EUSTÁQUIO GOMES
Declarada a guerra contra o general Valverde, Zeferino descobriu que o dossiê preparado contra ele estava a ponto de se transformar num inquérito policial militar. Contando com a ajuda de seu secretário e factótum Arnaldo Oliveira Camargo, um ex-delegado que conhecia de longa data o diretor do Deops, Benedito Nunes Dias, Zeferino não teve dificuldade para desarmar a bomba. Mas jurou de morte o general.
A partir daí, dedicou parte substancial de seu tempo a um exercício que não o desgostava: destruir lentamente seus inimigos lançando mão de armas institucionais e regimentais. No caso de Valverde isso não seria tão difícil quanto poderia parecer, pois o general, acreditando num poder de fogo maior do que o que possuía, tratou de acirrar os ânimos contra todos os que julgava alinhados com o reitor.
- Como vão os lacaios do reitor? - costumava perguntar aos desafetos quando os encontrava reunidos.
Nos meses seguintes os incidentes se intensificaram. Uma vez, ao encontrar casualmente o diretor da Faculdade de Engenharia Civil, Pedro Moraes Siqueira, acusou-o à queima-roupa de prestar-se ao papel de inocente útil de Zeferino, apoiando-o em questões "contrárias aos interesses da Nação".
- Aliás, continuou, dentro de pouco tempo muitos elementos da universidade serão afastados por bem ou por mal. Se necessário, haverá uma espécie de "esquadrão da morte" para garantir a ordem aqui dentro.
De todos esses fatos Zeferino pedia relatórios aos ofendidos e humilhados pelo general. No dossiê constam ainda ofícios detalhados do diretor da Faculdade de Medicina, Antonio Augusto Almeida, e do diretor do Colégio Técnico de Limeira, Manuel da Silva, a quem Valverde repreendeu por um assunto banal, aos berros, falando "em nome da Revolução". Não era pois de espantar que, em março de 1969, o general rejeitasse na íntegra, em um ofício lacônico, o anteprojeto de estatuto da universidade redigido por uma comissão encabeçada por Brieger. Em represália, o Conselho Diretor aprovou a transferência do Centro de Processamento de Dados, que para Valverde era área afeta à segurança nacional, para o Instituto de Matemática, onde reinava o estatístico Rubens Murillo Marques. Pouco antes o próprio reitor, num ofício duro, ordenou ao general que tornasse nula a abertura de inscrições para o que Valverde pretendia fosse o primeiro curso de pós-graduação da Unicamp, em sua unidade de ensino.
- Falta-lhe autoridade para tanto, escreveu. Quem autoriza o funcionamento de cursos de pós-graduação na universidade sou eu.
Em fins de abril de 1969, o general armou-se de novas esperanças com a disposição mostrada pelo governo federal de impor limites aos focos de resistência ideológica no meio acadêmico. Dois decretos presidenciais atingiram em cheio o coração das universidades. O primeiro deles, do dia 25, aposentava 42 professores universitários em todo o país, entre os quais o diretor da Faculdade de Filosofia da USP, o sociólogo Florestan Fernandes. E, no dia 29, um decreto especial para a USP demitia o reitor Hélio Lourenço de Oliveira e aposentava precocemente 23 professores, entre os quais os sociólogos Bento Prado, Caio Prado Júnior, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, o médico bioquímico Isaías Raw, o físico Mário Schenberg, o filósofo José Arthur Gianotti, o economista Paulo Singer e a bioestatística Elza Berquó.
Mas isto de nada serviu ao general, pois Zeferino estava obstinado em não permitir que prosperassem listas em Campinas. Se listas havia (há quem assegure que havia) ficavam hermeticamente fechadas na gaveta do inefável Camargo. Assim tão bem servido e escoltado, Zeferino sentiu que era hora de livrar-se do general.
Começa por exonerá-lo do cargo de diretor das obras do campus. Acusa-o de atrasar a construção de um prédio de salas de aula e de pôr em risco o ano letivo de 1969. Mas não toma essa decisão sem nomear, antes, uma comissão de "exame do estado das obras" cujo relatório, redigido por Damy, qualifica Valverde de ineficiente. Valverde, colocado na defensiva, alega dificuldades financeiras e depois burocráticas na compra de tijolos concretados. Zeferino refuta e no dia seguinte, como por milagre, põe 10 mil tijolos concretados no canteiro de obras do campus. Perplexo, Valverde diz que, em princípio, ninguém era responsável pelo atraso das obras. Zeferino espuma:
- Na universidade há um responsável que sou eu. Responsável perante o governo que me confiou recursos, perante a coletividade que paga os impostos e perante minha própria consciência.
Na reunião seguinte do Conselho o cerco foi fechado. Sob o olhar deliciado de Zeferino, armou-se um bate-boca entre o general e Murillo Marques. Antes que Valverde concluísse uma exposição de motivos sobre os bons serviços que havia prestado à universidade, Murillo interrompeu-o.
- É a terceira vez que ouço o histórico de suas realizações, professor. Acho que isto ficará bem na hora em que se escrever a história da Universidade de Campinas com o inevitável capítulo dos erros iniciais e dos pecados originais. No momento não interessa.
Valverde irritou-se:
- Faço esse histórico para mostrar que minha preocupação sempre foi colaborar com a universidade, enquanto seus interesses são bem outros, professor.
Aludia às supostas ligações de Murillo com a esquerda. Murillo:
- Meu interesse é ministrar aulas aos meus alunos, pois para isso fui contratado. Ao passo que o senhor está aqui há dois anos e não deu ainda nenhuma aula na universidade.
Por volta de setembro Zeferino compreendeu que a partida contra o general estava ganha. Mas, por precaução, redigiu de próprio punho um memorial sobre suas próprias atividades anticomunistas antes e depois de 1964, para servir de antígeno às acusações de fundo político do general. No segundo item desse documento, escrevendo na terceira pessoa, chega a gabar-se de uma delação:
Em janeiro de 1964, como presidente do CEE, sob cuja jurisdição estavam os institutos isolados, solicitou ao então governador do Estado o decreto de dispensa do diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara por estar "comunizando" os alunos, e concedeu entrevista a O Estado de S. Paulo tornando públicas as razões da dispensa. Além disso, o tal diretor propusera a contratação de Caio Prado Júnior como professor da faculdade.
Note-se que àquela altura muito pouca gente tinha a coragem de opor-se publicamente à subversão. A verdade é quase todos estavam acovardados. A entrevista que concedi era tão agressiva que o dr. Júlio de Mesquita Filho telefonou-me na noite da véspera da publicação para saber se eu a confirmava em todos os termos. Obviamente a confirmei e assim foi publicada com destaque.
Como conseqüência, os comunistas mobilizaram a imprensa e a Câmara de Vereadores de Araraquara contra mim dizendo que o meu objetivo era fechar a Faculdade de Filosofia.
Desafiei-os abertamente para um debate público irradiado, presentes vereadores, estudantes, professores, autoridades e povo, e, em auditório da Faculdade de Filosofia de Araraquara enfrentei-os e desmascarei os subversivos no dia 25 de março de 1964.
Para completar, Zeferino acusa o programa de vestibulares da escola de Araraquara de relacionar somente autores marxistas em seus pontos de História do Brasil. Tais autores eram Caio Prado Júnior e Celso Furtado. No fim da nota, Zeferino conclui que não era por acaso que o diretor da faculdade, Paulo Guimarães Fonseca, estava em viagem de seis meses pela União Soviética.
Uma série de cartas de amigos e "companheiros na luta anticomunista" completa o memorial enviado às instâncias militares. Em seu depoimento, a reitora da Universidade Mackenzie e conselheira do CEE durante anos, Esther de Figueiredo Ferraz, declara-se "indignada com a notícia de que o ilustre professor teria sido acusado de atitudes dúbias em relação à esquerda, e de dar apoio e ser apoiado, no governo da Universidade Estadual de Campinas, por elementos comunistas". Mais adiante, a futura ministra de Educação do governo Geisel assegura que "o prezado amigo sempre se revelou um ativíssimo líder anticomunista e anti-esquerdista, sendo públicas e notórias as atitudes que neste sentido tomou" nos altos encargos que assumira até então. Outros testemunhos do mesmo teor levam a assinatura do jurista Miguel Reale, do dentista Carlos Liberalli e do engenheiro Theodureto de Arruda Souto, da Escola Politécnica da USP, um dos autores da primeira lista de "subversivos" da USP, em 1964.
A essa altura Zeferino já se sentia fortalecido o bastante para passar de acusado a acusador. Punha em dúvida que o general tivesse sido alguma vez um revolucionário de verdade, pois se licenciara em 1960 e se reformara no ano seguinte para assumir um cargo na General Electric, no Rio de Janeiro, "após usufruir por cinco anos, nos Estados Unidos, de bolsas de estudos na Universidade de Stanford, entre 1952 e 1957"; enquanto ele, expondo-se "publicamente a represálias perigosas", combatera energicamente o governo "que levaria o país ao caos social".
- V. Exa., que não moveu uma palha no sentido de combater a esquerda subversiva, assume agora, com bravatas e rompantes, o papel de cristão-novo da Revolução; agora que não há mais perigo, e para satisfazer interesses pessoais subalternos, passa a difundir calúnias e a difamar o reitor.
Chega a acusá-lo de pretender o cargo de reitor e, para isso, não hesitar em usar "os métodos da subversão e de desmoralização da autoridade, para gáudio dos esquerdistas". E arremata:
- Além disso, o senhor alardeou a condição, que ninguém lhe delegava, de representante da Revolução na universidade.
Em 31 de dezembro de 1969 o general Valverde é exonerado da função de diretor da Faculdade de Engenharia de Campinas - na prática, é demitido da universidade - mediante uma carta de sete compactas páginas em que Zeferino, num estilo implacável, dá as razões de seu gesto. No mesmo dia, para substituir o inquieto general de brigada que falhara em mobilizar seus pares contra o Napoleãozinho como alguns chamavam Zeferino , nomeia para o cargo o politécnico Theodureto, o mesmo que, em meados de 1964, ajudara a perpetrar o primeiro listão da USP.
Um ano depois, Zeferino ainda se esforçava por apagar a pecha de leniente com a esquerda. Em dezembro de 1970, quando é substituído o comando da Guarnição Militar de Campinas, ele se apressa em encaminhar ao novo comandante, coronel Rubens Resstel, um ofício acompanhado de farta documentação sobre suas atividades anticomunistas. No mesmo ofício sugere ao comandante que encaminhe o dossiê ao general João Batista Figueiredo, chefe do SNI, por se tratarem de "documentos que desmentem frontalmente as acusações caluniosas de acobertador de subversivos que me fazia o coronel (sic) José Fonseca Valverde com o objetivo evidente de conseguir minha destituição do cargo de reitor". Menciona pilares do regime que tinham plena confiança nele, a começar pelo ex-presidente Castello Branco, passando pelo ex-governador paulista Laudo Natel e pelos generais Canavarro Ferreira e Ernani Ayrosa.
- Será possível que esses homens estivessem tão mal informados a meu respeito? pergunta.
Mas a fama resistiria ainda por muito tempo no coração da linha dura do exército. Em 1975, durante a comemoração de mais um aniversário da quartelada de 31 de Março celebrada no Batalhão de Infantaria Blindada de Campinas, Zeferino teve de ouvir, a certa altura do discurso do general Moraes Rêgo, uma frase destinada a fazê-lo baixar a crista:
- Sabemos que a universidade hoje em dia é uma esculhambação: só tem comunista!
Zeferino ouviu calado, mas no fim da cerimônia, diante do general e de dois pupilos que levara a tiracolo, os jovens economistas João Manuel Cardoso de Mello e Luiz Gonzaga Belluzzo, deu o troco:
- Comandante, o senhor entende de caserna. De universidade entendo eu.
Moraes Rego sorriu e abraçou-o