Morre o homem, nasce o mito
CLAYTON LEVY
Méson pi é uma partícula subatômica que se forma a partir de reações nucleares quando duas partículas de grande energia colidem. Sua identificação foi fundamental para entender a natureza das partículas elementares. Num país onde a ciência nunca foi tratada como prioridade estratégica, uma descoberta como essa poderia ter passado despercebida. Até por isso, torna-se impossível ignorar um feito desses quando um brasileiro está diretamente envolvido na sua conquista. Principalmente quando essa conquista, além de estabelecer os pilares da física moderna, ajuda a colocar um país do Terceiro Mundo no mapa da pesquisa científica mundial. Esse brasileiro morreu na última terça-feira (8), aos 80 anos, em Campinas, vítima de uma parada cardíaca. Seu nome é César Lattes, que passaria para a história como o maior físico do país. Ele era professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp desde 1969 e estava aposentado desde 1986.
Antes da descoberta, ocorrida na década de 40, a estrutura do átomo era conhecida apenas por meio de suas três partículas elementares: prótons, nêutrons e elétrons. O brasileiro publicou um artigo histórico sobre o méson pi no periódico científico Nature, um dos mais prestigiosos do mundo. Logo em seguida, no ano de 1950, seu orientador na descoberta, Cecil Frank Powell, recebeu o Prêmio Nobel de Física. Mesmo excluído da honraria, Lattes foi reconhecido por muitos, inclusive pelo próprio Powell, como um dos principais responsáveis pela conquista. Por sua contribuição ao conhecimento científico, Lattes foi incluído como verbete na Enciclopédia Britânica. “Uma bobagem”, diria ele mais tarde.
No Brasil, além de ser citado em várias obras científicas, Lattes deu nome à primeira plataforma de apresentação de cientistas na América Latina, produzida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “A nova versão dessa plataforma para um ambiente mais tecnológico e de interação com a iniciativa privada, continuará levando o nome de César Lattes”, anunciou o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, que esteve em Campinas na última quarta-feira para acompanhar o sepultamento do físico, no cemitério Flamboyant. Segundo ele, o lançamento ocorrerá dentro de 60 dias na sede do CNPq, em Brasília. “Será uma forma de o Brasil prestar uma justa homenagem a esse cientista extraordinário”.
Parceiro Lattes, cujo nome verdadeiro é Cesare Mansueto Giulio Lattes, nasceu em Curitiba em 11 de julho de 1924. Fez seus primeiros estudos em Curitiba e em São Paulo. Graduou-se em Física e Matemática pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em 1943. Talento precoce e desde cedo mundialmente reconhecido, foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, quando contava apenas 23 anos. Seu principal parceiro nesse empreendimento foi o físico José Leite Lopes, que chorou ao falar ao Jornal da Unicamp sobre a morte do amigo. “Foi uma grande perda para o Brasil. Estou muito triste. Queria ir ao enterro mas não posso porque estou com artrose”.
Leite Lopes fala com emoção dos tempos de estudante ao lado de Lattes: “Conheci o Lattes em 1943, quando éramos alunos de Gleb Wataghin na Universidade de São Paulo”, conta. “Discutíamos muito sobre a física no Brasil”. Refletindo o consenso entre os cientistas brasileiros, Lopes Leite diz que Lattes foi injustiçado ao ser excluído do Nobel de Física em 1950. “Os físicos do terceiro mundo são sempre desprezados; ele poderia ter ganho o prêmio, mas como ainda era muito moço, resolveram entregá-lo ao chefe do laboratório, que era o Powell”. Isso porém, segundo Leite Lopes, não tirou o brilho de Lattes. “Ele conhecia muito a física, conhecia mais que os seus colegas de laboratório”.
A participação de Lattes na descoberta do méson pi está dividida em duas fases. Entre 1947 e 1948 o brasileiro retomou as pesquisas do físico norte-americano Carl David Anderson, responsável em 1932 pela descoberta dos raios cósmicos e dos elétrons positivos, e partiu para os Andes bolivianos, onde instalou um laboratório a mais de 5 mil metros de altura para observar os resultados da ação daqueles raios sobre chapas fotográficas. Trabalhando com os físicos Giuseppe Occhialini e Cecil Frank Powell, o brasileiro verificou experimentalmente a existência dos mésons pi, os quais se desintegravam em um tipo de méson ainda desconhecido, o méson mu. Um ano depois, em colaboração com Eugene Gardner, Lattes, então com 24 anos de idade, conseguiu produzir artificialmente o méson pi, procedendo para tanto à aceleração das partículas alfa no ciclotron da Universidade de Berkeley, na Califórnia.
Num artigo sobre os 50 anos de descoberta do méson pi, o próprio Lattes relata como chegou à nova partícula: “Propus a Powell e Occhialini que, se eles conseguissem fundos para que eu voasse até a América do Sul, eu poderia me encarregar de expor chapas tratadas com bórax no monte Chacaltaya durante um mês. Deixei Bristol com várias chapas com bórax e mais uma pilha de notas de libras suficientes para me levar ao Rio de Janeiro e para voltar. Ao contrário da recomendação do professor Tyndall, diretor do H. H. Wills Physical Laboratory, tomei um avião brasileiro, o que foi uma sábia decisão, pois o avião britânico caiu em Dakar e matou todos os seus passageiros”.
Desdobramento Segundo documento divulgado pela CBPF, a descoberta do méson pi teve desdobramentos significativos para a ciência e o desenvolvimento tecnológico. De um lado, revelava a partícula, presumivelmente, responsável pelo comportamento das forças nucleares. “O alcance desse feito ultrapassou as fronteiras da ciência fundamental dadas as expectativas que então revestiam qualquer ampliação de conhecimentos nesses domínios”, diz o texto. “O desenvolvimento da energia nuclear, no pós-guerra, demandava formulações que aliviassem o empirismo oneroso e, muitas vezes, arriscado com que vinha sendo feito”. Ainda de acordo com o documento, “a produção artificial daquela partícula, em 1948, ainda por Lattes mas agora em associação com Gardner, marcou o início de formidável corrida para a construção de aceleradores mais e mais potentes que caracterizou a física nuclear do pós-guerra”.
De outro lado, amplas aberturas no terreno da institucionalização da ciência, no Brasil e na América do Sul, acompanharam essa descoberta, ligadas diretamente ao regresso e permanência definitiva de Lattes no continente sul-americano. Ele liderou o grupo científico que em 1949 criou o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), Instituto que polarizou e agasalhou iniciativas como a da formação do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, a da Escola Latino-Americana de Física, o Centro Latino-Americano de Física, enquanto se destacava pela atividade de pesquisas em nível internacional, pelas medidas de modernização dos currículos de ensino da física e as de formação do pessoal que constitui hoje parcela ponderável da liderança científica atuante na física brasileira.
No mesmo ano, junto com colegas bolivianos, cria em La Paz, as condições para o que viria a ser o Laboratório de Físicas Cósmicas, a partir de uma velha estação de observações meteorológicas, onde obtivera os registros dos eventos que levaram à descoberta do píon. “Cedo esse Laboratório se transformava em centro científico do maior interesse internacional, abrigando em suas dependências equipamentos e cientistas de todas as partes do mundo que ali escreveram importantes capítulos do conhecimento sobre a radiação cósmica”, enfatiza o documento da CBPF. Lattes permaneceria ainda no exterior no período 1955-57, realizando pesquisas para a evolução da Física moderna. Regressou naquele ano ao Brasil e foi nomeado professor da Universidade de São Paulo.
Um outro grande feito seu data de 1969, quando, à frente de uma equipe de físicos brasileiros e japoneses, conseguiu determinar a massa das chamadas bolas de fogo, fenômeno induzido pelo intenso choque de partículas dotadas de grande energia e que se supunha constituírem nuvens de mésons. A operação apenas se tornou exeqüível depois da revelação de chapas especiais de chumbo, designadas câmaras, as quais ficaram expostas por raios cósmicos durante anos no pico boliviano de Chacaltaya, onde Lattes iniciara 23 anos antes as suas pesquisas sobre o méson.
Em 15 de outubro último, já muito doente, Lattes recebeu do reitor Carlos Henrique de Brito Cruz, em sua casa, os títulos de professor emérito e de doutor honoris causa, que lhe haviam sido conferidos pela Unicamp em 1986. Os títulos só foram entregues em 2004 porque Lattes, avesso a homenagens públicas, passou incólume por quatro reitores sem jamais conciliar uma data para a cerimônia. Coube então a Brito Cruz, também físico, fazer a entrega na própria residência de Lattes, num clima informal em que não houve discursos, mas muita conversa amena pontuada por fornadas de pão-de-queijo.