LUIS SUGIMOTO
Em três momentos do regime militar - 1964,1965 e 1975 - 21 alunos e dois professores do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) foram expulsos por motivos políticos, depois de passarem meses na prisão, havendo relatos de torturas. Dentre vítimas, coadjuvantes e testemunhas daqueles episódios, muitos "iteanos" vieram seguir com suas vidas na Unicamp, tecendo uma relação peculiar entre as duas instituições. O professor Hermano Tavares, reitor da Unicamp na gestão passada, é um dos 13 ex-alunos civis e militares do ITA integrantes do Grupo dos Sábados, que desde julho de 2003 vêm intermediando atos de reparação aos colegas injustiçados pelo regime. Nesse sentido, Tavares informa que a Congregação do ITA acaba de aprovar moção convidando seis dos estudantes expulsos, que estavam no último semestre do curso, para que voltem a se matricular na instituição e, cumpridos alguns trâmites, recebam seus diplomas de engenheiro. Ações que sinalizem para a reconciliação estão sendo pensadas para todos os demais.
Em 1964, ano do golpe, patrulhas da Aeronáutica retiraram alunos do ITA das salas de aula para submetê-los a Inquérito Policial Militar (IPM), que visava identificar e criminalizar suas atividades na política estudantil. Doze deles, depois de quase seis meses de prisão, foram libertados por habeas corpus, mas o IPM concluiu pelo desligamento do grupo. Os professores Szmul Jakob Goldberg e Arp Procópio de Carvalho (ambos falecidos) também foram detidos, interrogados e destituídos em outubro, acusados de oposição ao regime. A turma de formandos de 1965, além de homenagear os colegas e professores desligados no ano anterior, decidiu escolher como paraninfo o professor Alceu Amoroso Lima, líder católico e crítico dos militares. A ousadia resultou em mais quatro estudantes expulsos.
Passados os anos negros de Médici, quando o movimento estudantil começou a tirar a mordaça para ganhar novo fôlego, o governo apresentou o projeto de lei 2.113/74, tornando obrigatório que alunos formados no ITA servissem à Aeronáutica ou reembolsassem o período escolar desfrutado como civil. Seria a militarização definitiva da instituição. Graças à mobilização do Centro Acadêmico Santos Dumond (Casd), pela primeira vez um projeto do Executivo militar foi derrubado no Congresso Nacional. No que pareceu um revide, em outubro de 1975, cinco alunos que articularam votos junto a senadores do MDB e Arena acabaram presos, sob alegação de participarem de reuniões do proscrito Partido Comunista. Clovis Goldemberg, Marcelo Moreira Ganzarolli, Osvair Vidal Trevisan, Sérgio Salazar e Waldir Luiz Ribeiro Gallo, expulsos da escola antes mesmo de julgados em primeira instância, são os estudantes que, ao se transferirem para a Unicamp, ficariam conhecidos no campus como "os meninos do ITA".
Sons da repressão - No DOI-Codi, os cinco alunos passaram por maus bocados. Osvair Trevisan, preso em 22 de outubro, descreve um ambiente repleto de presos e o rádio ligado no último volume para encobrir o som das pancadas e os gritos nas salas de interrogatório. Sem as suas próprias roupas, com os olhos vendados, sem comer e sem dormir por causa do chão frio e por ouvir múltiplas sessões de tortura, Trevisan esperou sua vez. Clovis Goldemberg, filho do físico José Goldemberg, seqüestrado na porta de casa em 19 de outubro, foi o primeiro a ser preso e o último a ser liberado, tendo sofrido mais que os outros. Assim mesmo, analisa friamente o contexto político de 75, vendo-se (e aos companheiros) como mera peça no jogo entre os militares que queriam prolongar a ditadura e os que acatavam a proposta da distensão. Comunistas dentro do próprio ITA seriam ótimo pretexto para manutenção da linha dura. Marcelo Ganzarolli diz que teve a sorte de não ser torturado.
A penúria durou até a manhã do dia 25. "De repente, por volta do meio dia daquele sábado, fomos transferidos para o Ninho das Águias, na Base Aérea de Cumbica. No caminho, ainda simularam a prepração do nosso fuzilamento. Soubemos depois que a retirada apressada dos presos foi motivada pela morte, ali no DOI-Codi, do jornalista Wladimir Herzog", afirma Trevisan. Iniciado o IPM, recomendou-se apenas o desligamento dos rapazes do ITA, o que foi efetivado em 24 de dezembro. Mas o Comando da Aeronáutica, insatisfeito, pediu o indiciamento dos presos em três artigos da Lei de Segurança Nacional. "Caravanas de alunos iam nos visitar no Ninho das Águias. Nunca me esqueço da imagem do Brito [Carlos Henrique de Brito Cruz, atual reitor da Unicamp], trazendo um panetone na mão, na véspera de Natal", brinca.
Portas fechadas - Trevisan, Salazar, Gallo e Ganzarolli foram soltos em janeiro para aguardar a decisão judicial em liberdade; Goldemberg permaneceu em prisão preventiva. Consumada a expulsão do ITA, bateram à porta de várias instituições a fim de prosseguir em seus estudos. Encontraram apenas a porta da Unicamp aberta. "Era uma universidade nova, com vários professores que antes estavam afastados do Brasil e não concordavam com o que se passava na política. Num momento em que a administração das instituições ainda era sujeita a todo tipo de pressão e constrangimento, a Unicamp nos permitiu exercer o direito de cidadão. Era uma ilha de tolerância.
Uma ressalva importante feita pelos estudantes é que as agruras sofridas não implicaram em qualquer favorecimento por parte da Universidade. "Eles foram admitidos da mesma forma que todo aluno proveniente de outra instituição, por meio de avaliação do histórico escolar, estudo comparativo de disciplinas e de provas específicas", testemunha o professor José Ricardo Figueiredo, "iteano" que conviveu com os colegas expulsos e hoje também leciona na Unicamp. Clovis Goldemberg, que precisou de autorização da Auditoria Militar para prestar os exames, veio sob escolta de Cumbica para Campinas.
Fugitivos da lei - Absolvidos por unanimidade em primeira instância, em maio de 1976, retomaram os estudos ainda no primeiro semestre, nos cursos de Física e Engenharia Mecânica. Mas por pouco tempo. Foi o físico José Goldemberg quem trouxe a má notícia, em setembro: tinham sido condenados pelo Superior Tribunal Militar. A opção por se esconder não foi difícil, diante do espírito solidário que os envolvia. Permaneceram como foragidos até março de 77, quando foram alertados pelo advogado de que o recurso impetrado junto ao Supremo Tribunal Federal só poderia ser julgado se estivem na prisão. "Fomos nos entregar em São Paulo, de ônibus", ironiza Ganzarolli.
Recolhidos no Presídio do Hipódromo até 9 de setembro de 77, em clima bem mais ameno que o da primeira prisão, saíram em liberdade condicional das celas para as salas de aula. Em 22 de fevereiro de 1979, já formados, foram absolvidos novamente por unanimidade. Marcelo Ganzarolli, Osvair Trevisan, Sérgio Salazar e Waldir Gallo fizeram carreira na Unicamp, como professores da FEM. Clovis Goldemberg é professor da Escola Politécnica, mas observa, saudosamente: "Aí me diplomei em Física e Engenharia e, tempos depois, voltei para o mestrado e doutorado em Engenharia Elétrica. Meus quatro diplomas são da Unicamp".
A disciplina consciente
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Nos documentos que embasam a necessidade de uma reparação aos 21 alunos e dois professores expulsos do ITA pelo regime militar, o Grupo dos Sábados observa que aqueles episódios talvez "não sejam mais do que narrativas pouco nítidas, provavelmente fantasiadas pela rica tradição oral de nossa escola". De fato, nem o livro "ITA 50 anos, 1950-2000" conta a história desse período turbulento. "E, ao discutir um dos maiores valores históricos do ITA, a Disciplina Consciente, o livro cita o aluno Luís Oscar de Mello Becher como um dos autores de uma tese conceituando o assunto, mas não menciona que Becker jamais se formou no ITA, uma vez que foi desligado da escola por motivos de natureza puramente política", diz um dos documentos.
Pela "disciplina consciente", as regras de convivência dentro do ITA e as punições de suas transgressões eram administradas pelos próprios alunos. "Que maior satisfação pode ter o professor que concentra sua atuação na melhor forma de transmitir conhecimentos, sem se preocupar com a fiscalização de seus alunos? (...) De tê-los como amigos e aliados em todas as situações?", escreve o professor Marco Antonio Gugliemo Cecchini, reitor do ITA quando os militares deram o golpe em março de 1964 e que se demitiu no ano seguinte. Cecchini é aposentado pelo instituto, cuja história vivenciou por cinco décadas. As punições durante a ditadura tiveram um efeito devastador sobre este ambiente, criando um clima de animosidade entre civis e militares.
"Durante um bom pedaço de sua existência, o ITA sempre enfrentou dificuldades por ser uma instituição com cabeça militar e com corpo de atuação civil. Este relacionamento civil-militar nunca foi fácil. Quem acredita viver num país democrático, espera que a democracia apare as asperezas deste contato", afirma o professor Hermano Tavares, que era vice-presidente do Centro Acadêmico Santos Dumont no ano do golpe militar. Segundo Tavares, "tirar esqueletos do armário" é o objetivo do Grupo dos Sábados. "Todos sabem que foram cometidas arbitrariedades grossas e que elas não foram revisadas. Penso que a história do ITA, como foi dito pelo professor Cecchini, divide-se em duas partes: antes e depois daqueles incidentes".
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