Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 246 - de 29 de março a 4 de abril de 2004
Leia nessa edição
Capa
1964 - Democracia Golpeada
No inferno da câmara fria
Ex-ativista: Robêni
Dossiê: Congresso da UNE
Dossiê: Zeferino
Dossiê: General de brigada
Dossiê: Homem do sistema
Dossiê: Zeferino nos porões
Quatro visões do golpe
Meninos do ITA
 

7

DOSSIÊ

JOSÉ Fonseca Valverde, phD por Stanford, achava Zeferino leniente com a esquerda

Em rota de colisão com um general de brigada


No início de 1969, sob o efeito alucinante do AI-5, o general José Fonseca Valverde continuou subindo nas tamancas bem à vista do pequeno Zeferino. Em mais de uma ocasião voltou a mostrar a professores e funcionários o famoso revólver que carregava na valise. Ao geneticista Frederick Brieger, um dos pais da genética vegetal no Brasil, a quem acusava de liderar uma ala esquerdista na universidade, ao lado do físico nuclear Marcelo Damy de Souza Santos, Valverde disse à queima-roupa, exibindo a arma niquelada:

- Agora, na universidade, as coisas serão resolvidas à bala!

Brieger, um cientista apolítico que viera da Universidade de Londres em 1936 para exercer durante 31 anos a cátedra de genética na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, unidade da USP em Piracicaba, queixou-se dele ao reitor. Damy, que em abril de 1967 fora o responsável pela incorporação de Valverde aos quadros da universidade, agastou-se com seu apadrinhado. Damy podia não simpatizar com os golpistas de 1964, mas daí a ser alinhado entre os comunistas era conclusão muito apressada.

O general, desejoso de dar sua colaboração ao processo de caça às bruxas que se iniciava, não só via esquerdistas por toda parte - no que em certa medida tinha razão - como também culpava Zeferino por incorporá-los com tamanha leniência. Murillo Marques, por exemplo, era casado com a bioestatística Elza Berquó, então ativa militante do Partido Comunista (....). E do grupo de economistas que gravitava em torno de Fausto Castilho talvez não houvesse um único que não se declarasse marxista, embora Zeferino, com humor sardônico, classificasse a alguns deles de "ademarxistas" (uma referência aos partidários do anticomunista Ademar de Barros que liam Marx e Engels).

Valverde via esquerdistas por toda a parte

Mas a cruzada de Valverde para obter supremacia moral sobre o comum dos mortais, fossem eles físicos ou economistas, biólogos ou matemáticos, começara bem antes do AI-5. Já em meados de 1968 não lhe bastava ser diretor da Faculdade de Engenharia e diretor do escritório de obras do campus em construção. Queria também ser o representante da Revolução entre os acadêmicos, uma espécie de interventor branco na universidade. Quando sua pretensão era rechaçada pelos professores, isto só lhe aumentava a irritação. Ao economista Roberto Gamboa, por exemplo, recusou-se rudemente a seguir as normas prescritas pelo grupo de trabalho que preparava o orçamento plurianual da instituição:

- Não posso aceitar essa imposição. Tenho vivência em assuntos universitários e um pós-doc em Stanford. Trabalhei na General Electric. Não vou me submeter a um grupo de medíocres.

Não satisfeito, subiu ao gabinete do reitor e propôs-lhe que o nomeasse vice-reitor. Condescendia que Zeferino continuasse mandando, mas queria estar imediatamente abaixo dele na escala hierárquica. - Mas o cargo de vice-reitor não existe em nossa estrutura, esquivou-se Zeferino.

E explicou a Valverde que nos termos da lei que criara a Unicamp o substituto natural do reitor era o coordenador-geral, cargo que no momento era exercido pelo médico Paulo Gomes Romeo, seu velho amigo e principal colaborador durante os 12 anos em que duramente implantaram a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Frustrado, Valverde saiu pisando em brasas. Nunca perdoou Zeferino pelo que considerou falta de grandeza e de reconhecimento por seu trabalho à frente da Comissão de Planejamento da Universidade de Campinas e depois do escritório de obras, a Cotec. A partir daí começou a falar mal dele dentro e fora da universidade. Aos empresários da cidade, por exemplo, Valverde dizia que Zeferino era contra a indústria de Campinas, por ser esta predominantemente estrangeira. Era uma alusão ao esforço dos economistas "marxistas" do Departamento de Planejamento Econômico e Social, o Depes, na época fortemente empenhados em criar um centro de apoio à pequena e média indústria brasileira, isto é, uma idéia nacionalista e por conseqüência antitruste.

O que Zeferino estava longe de imaginar é que a campanha contra ele armada pelo general ameaçava corroer, como ácido gotejante, seu prestígio de homem da Revolução nos comandos militares. Numa longa carta dirigida ao próprio Valverde, cujo destinatário de fato eram os comandantes militares da região, o reitor se esmerava em dar sua versão desse fato:

A partir de minha negativa de fazê-lo vice-reitor, começou V. Exa., a princípio discretamente, e depois abertamente, a tomar atitudes agressivas de solapamento e de desmoralização da autoridade, não somente do reitor, como também dos coordenadores dos institutos, do Conselho Diretor e de funcionários administrativos da mais alta categoria. Passou V.Exa. a cultivar um clima de tensão e de medo por abuso de sua condição de general de brigada R/1 do Exército brasileiro". (Ofício de 31/12/1969).

O que na aparência era uma situação simples de resolver - Zeferino tinha amplas relações entre os militares - podia complicar-se se não agisse rápido para dirimir dúvidas que acaso pairassem sobre sua fidelidade ao regime. Muito possivelmente ele não fazia idéia de que sua ficha no Departamento Estadual de Ordem Política e Social, o Deops, principal braço do Serviço Nacional de Informação, começava por uma referência a sua atuação como presidente, em 1946, de uma certa Associação Brasileira dos Amigos do Povo Espanhol, "entidade que agrega grande número de adeptos do comunismo". Além disso, no suposto dossiê que Valverde havia montado contra ele, segundo se soube mais tarde, constavam insinuações de irregularidades administrativas e "uso indevido" de carros oficiais1.

Aos mais próximos, Zeferino procurou aparentar despreocupação. Buscou razões clínicas para a rebeldia do general. No manuscrito de uma carta que dirigiu ao comandante do batalhão (BCCL) de Campinas, coronel Sidney Teixeira Álvares, descreve-o como um doente e trata seus rompantes como "estados de alteração psíquica caracterizados por bruscas variações do grau de emotividade, com alternâncias abruptas de depressão e euforia que atribuímos à giardíase crônica e depois à amebíase de que se diz portador o general Valverde". Julgava assim desqualificar o general e suas informações contraditórias.

A noite de 2 de dezembro de 1968, no entanto, serviu para colocá-lo em estado de alerta. Numa festa na casa do biólogo Walter August Hadler, que comemorava as bodas de prata de seu casamento, um médico da cidade com relações no meio militar, o legista Joaquim Barreto Fonseca, revelou que no decorrer da semana seguinte haveria grandes novidades. Diante de quatro testemunhas fiéis a Zeferino2, confidenciou:

- Há uma lista de cassações. O reitor de vocês está nela.

Com riqueza de pormenores, Barreto Fonseca descreveu as duas reuniões militares que presenciara na Guarnição de Campinas, presididas por seu comandante o coronel Fernando Cerqueira Lima. Na última estava presente o delegado regional de polícia, Cid Guimarães Leme. Segundo Barreto pôde depreender, os militares estavam sendo informados pelo general José Fonseca Valverde, que tinha como linha auxiliar o ex-reitor Mário Degni e antigos funcionários da Faculdade de Medicina que não tiveram seus contratos renovados por Zeferino. A lista de cassações seguiria para análise do Conselho de Segurança Nacional, que tinha reunião marcada para dali a três dias, sendo o caso, portanto, de extrema urgência.

Na manhã seguinte, um sábado, o diretor administrativo Rogério D'Ávila apanhou o telefone e colocou o reitor a par dos fatos. Zeferino, descansando em sua residência no bairro do Morumbi, em São Paulo, mostrou-se incrédulo e atribuiu tudo a "boataria alarmista desse tal Barreto Fonseca", mas em todo caso pediu que D'Ávila se informasse mais a respeito. Do outro lado da linha, o delegado Leme garantiu a D'Ávila que "na área da Polícia Civil nada consta contra o professor Zeferino", o que podia significar que outra fosse a realidade na área militar. Zeferino não hesitou mais. Viajou a Campinas e bateu na porta de Cerqueira Lima. O comandante tranqüilizou-o:

- Bobagem. Ora, o senhor é um dos baluartes da Revolução.

---------------------------------

1) Maíza Valverde, viúva do general José Fonseca Valverde, declarou ao jornal Correio Popular, de Campinas, que “o conjunto de irregularidades” foi suficiente para encher 12 volumes que seriam encaminhados ao comandante do II Exército, José Canavarro Pereira, mas que, antes disso, “o dossiê caiu nas mãos de um amigo do reitor que trabalhava no exército”. Depoimento aos jornalistas Beatriz Elias e José Pedro Martins, in Correio Popular de 24/8/1997.

2) Rogério D’Ávila, diretor administrativo do Instituto de Biologia; Liswaldo Mário Zitti e Átila Ribeiro Poncián, respectivamente auxiliar e cunhado do diretor do Instituto, Walter Augusto Hadler; e o próprio Hadler.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP