MANUEL ALVES FILHO
As palavras ditadura e tortura constituem mais do que uma rima fácil. Uma é sinônimo da outra quando empregadas para resgatar parte da história relativa ao golpe militar de 1964, na voz dos que foram “derrotados”. O regime de medo imposto durante o período de exceção não poupou nenhum segmento alinhado ao pensamento de esquerda. Trabalhadores, sindicalistas, políticos, estudantes, intelectuais, artistas, professores, entre outros, foram perseguidos, presos e torturados. Muitos deram a vida em nome da resistência. Passados 40 anos da ascensão dos militares ao poder, por meio da força, personagens que viveram aquele momento ainda guardam vivos na memória detalhes acerca do clima que pairava no país, das suas próprias ações e da truculência dos prepostos do terror. O Jornal da Unicamp ouviu dois destes sobreviventes, ambos ex-alunos da Universidade
Robêni Baptista da Costa era estudante secundarista em Mirassol, cidade do interior de São Paulo, quando ocorreu o golpe militar. As notícias sobre as mudanças políticas em curso chegavam até ela e seus colegas por meio dos professores. As idéias de resistência, segundo ela, eram propagadas pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e por docentes oriundos da Universidade de São Paulo (USP). “Naquele momento, o movimento estudantil era muito forte, muito atuante”, relata. Várias discussões, acrescenta, eram vazadas pelo teatro. “Uma vez ao mês, minha escola participava de um programa denominado ‘O Interior vai ao Teatro’, que levava grupos de estudantes até a Capital. Lá, além de tomarmos ciência do que estava acontecendo através dos espetáculos, ainda tínhamos a oportunidade de trocar experiências com colegas de outras cidades. Política e cultura caminhavam juntas”.
Um ano depois do golpe, Robêni, atual subprefeita de Barão Geraldo, distrito de Campinas, decidiu se mudar para São Paulo, pois não encontrava mais clima para continuar em sua cidade. Trabalhadores, estudantes, sindicalistas e intelectuais, recorda, já estavam muito marcados. “Meu pai, que era um homem simples e trabalhador, sofreu muito. Ele, assim como outras pessoas, foi perseguido e espoliado”. Robêni rumou para a Capital de carona, na boléia de um caminhão. Lá, buscou guarida numa pensão, situada nas proximidades da Praça Marechal Deodoro, no Centro. “Eu não conseguia entender porque as mulheres que moravam lá dormiam até tarde e só saíam à noite, todas maquiadas”, diz, relevando um pouco da ingenuidade que ainda existia na jovem militante.
A atual subprefeita de Barão Geraldo prestou vestibular e ingressou na PUC, mas não deu seguimento aos estudos porque não tinha condições de pagar. Em seguida, entrou na USP. “Fui morar no Crusp [Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo], onde rapidamente me identifiquei com o pessoal de esquerda. Foi lá, dentro do movimento estudantil, que passamos a discutir propostas de um enfrentamento mais organizado da ditadura”, lembra. Na oportunidade, ocorreu uma dissidência dentro do PCB, o velho partidão. Foi criado, então, o Agrupamento Comunista de São Paulo, que mais tarde daria origem à Ação Libertadora Nacional (ALN), uma das organizações que adotaram a guerrilha como prática de combate ao regime.
Participavam da ALN, além de Robêni, nomes como Carlos Marighella, seu principal líder, e José Dirceu, atual ministro da Casa Civil. Robêni foi presa pela primeira vez em 1968, durante o congresso clandestino da UNE, em Ibiúna. Ficou uma semana na cadeia, mas não foi torturada. Acabou libertada porque deu nome e endereço falsos. A segunda detenção aconteceu um ano depois e durou um mês. Já a terceira e última prisão ocorreu em 1970, juntamente com o companheiro Alcides Mamizuka, na época estudante da Unicamp e que posteriormente viria a ser eleito vereador em Campinas (leia matéria na página 5). “Daquela vez, a barra pesou. Fomos levados ao DOI-Codi, onde fomos barbaramente torturados, tanto física, quanto psicologicamente. Éramos espancados, tomávamos choque e passávamos por interrogatórios diários. Outra coisa terrível era ouvir os gritos dos companheiros que também eram submetidos a sessões de tortura”, narra a subprefeita, com a voz embargada e os olhos marejados.
Foram quase quatro anos de horror nos porões da ditadura. Libertada sob condicional, Robêni ouviu do juiz que teria 45 dias para retornar à universidade ou arranjar um trabalho. Como já fazia parte da chamada “lista negra da USP”, ela decidiu mudar-se para Campinas, onde estavam os pais. Ainda assim, era obrigada a se apresentar semanalmente à Justiça. “Em Campinas, consegui uma vaga remanescente no curso de Lingüística da Unicamp, mas tive de fazer uma prova antes. Nesta fase, contei com o apoio dos professores Caros Vogt, Carlos Franchi e Rodolfo Ilari. Na Unicamp, as pessoas me respeitavam e até tentavam me preservar”, ressalta.
Questionada sobre se valeu a pena tanta dor e sofrimento em nome de uma bandeira, Robêni afirma que faria tudo novamente. Embora reconheça que o país está longe dos ideais de justiça, ética e igualitarismo defendidos por sua geração e considere que a “estrutura autoritária ainda permanece intacta”, ela se diz otimista. Mais do que isso, está pronta para continuar lutando pelo que acredita. “Costumo dizer, em tom de brincadeira, que daqui a pouco estarei participando de assembléias e passeatas de idosos em favor da redução do preço dos remédios”.
Resistência na província - Campinas, outubro de 1975. A repressão, que inicialmente atingia os adeptos da luta armada, agora estendia seus tentáculos sobre os partidos políticos organizados e as pessoas que estavam integradas à sociedade, como professores, estudantes, trabalhadores, sindicalistas e profissionais liberais. No dia 26 daquele mês, a cidade, que tinha aproximadamente de 300 mil habitantes, amanheceu chocada com a notícia da morte do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi. Um dia depois, o estudante de Economia da Unicamp, Gustavo Zimmermann, era arrancado do seu apartamento e levado, ainda em trajes íntimos, para a mesma rua Tutóia, em São Paulo. Junto com ele, foram detidos outros dois estudantes, Hélio Rodrigues e Osvaldo Luiz de Oliveira, e um professor, Ademir Gebara (veja matéria na página 9).
Atualmente, Zimmermann é professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, Hélio Rodrigues é docente da Unesp, Osvaldo Luiz de Oliveira é secretário de Planejamento da Prefeitura de Campinas e Ademir Gebara está aposentado. No DOI-Codi, os quatro foram torturados . “Tomávamos choques e éramos espancados”, conta Zimmermann. O grupo só não foi morto, acredita, em virtude da reação social ao assassinato de Herzog. “Além disso, nós estávamos integrados à vida social da cidade. Os representantes da ditadura sabiam que não poderiam nos esconder por muito tempo e nem simular um acidente conosco, pois muita gente cobrava notícias sobre nossa situação”, analisa.
Zimmermann começou a participar do movimento estudantil em Santos, sua terra natal, conhecida na década de 60 por “cidade vermelha”, por ser reduto de um movimento de esquerda forte. Assim que chegou em Campinas, para integrar a primeira turma do curso de Economia da Unicamp, logo se juntou aos estudantes engajados na luta contra a ditadura. “Em apenas dois meses, nós já estávamos articulados para formar o Centro Acadêmico de Ciências Humanas (Cach), entidade que teve um papel importante na resistência feita na cidade”, diz. Para fugir ao controle administrativo da Universidade, os estudantes registraram o Cach em cartório, como uma organização civil.
Além de promover reuniões para discutir, de forma politizada, alternativas ao regime de exceção, os alunos da Unicamp desencadeavam ações de enfrentamento ao sistema em vigor. Assim, as reportagens que deixavam de ser publicadas nos jornais, por determinação dos censores, eram copiadas e afixadas em murais estrategicamente espalhados pelas dependências da Unicamp. “Dessa forma, nós conseguíamos manter a comunidade acadêmica informada do que estava acontecendo realmente”, afirma Zimmermann. Além disso, as repúblicas de estudantes também atuavam de forma solidária com os militantes políticos. Os jovens criaram um código, que consistia em manter as lâmpadas das casas acesas ou apagadas para informar se tudo estava bem ou não.
“Graças à mobilização da comunidade acadêmica, o reitor Zeferino Vaz recorreu às autoridades e conseguiu quebrar a incomunicabilidade dos presos políticos que tinham vínculo com a Unicamp”, recorda. Perguntando se o sacrifício coletivo e pessoal valeu a pena, o docente do IE afirma que sim, embora admita que muitos dos objetivos daquela geração não tenham sido alcançados até hoje. “Fico orgulhoso de ver que a resistência, organizada ou não, rendeu frutos. Muitas daquelas pessoas se distinguem até hoje pelos papéis públicos ou sociais que exercem. São professores, políticos, jornalistas etc, que continuam trabalhando pelo bem da sociedade. Por outro lado, fico perplexo em observar a capacidade de solvência que o avanço do capitalismo mostrou sobre as resistências sociais. Tudo isso dá um sentimento de impotência”, desabafa.