Um ciclo se fecha.
Fica a lição
CAROLA DOBRIGKEIT CHINELLATO
Embora eu já tivesse ouvido seu nome famoso bem antes de ingressar no curso de Física, em 1970, eu apenas conheci o professor Lattes em março de 1972. Consigo me lembrar bem do dia em que ele veio para dar a primeira aula da disciplina de Estrutura da Matéria para minha turma e nos apresentar, praticamente, a física do século 20! Como ficamos em silêncio e prestamos a máxima atenção! Parecíamos compreender que aquela oportunidade era única para aprender sobre os temas importantes que ele procurava nos ensinar. Suas aulas eram sempre às terças e quintas-feiras, no final da tarde (ele definitivamente não conseguiria dar aulas às 8 horas da manhã!). Ele vinha muitas vezes acompanhado do "Gaúcho", que era o cachorro que mais ouvia de física que conhecíamos. Até ele ficava prestando a maior atenção!
Lattes procurava nos mostrar como o conhecimento evoluiu nas primeiras décadas, sempre discutindo com rigor cada conceito que apresentava. Ele devia ter a noção exata de quanto conseguíamos acompanhar da sua exposição. Numa terça-feira, logo no início do semestre, ele nos deixou bastante confusos com uma dedução da distribuição de Maxwell-Boltzmann. Embora todos nos esforçássemos, anotando cada passagem que ele punha na lousa com sua letra muitas vezes ininteligível, não captamos praticamente nada. Ele não se fez de rogado. Voltou na aula seguinte e começou sua explanação dizendo: "Bem, como vocês não entenderam nada do que procurei mostrar, vamos começar tudo novamente do começo". E repetiu a aula inteira! Na segunda tentativa de nos ensinar ele teve mais êxito.
Seu cuidado em expor as idéias com clareza e fazer jus a quem de fato havia feito as descobertas das quais ele nos falava, mostrava que era um professor preocupado com a nossa formação.
Alguns anos mais tarde, vim a conhecê-lo mais de perto e a trabalhar com ele no Departamento de Raios Cósmicos, lá fazendo meu doutoramento. A Lattes devo o convite de começar a trabalhar na Unicamp, aos 21 anos, e, devido à sua influência, também passei a lecionar durante muitos anos aquela mesma disciplina de Estrutura da Matéria, passando adiante o que ele havia me ensinado e aquilo que, com o tempo, eu mesma tinha aprendido.
Uma experiência e tanto foram os semestres em que o professor Lattes vinha assistir às aulas que eu e a professora Iris Torriani dávamos. Posso garantir que íamos, as duas, com as aulas mais do que bem-preparadas! Não importava, pois sempre ele apresentava uma discussão adicional, ou acrescentava alguma informação que não havíamos mencionado. Os alunos achavam a maior graça, pois, garantidamente, também percebiam o que estava rolando. Bem, não sei quanto ao aprendizado dos alunos, pois ele interrompia a minha exposição freqüentemente. Mas que eles se divertiam muito, tenho certeza! Certo dia, eu já havia enchido a lousa com uma dedução sobre o número de modos de vibração no interior de uma cavidade para explicar a radiação de corpo negro, quando Lattes comentou : "Carola, acho que esta dedução deste modo não está bem, faça desse outro jeito..". Eu apaguei humildemente a lousa e comecei a refazer a dedução do jeito que ele havia sugerido. Estava já com três quartos da lousa cheia com o novo raciocínio, quando Lattes disse : "Pensando bem, Carola, do outro jeito que você estava fazendo estava muito melhor... Você estava certa. Apague tudo e faça como antes..". Foi só risada por parte dos alunos! Em outra oportunidade, também, ele conseguiu deixar a professora Iris bem atrapalhada durante uma aula, a ponto de ela perder o fio da meada na exposição, o que de outra forma não acontecia com facilidade. Certamente, nós duas nunca mais tivemos que enfrentar um desafio tão grande numa sala de aula como quando Lattes estava lá, sentado no meio dos nossos alunos!
O que ainda me chama a atenção é a forma como todos nós, alunos e orientados, o respeitávamos. Nos dias em que víamos a sua perua Chevrolet verde parada nos fundos do prédio, o nosso coração dava um salto. Corríamos para atender os pedidos que ele nos fazia no laboratório e eu, pelo menos, "espremia" meu cérebro para acompanhar os seus cálculos ou pensamentos. Era muito difícil acompanhar o professor Lattes, nos dias em que ele decidia discutir algum conceito fundamental de física! Muitas vezes, eu perdia o rumo e nem lembrava o caminho de casa, de tanta concentração que fazia para acompanhá-lo. Quando ele estava em seus bons dias, o seu ritmo de trabalho era alucinante e tínhamos dificuldade em segui-lo.
Igualmente preocupado ele era com o jeito com que escrevíamos. Quando mostrávamos os rascunhos dos escritos para nossa tese, ele comentava, por exemplo: "Isso aqui está muito mal-escrito! Vá para casa e leia um livro de Graciliano Ramos. Quando você aprender a usar corretamente os adjetivos, aí você escreve de novo esse texto e me mostra". É dele também o comentário: "Muito, pouco, grande e pequeno não são termos usados por físicos!" Ele nos ensinou a ler cada palavra do que escrevíamos e ver se o termo escolhido era o mais apropriado e correto. Hoje, quando me vejo fazendo o mesmo com os meus alunos, digo para eles que foi Lattes quem me mostrou a importância de escrever de modo claro e correto.
Também seu agudo senso de humor e prontas respostas espirituosas a qualquer comentário eram suas características. Ele sempre tinha uma resposta para todas as observações que fazíamos. Em uma certa oportunidade, alguém o alertou para o fato de que o livro que ele estava lendo estava de cabeça para baixo. Ele prontamente rebateu: "É que leio melhor assim quando estou sem os meus óculos...". E continuou lendo com o livro invertido mesmo!
Anos mais tarde, quando Lattes já estava aposentado, eu ia visitá-lo em sua casa, assim como o faziam outros colegas do laboratório. Nestas oportunidades, ficávamos horas falando de Física, das descobertas mais recentes, e dos últimos acontecimentos da vida universitária e do Instituto de Física, em particular. Ele acompanhava tudo com grande interesse. Falávamos também sobre os livros que o professor Lattes estava lendo na ocasião, ou sobre temas de história ou até mesmo religião. É impressionante como tudo o interessava! E como era grande a sua cultura geral!
Nessas horas, sempre acompanhados de um cafezinho que Dona Martha gentilmente oferecia, curtíamos o fato de tê-lo tido como nosso professor. Aprendi ainda a admirar Dona Martha, que sempre vi ao lado do professor durante todos os anos, proporcionando suporte e dando força. Eu a via como a própria encarnação daquela frase corrente de que atrás de cada grande homem há uma grande mulher. Certamente ela foi imprescindível para possibilitar a Lattes as suas realizações.
A genialidade de Lattes fazia dele uma pessoa de convivência nem sempre fácil, o que aumenta sobremaneira o mérito de Dona Marta. Ela era uma pessoa de forte caráter e personalidade, e Lattes sempre pôde contar com o seu apoio durante os mais de cinqüenta anos de vida em família. Não tenho dúvida de que Lattes morreu um pouco no dia em que a perdeu.
Agora, o professor Lattes se foi. Com certeza aqueles que, como eu, tiveram a oportunidade e o privilégio de tê-lo conhecido, o guardarão na memória. Seus ensinamentos serão passados adiante para a próxima geração por meio de nós, seus ex-alunos. Assim, o ciclo se fechará e a missão do professor Lattes poderá ser considerada cumprida se lembrarmos dos seus ensinamentos e soubermos dar continuidade às lições do seu exemplo.
-------------
Carola Dobrigkeit Chinellato é professora do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, onde exerceu o cargo de diretora associada entre 1998 e 2002. Fez seu doutorado sob a orientação do professor Cesar Lattes e dedica-se à pesquisa sobre radiação cósmica desde 1973.