Por que empresários necessitariam dos conhecimentos de um antropólogo? Ou, na visão dos colegas deste antropólogo, por que vestir paletó e gravata e se meter dentro de uma empresa? Já está fazendo 20 anos desde que o professor Guilhermo Raul Ruben, do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, decidiu ampliar o escopo tradicional da disciplina e estudar empresas e outras formas organizacionais. Ele estava de acordo com um questionamento lançado pelo antropólogo Eric Wolf: “Pode-se perguntar por que a antropologia parece ter desistido do estudo da organização, de tal forma que o tópico se encontra hoje mais discutido nos manuais de administração do que em nossas publicações?”.
Tal observação não parece ter sido muito ouvida pelo mainstream da comunidade antropológica brasileira. “Os antropólogos raramente tinham se voltado para os núcleos de poder, a fim de entendê-los. Nós quisemos estudar a dinâmica das empresas capitalistas neste contexto de globalização, quando se interconectam diversas lógicas culturais”, explica Guilhermo Ruben. “Além das diferenças culturais que as pessoas trazem para dentro da empresa, há também diferentes modelos de gestão”, acrescenta o economista e antropólogo Luciano D’Ascenzi, que defende sua dissertação de mestrado ainda este mês.
A partir do trabalho do professor da Unicamp, o grupo nasceu pouco antes de ter aprovado um projeto temático financiado pela Fapesp (“Culturas empresariais brasileiras: Estudo comparativo de empresas públicas, privadas e multinacionais”, 1992-98), quando ganhou caráter interdisciplinar, reunindo perto de vinte pesquisadores espalhados pelo país. Já produziu uma boa quantidade de trabalhos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, que envolveram os meandros de organizações como a empreiteira Odebrecht, o Banco do Brasil, Banespa-Santander, Banco América do Sul e a indústria Unilever. Mais recentemente, abriu o leque para para a administração pública e o chamado setor social, que envolve cooperativas, ONGs e fundações empresariais, além de moda e consumo.
Nesses 20 anos, o próprio Grupo de Culturas Empresarias precisou superar preconceitos. De um lado, o imaginário de empresários tementes de que antropólogos xeretando suas organizações tentassem promover uma “revolução comunista”. De outro lado, a suspeita dos acadêmicos de que esses antropólogos vendiam-se ao capitalismo. “Nunca atuamos como consultores remunerados. Não queríamos vender um produto, mesmo sabendo que era importante para uma empresa desvendar suas lógicas culturais. O interesse sempre foi acadêmico. Se há alguma coisa que queríamos oferecer para a sociedade era e é o conhecimento antropológico sobre essas realidades”, diz o professor do IFCH.
Contudo, hoje o grupo vive um momento de inflexão. Por um lado, percebeu-se que muitos profissionais de diferentes formações vendem às empresas serviços de consultoria, muitas vezes utilizando de forma extremamente superficial conceitos e metodologias próprios da antropologia, como a chamada “etnografia compartilhada”. Por outro lado, constatou-se também que o conhecimento crítico produzido pelas pesquisas etnográficas pode ajudar as empresas a repensar as suas políticas, contribuindo assim para uma intervenção mais qualificada na realidade organizacional.
“Muitas empresas atravessam atualmente complicados processos de fusão, que envolvem questões culturais. Outras estão estruturando hoje, com o apoio de ONGs e de movimentos sociais, políticas de valorização da diversidade da força de trabalho. Achamos que a antropologia tem uma contribuição a prestar nesses assuntos e nesse sentido estamos buscando uma maior aproximação com as organizações empresariais”, destaca Pedro Jaime, pesquisador do grupo. Daí, a decisão de negociar este serviço junto a empresas, com a devida intermediação da Universidade, que assim teria outra fonte de arrecadação. “Estamos convictos de que nossos trabalhos criam conhecimentos de grande qualidade”, ressalta Guilhermo Ruben.
Casa grande Pelo menos 90% das associações entre empresas de países diferentes fracassam. Por que isso ocorre? “Nossa resposta, embora existam várias outras, é que esse fracasso passa por questões sociais, culturais e políticas que precisam ser melhor desvendadas”, observa Ruben. O pesquisador recorda o caso que o levou à antropologia empresarial, quando em 1986 solicitaram sua ajuda na conversação entre brasileiros e argentinos (seus conterrâneos, embora o professor seja naturalizado brasileiro) em uma churrascaria perto da via Anhanguera. “Eles criaram uma metalúrgica que fabrica cozinhas industriais. São pessoas lúcidas, que detêm tecnologia e dinheiro, mas não se entendiam”, explica.
Convidado a observar os passos da empresa binacional por quatro anos, Guilhermo Ruben lembra que os brasileiros queriam instalar a fábrica de cozinhas em Alphaville e o escritório e show-room na avenida Paulista, vitrine dos “bem-sucedidos”. Já os argentinos preferiam juntar fábrica e escritório em Alphaville, por causa da praticidade e dos custos menores. “Esta desavença durou três anos, tempo em que a empresa deixou de concentrar esforços nos negócios para progredir”, conta o professor. Para um antropólogo, enxergar o motivo da discórdia não foi difícil.
“No Brasil o processo de acumulação da riqueza se deu com base no trabalho escravo. No clássico de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, vemos a nítida separação entre o senhor de engenho e o trabalhador braçal. Aqueles senhores paulistas da metalúrgica não queriam se sentar junto com os trabalhadores”, observa Ruben. Já a Argentina, segundo ele, se fez rica com o gado, seguindo a lógica do ‘dono engorda o boi’ tendo a ajuda de dois ou três peões. “Vemos então que existem lógicas culturais nas dinâmicas empresariais. A cultura não aparece apenas nas vestimentas, nos rituais indígenas ou no candomblé. A cultura aparece também nos negócios”, acrescenta. Convencidos pelo antropólogo de que “negócio também é cultura”, os sócios brasileiros e argentinos acabaram por se entender, juntando fábrica e escritório em Alphaville e sobrevivendo bem no mercado.
O grupo também acompanhou a empreiteira Odebrecht, fundada por imigrantes alemães em Santa Catarina e atuante em mais de 20 países. Este trabalho resultou na tese de doutorado em ciências sociais de Alicia Gonçalves Ferreira. O presidente da empreiteira, Norberto Odebrecht, é autor de um livro traduzido em várias línguas e intitulado Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO), onde descreve como deve ser a metodologia de produção, da contratação do mestre de obras à construção da ponte. “Nós avaliamos a aplicação desta metodologia tanto no Brasil como em outros países, e concluímos que no Peru, por exemplo, Mas no Peru, por exemplo, a TEO não funcionava”, informa Ruben.
Metodologia - Os membros do grupo sabem que as organizações passam por grandes mudanças, em todo o mundo e em todos os setores. “O mundo globalizado trouxe questões como a fusão e a reestruturação, que são muito traumáticas. E muitas empresas ainda não sabem como lidar com esse cenário de turbulências. Muitas vezes concentram suas ações no plano ‘prático’ e esquecem das dimensões culturais e simbólicas, fatores centrais nesses processos. São essas dimensões que procuramos desvendar dentro de uma organização”, afirma Guilhermo Ruben. Ele acrescenta que, por um período prolongado, o grupo pesquisa as relações entre empregados, deles com as chefias, as condições de trabalho e as relações carnais da empresa com a sociedade e os poderes políticos. “As empresas são nossa tribo”, compara.