A difícil convivência
com o ônus da fama
Alfredo Marques
O Brasil despertou mais pobre dia 8 de março de 2005. Todos perdemos, familiares, amigos, estudantes, professores, a ciência brasileira. Faleceu Cesar Lattes.
Seus trabalhos pioneiros na edificação da ciência no Brasil e no mundo têm sido alvo de numerosas atenções; aqui nos limitaremos a focalizar traços complementares de sua figura humana, nem sempre ao alcance da maioria dos brasileiros.
Cesar Lattes foi um homem simples, despojado de vaidades, linear, muito autêntico em suas ações e devoções, que arrastava consigo o ônus de uma fama imensa. A convivência do homem simples com a visão quase mitológica que muitos faziam dele nem sempre foi fácil. Lattes se sentia inicialmente desconcertado, confuso e finalmente reagia energicamente diante de qualquer interlocutor que tentasse trazer ao diálogo, sob forma de destaque, seus louros, seus feitos, seus méritos.
No curso de sua vida desenvolveu formas de convivência que viessem facilitar a conciliação entre sua natureza simples e o tratamento que muitos dispensavam, movidos por sua enorme reputação científica. Quase sempre tomava a iniciativa do diálogo e usava uma retórica com elementos provocativos para dirigir-se ao interlocutor, com o propósito de que aceitasse o diálogo nesses termos e com isso se criasse um clima de maior intimidade e espontaneidade. O resultado, entretanto, nem sempre era o esperado, sobretudo com os contatos e pessoas mais formais, o que lhe rendeu alguns desafetos. Fora disso adorava conversar e, com a sólida cultura que tinha, na física e fora dela, fez com que muita gente esquecesse o final do expediente para ouvir histórias sempre muito ricas de ensinamento e informação.
Lattes era um excepcional orador, para isso usando seus méritos de contador de histórias. Dirigia-se a um auditório como se estivesse falando a cada um, com vocabulário coloquial, intimista, inserindo no discurso, à margem da locução principal, referências cheias de humor e saber retiradas do Velho Testamento, do folclore brasileiro, judeu ou árabe, mantendo a platéia atenta e gratificada ao longo de toda a palestra. Quando Lattes falava, fosse numa festa de formatura, num seminário ou agradecendo alguma homenagem os auditórios ficavam repletos não por conta da celebridade que falaria mas pelo seu talento oratório.
Lattes sempre fez sérias críticas à “modernização” enquanto fator de superação do subdesenvolvimento. Segundo ele, a modernização em si apenas substitui velhos vínculos de subdesenvolvimento por novos, perpetuando as carências. Em sua vida de professor e pesquisador sempre deu preferência às soluções caseiras dos problemas, recorrendo às elaboradas apenas quando aquelas se demonstrassem esgotadas. Achava que as medidas de modernização apenas poderiam preencher sua finalidade de combate ao subdesenvolvimento se inseridas num quadro de educação universal de qualidade. Com respeito a esse tema pensava que a educação de qualidade para poucos é tão censurável quanto à educação de má qualidade para muitos: a primeira beneficia e consolida a aristocracia, a segunda, a ignorância.
Lattes foi homem devotado à física vinte e quatro horas por dia. Parte desse mérito o deve à sua esposa, dona Martha Siqueira Neto Lattes, que o aliviou do ônus das atenções a tantos problemas do cotidiano que não o teriam permitido dar-se a tal dedicação. D. Martha foi mãe de quatro filhas e entre suas ocupações daí decorrentes foi companheira excepcional inspirando confiança, segurança e esperança mesmo nas situações mais adversas. Pessoa inteligente, afetuosa e sobretudo amiga, D. Martha teve papel muito importante na vida de Lattes. Durante o velório que precedeu seu sepultamento há cerca de três anos, aproximei-me de Lattes para lhe dar uma palavra de consolo e dele ouvi solene declaração: “minha vida acabou”. De fato, após o falecimento de Martha, a saúde de Lattes, antes aparentemente inexpugnável, começou a sofrer regulares abalos, primeiro revelando problemas cardíacos, depois pulmonares, depois outros que se acumularam e o vieram levar ao óbito dia 8 passado.
Guardo de ambos afetuosa lembrança e dolorosa saudade de mais de cinqüenta anos de convivência. Como brasileiro, sinto-me órfão.
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Pesquisador aposentado do MCT, Alfredo Marques foi professor visitante do Instituto de Física Gleb Wathagin (IFGW) da Unicamp no período 1977 1983.