porões
Quatro visões do golpe
Meninos do ITA
 

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Do encontro (que não houve) na igreja ao inferno da câmara fria
Líder estudantil nos anos 70, professor da Unicamp revela que tortura o fez pensar em morrer

CLAYTON LEVY


Eram aproximadamente 23h30 do dia 4 de outubro de 1975, um sábado, quando dois jovens ligados ao movimento estudantil da USP embarcaram na rodoviária de São Paulo com destino ao Rio de Janeiro. Eles não sabiam, mas estavam prestes a viver o maior pesadelo de suas vidas. Sete horas depois, ao desembarcar na capital carioca, seriam presos, interrogados e brutalmente torturados por agentes do regime militar. Era apenas o começo de um drama que se prolongaria por cerca de três meses nas cadeias dos famigerados DOI-Codi e Dops, para onde eram levados os que se opunham à ditadura.

"Foi uma coisa insuportável, cheguei a pensar que ia morrer", conta um deles, o economista Waldir Quadros, que logo depois se mudaria para Campinas, passando a integrar o corpo docente do Instituto de Economia, chegando, mais tarde, a ocupar sua direção. O outro, o jornalista Sergio Gomes, se integraria em 1976 à equipe que criou o caderno cultural Folhetim, da Folha de São Paulo e, posteriormente, se engajaria na imprensa voltada para a classe trabalhadora, o que resultaria na criação do jornal Oboré, em 1978.

A prisão dos dois ocorreu no contexto da chamada Operação Jacarta, uma resposta do regime militar à esmagadora vitória do MDB sobre a Arena nas eleições de 1974. Para o regime, era uma questão de honra encurralar seus opositores e impedir o avanço da esquerda. Na época, como um dos líderes da Juventude do MDB, Quadros havia participado ativamente das articulações para derrotar o partido do governo nas urnas. Antes disso, destacara-se como presidente do centro acadêmico da Faculdade de Economia da USP, que recebia orientação política do PCB. Era inevitável, portanto, que seu nome fosse parar na lista negra dos militares.

"O grupo estudantil do qual eu participava era composto por estudantes de esquerda que se opunham à luta armada", recorda Quadros. O grupo, segundo ele, defendia a proposta de mobilização das massas e o fortalecimento das entidades para a redemocratização. Um dos principais objetivos era reorganizar o movimento estudantil, que havia sido destroçado pelo regime em 1968 e 1969. Muitas dessas atividades eram feitas na universidade, mas alguns contatos tinham de ser feitos fora. "Era aí que ocorriam os contatos com a ilegalidade, porque tínhamos de buscar ex-líderes que viviam na clandestinidade". Era justamente para participar de mais um encontro desses que os dois jovens seguiram para o Rio naquele fim de semana. A viagem, porém, os levaria direto para uma armadilha.

Na capital carioca, o plano dos dois era se encontrarem com o ex-estudante de filosofia da USP e dirigente político ligado ao PCB João Guilherme Vargas Neto, que vivia na clandestinidade. O encontro estava marcado para ocorrer na Igreja do Largo do Machado, área central do Rio, durante a missa das 7 horas. O objetivo era levar dinheiro a Vargas Neto e trocar informações para a realização de um seminário em São Paulo sobre o acordo nuclear Brasil-Alemanha. Gomes ainda pretendia encontrar-se com o compositor Paulinho da Viola e o jornalista Sergio Cabral para tratar da criação do Clube do Choro. Para Quadros, que pela primeira vez participaria do encontro, a operação parecia não oferecer riscos, já que seu companheiro de viagem a repetia havia vários meses. Naquele dia, porém, eles sequer chegariam a entrar na igreja.

Após desembarcarem, tomaram um táxi com destino ao local combinado. Mal haviam deixado a rodoviária quando perceberam que estavam sendo seguidos por três fusquinhas da polícia. "Não havia outro jeito senão tentar despistá-los", conta Quadros. Mandaram o taxista parar e entraram num bar. Foram direto para o banheiro, onde se livraram de alguns papéis com anotações comprometedoras, jogando-os na privada. Saíram do estabelecimento, caminharam por uma feira-livre e pegaram outro táxi.

Quando estavam próximo ao local do encontro, e imaginando já haver despistado os perseguidores, aconteceu o pior. Os três fusquinhas, à época conhecidos como "besourinhos", surgiram inesperadamente e interceptaram o táxi. Homens à paisana armados com metralhadoras saíram dos carros e se identificaram como membros do Esquadrão da Morte. Sem chance de defesa, Quadros e Gomes foram algemados, encapuzados e jogados no banco traseiro de uma Variant, que os levou direto para o quartel da Polícia do Exército, onde funcionava a sede carioca do DOI-Codi. "A partir daí foi um deus-nos-acuda", lembra o jornalista.

No DOI-Codi, a sessão de tortura começou logo na chegada. O funcionário encarregado de fichar os dois pediu o nome e endereço de parentes para onde deveriam "mandar os corpos depois". Em seguida, Quadros e Gomes foram separados. Despidos e jogados numa cela, receberam choques por todo o corpo. Levaram incontáveis socos, pontapés e pauladas, além de terem sido obrigados a beber água com creolina. Gomes ainda foi pendurado de cabeça para baixo no "pau-de-arara" e Quadros colocado nu numa câmara fria.


Presos tomavam água com creolina

Ambos suportaram tudo sem revelar o verdadeiro motivo de sua vinda ao Rio. Sabiam que ceder naquele momento seria o mesmo que condenar Vargas Neto à morte. Quadros sustentou o tempo todo que estava na cidade para tratar do seminário em São Paulo, enquanto Gomes insistiu até o fim que pretendia apenas encontrar-se com Paulinho da Viola e Sergio Cabral para finalizar a criação do Clube do Choro. O terror só foi interrompido no final da manhã, quando os torturadores ligaram para Paulinho da Viola, que confirmou a versão de Gomes. Mesmo assim, o pesadelo ainda estava longe de acabar.

Implacáveis - Algemados e com os olhos tapados com esparadrapo, Quadros e Gomes foram colocados em carros separados e mandados de volta para São Paulo. O destino, desta vez, era a rua Tutóia, onde funcionava o DOI-Codi, principal centro de tortura do regime no país. "O lugar estava cheio de estudantes, médicos, arquitetos, jornalistas e advogados", recorda Quadros. Foram mais 20 dias de castigos. Ao final desse período, chegou mais um grupo de presos, constituído em sua maioria por jornalistas. Entre eles, Wladimir Herzog, o Vlado, cuja morte nas dependências do DOI-Codi, no final de outubro de 1975, contribuiria para que Quadros e Gomes deixassem o local.

"A repercussão do caso obrigou o governo a dar uma esvaziada no DOI-Codi", diz Quadros. Com isso, os dois foram levados junto com outros presos para a sede paulista do Dops. Só então Quadros e Gomes foram oficialmente declarados presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Até então eles eram considerados desaparecidos. Muitos desses desaparecidos jamais voltariam a ser encontrados. "Sabemos que muitos que viviam na clandestinidade, depois de presos, eram levados para as chamadas ‘chacrinhas’, onde eram executados", destaca o professor.

No Dops, foram mais três semanas de cadeia. "Nessa época, quem nos ajudou muito foi dom Paulo (dom Paulo Evaristo Arns), através da Comissão de Justiça e Paz", relembra Quadros. O primeiro trabalho da Comissão era localizar e identificar o preso no DOI-Codi ou no Dops. "Uma vez identificada a pessoa, ficava mais difícil para o regime assassiná-la", observa. Depois do Dops, Quadros foi transferido para o então recém-inaugurado distrito policial do Cambuci, onde passaria mais 50 dias, até ser libertado. No distrito, segundo ele, a situação era melhor. "Até visita recebíamos". Mesmo assim, a obsessão do regime era implacável. "Até uma quadrilha de assaltantes de banco, que estava presa no local e nunca havia se envolvido com política, acabou enquadrada na Lei de Segurança Nacional".

A difícil reconstrução

O professor Waldir Quadros: "Muitos eram levados para as "chacrinhas" onde eram executados"Waldir Quadros deixou a cadeia no começo de 1976. Sua situação, porém, ainda estava indefinida. Seria necessário esperar por mais um ano até ser julgado. No final, a Justiça o declarou inocente, mas as dificuldades não terminaram. "Foi um período muito difícil porque não conseguia emprego", conta. "Sobrevivi graças à ajuda de amigos, que conseguiam serviços terceirizados", completa. Inocentado, tudo o que o jovem economista queria era reconstruir a vida. Para isso, escolheu a Unicamp como ponto de partida.

Em 1977 Quadros embarcou novamente na rodoviária de São Paulo. Desta vez, porém, o destino era Campinas e, o objetivo, conseguir uma vaga no curso de mestrado do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Ele não sabia, mas estava prestes a dar a volta por cima. No mesmo ano começa a trabalhar na unidade como técnico pesquisador num projeto coordenado pelo professor Luciano Coutinho em parceria com a Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap). "Trabalhava na Unicamp mas continuava morando em São Paulo", lembra. Seria o ponto de partido para tornar-se um nome respeitado no meio acadêmico.

O ambiente encontrado na Unicamp contrastava profundamente com a situação na capital, em especial na USP, onde a perseguição política era implacável. "A Unicamp era um dos poucos lugares no Brasil, na época, onde dava para fazer um estudo sério da realidade brasileira", afirma. "Esse cenário refletia a atuação de Zeferino Vaz, que desejava fazer da Unicamp um espaço crítico", completa. Era tudo o que o Quadros desejava para retomar a carreira.

Seu principal objetivo, porém, seria conquistado só dois anos depois, quando finalmente iniciaria o mestrado no IE. Daí em diante sua trajetória entrou num ritmo ascendente que não parou mais. Em 83, após prestar concurso, ingressa como professor do IE. Destaca-se como pesquisador, estudando a crise da classe média brasileira, participa como co-autor de diversas obras, chega ao posto de coordenador da pós-graduação e, apenas dez anos depois de ser contratado, assume a diretoria do Instituto. Atualmente, é um dos pesquisadores do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit).

"Toda aquela energia de transformação canalizei para a área acadêmica de pesquisa", assinala Quadros. Ao fazer um balanço de tudo, o professor conclui que a vinda para a Unicamp acabou decidindo o seu futuro pessoal e profissional. "Foi uma salvação em termos de cabeça e integridade intelectual; poucos tiveram essa chance", reflete. Segundo ele, durante a perseguição política, muitas carreiras se destroçaram. "O trauma é muito grande e muitos se perderam".

Para Quadros, a mudança para Campinas, de certa forma, lhe permitiu manter acesa a chama idealista dos tempos em que atuava como líder estudantil. "Tudo aquilo que me preocupava no movimento estudantil transferi para cá e transformei em trabalho na linha de pesquisa sobre a crise da classe média", conta. E, ao olhar para trás, quase 30 anos depois, o ex-estudante que lutou contra a ditadura enxerga apenas uma certeza: "Tudo valeu a pena. Fiz o que devia ser feito na época. Aquilo era insustentável para o Brasil".


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