Era um esgrimista, sabia flutuar entre situações adversas e foi o único reitor do país a visitar os porões da ditadura. Tinha sempre um discurso pronto para o 31 de março, a data de aniversário do golpe de 1964, e nos quartéis era reconhecido como um aliado do regime. Valia-se de sua influência no meio militar para tentar livrar professores e alunos, mas exigia de seus protegidos, em contrapartida, o cumprimento de um compromisso tácito: eram livres para escolher a ideologia que quisessem, mas deviam abster-se de fazer proselitismo. Dependendo da qualidade dessa troca, era às vezes suave, às vezes rigoroso como um general da linha dura. Assim se comportou Zeferino Vaz, fundador da Unicamp, durante os anos de chumbo.
EUSTÁQUIO GOMES
Corria o ano de 1968. Vasco, ou Luiz Antonio Teixeira Vasconcelos, segundanista de Ciências Exatas da Unicamp, acabava de chegar de uma reunião preparatória ao XXX Congresso da UNE. O congresso aconteceria meses mais tarde em Ibiúna. No corredor do prédio da rua Culto à Ciência, onde funcionava o curso, foi interpelado pelo general Valverde. O engenheiro José Fonseca Valverde, general de brigada da reserva, phD por Stanford, fora trazido pelo reitor Zeferino para ajudar a instalar e dirigir as engenharias.
Por onde andou?
No Mosteiro de São Bento, em Valinhos.
Valverde, sabendo do que se tratava, censurou-o. Vasco alegou sua condição de presidente do Centro Acadêmico das Ciências Exatas e, em última instância, de estudante preocupado com os rumos da sociedade brasileira. Explicou-lhe que naquelas reuniões discutia-se o papel da universidade. Universidade crítica ou universidade popular? era esse o dilema que, naquele momento, agitava tais discussões. A um general de expressão incrédula Vasco garantiu que, se dependesse dele e dos estudantes da Unicamp, prevaleceria a universidade crítica.
Vocês não devem se meter em reuniões clandestinas ralhou.
Na verdade, Valverde refletia a crescente preocupação do regime militar com a inquietação que fermentava no interior das universidades. O sinal de alerta se deu quando chegaram as primeiras notícias das barricadas de Paris, em maio, naquela que seria a mais memorável rebelião estudantil do século. Essas notícias encontraram no Brasil a atmosfera já inquinada pela morte do estudante Édson Luís de Lima Souto, ocorrida semanas antes no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, durante um confronto dos universitários com a Polícia Militar.
Na Unicamp em particular, apesar do número de estudantes ainda não passar de 500, o clima era de uma tensão matizada por um fenômeno que brotara e se desenvolvera nas bases do curso de Medicina: o das “Comissões Paritárias”. Integradas em pé de igualdade por professores, estudantes e funcionários, as comissões reivindicavam a prerrogativa de debater (e às vezes deliberar) sobre questões de ordem acadêmica, administrativa e assistencial. Eram lideradas pelo preventivista Sérgio Arouca e animadas por um grupo de professores ligados ao Departamento de Medicina Preventiva considerado por “um ninho de comunistas” entre os quais sua mulher Ana Maria Arouca e os médicos Miguel Tobar e José Martins Filho. Traziam conferencistas do porte do sociólogo Florestan Fernandes e chegavam a parar as aulas para discutir aspectos mal resolvidos do curso.
Zeferino, sentindo o ar saturado de pólvora e de descontentamento, soube nadar a favor da corrente deixando que avançassem, alterassem normas e até influíssem nos currículos. Tudo sob o olhar crítico de Valverde, que pelas costas acusava-o de contratar e dar trela a agitadores. Manifestações de estudantes rebentavam em todo o país. Em abril o governo militar iniciou um movimento de apreensão de jornais e livros que considerava lesivos ao regime e proibiu a coalizão política da Frente Ampla. Foram extintas as eleições para prefeito em 65 municípios considerados áreas de segurança nacional, entre os quais Paulínia, sede da Refinaria do Planalto, vizinha do campus em construção. Em julho foram proibidas as manifestações de rua e engrossada a intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos. Agentes do Comando de Caça aos Comunistas, o sinistro CCC, haviam depredado o Teatro de Arena, em São Paulo, onde era levada a peça Roda Viva, do cantor Chico Buarque de Holanda. E em setembro, quase às vésperas do Congresso da UNE, o governo fez passar no Congresso uma reforma universitária que levava em conta os termos do odiado acordo entre o Ministério da Educação e a United States Agency for International Development (Usaid).
A reforma, que entre outras coisas, extinguia a cátedra vitalícia nas universidades. Neste ponto Zeferino não transigia: era um inimigo notório da cátedra e tinha-a desconsiderado solenemente ao constituir a estrutura acadêmica de sua jovem universidade, antecipando-se em dois anos à reforma de 1968. “A cátedra é a única estrutura medieval que ainda subsiste na sociedade moderna”, vinha repetindo desde a década de 50. Para os estudantes, no entanto, sob essa capa de modernização a reforma dos militares escondia a tentativa de privatização do ensino superior público. Na Unicamp, até os convênios que Zeferino assinava com a Federação das Indústrias entravam nesse contexto: enquanto ele afirmava estar integrando currículo e profissionalização, os estudantes viam nisso nada menos que a materialização das diretrizes do acordo MEC-Usaid, ou seja, a colocação da universidade a serviço do setor privado.
A aderência tem que ser com a sociedade, não com o empresariado discursou Vasco no Conselho da universidade, depois de uma longa argumentação na linha de Cohn-Bendit, o estudante líder da rebelião parisiense.
Quando Zeferino se propunha a responder provocações da esquerda estudantil, em geral deixava perplexos até os mais radicais. Aderência com a sociedade era com ele mesmo, dizia. Afinal havia dirigido por oito anos uma faculdade de medicina veterinária e fundado e dirigido por outros doze uma faculdade de medicina cujos laços com a sociedade civil “eram evidentes”. No que concernia aos objetivos da universidade e ao anquilosamento de sua estruturas, ele se punha ao lado dos reformistas mais ousados. E se as barricadas de Paris defendiam a queda de um sistema tão arcaico e burro, então ele estava ao lado das barricadas de Paris.
Não raro, quando vinham lhe trazer propostas que supunham avançadas demais para um reitor que pactuava com o sistema, eram surpreendidos com uma resposta do tipo: “Mas como vocês são atrasados!”. E ouviam dele soluções que iam muito além de suas expectativas. Assim, desde o começo da Unicamp gostava de envolver os estudantes na elaboração de estatutos e de minutas de currículos, ainda que essa colaboração só valesse como contrapeso. Foi de fato um dos primeiros reitores a acatar o princípio da representatividade estudantil nas instâncias deliberativas, mas não levava a sério a pretensão das lideranças que exigiam a participação de alunos nas decisões administrativas. Num documento de 1962, em resposta a uma greve geral de estudantes na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ele deixou claro sua posição:
É evidente que quem está estudando medicina não pode decidir sobre quem deve ensiná-la ou como deva ser ensinada.
Chamava de “retrógrada e desordenada” a experiência feita nas primeiras universidades européias, na Idade Média, quando havia um co-governo de estudantes e professores para decidir sobre questões de que os professores entendiam pouco e os estudantes menos ainda. Jogava farpas na universidade argentina e sua famosa reforma de 1918, que nascera de uma rebelião estudantil iniciada em Córdoba, com desdobramentos em toda a América hispânica:
A experiência dos países latino-americanos nos quais os estudantes participam dos órgãos dirigentes das faculdades já demonstrou com meridiana clareza que as suas universidades são de baixo padrão e sem qualquer prestígio perante o mundo civilizado.
Sua intolerância para o que considerava “quebras de hierarquia” se estendia a questões de disciplina, sobretudo quando soavam como uma ameaça à autoridade. Em 16 agosto de 1968, ao concluir o primeiro edifício no campus, viu nisso uma excelente ocasião para melhorar suas relações com o governador Abreu Sodré. Convidou-o a vir inaugurá-lo. Sodré apareceu escoltado por quatro secretários de Estado. Enquanto a cerimônia transcorria no campus, no centro de Campinas os estudantes promoviam comícios-relâmpagos e distribuíam planfletos contra “o caráter demagógico e promocional da inauguração”. Num dos folhetos, intitulado “Desbravando canaviais”, criticavam a poeira, o barro e a precariedade da infra-estrutura do campus. Não ousaram afrontar Zeferino de frente: teriam topado com um denso aparato policial providenciado pelo reitor, que não queria ver estragada a festa preparada para o governador. Sabedor do comprometimento de Sodré com os esquemas de repressão política Abreu Sodré foi quem organizou a Operação Bandeirantes, a sinistra OBAN Zeferino misturou em seu discurso o elogio da “rusticidade e solidez mais que monásticas” dos edifícios que projetara para o campus com uma ambígua retórica revolucionária:
O clamor não ouvido dos jovens transformou-se em força emocional e passou à agressividade. Os subversivos e os inconformados aproveitaram essa agressividade e, colocando-se na crista da onda, dirigiram-na para fins destrutivos e para a luta ideológica.
O governador gostou do que viu e ouviu. Instruído por seu secretário da Finanças, Dilson Funaro, começou a abrandar sua atitude para com o “baixinho”. Semanas depois, essa reaproximação seria muito útil a Zeferino quando se tratou de tirar da cadeia seis estudantes da Unicamp presos durante a ação policial que resultou na detenção de todos os 1.240 participantes do Congresso de Ibiúna. Vasco viu quando Zeferino entrou na cela do presídio do Carandiru onde estava, entre dezenas de outros estudantes do país todo, a delegação de Campinas. Vinha acompanhado de um militar que o tratava com extrema deferência. Soube-se depois que foi a única autoridade universitária a se interessar pela sorte de seus estudantes. Trazia cobertores e um alentado estoque de chocolates, bolachas e cigarros Minister.
Conversei pessoalmente com o governador e ele me prometeu soltar vocês disse.
Na cela ampla e caótica, Zeferino foi cercado pela turba de estudantes que há dois dias esperavam uma notícia do “mundo livre”. Para animá-los, descreveu com humor teatral uma invasão de seu gabinete por colegas deles que pediam a libertação deles sob gritos de “A UNE somos nós!”. Reproduziu com tal ênfase o discurso dos organizadores do protesto, que parecia tê-lo incorporado para si mesmo. O militar ficou impressionadíssimo. Não se sabe se Zeferino disse ali a frase que depois se tornaria célebre em alguns comandos militares “Dos meus comunistas cuido eu” para admiração de uns e cólera de outros, mas sua atitude no Carandiru a justificava.
Alguns dias depois, não só os estudantes da Unicamp foram liberados, mas todos os prisioneiros de Ibiúna.