| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 313 - 20 de fevereiro a 5 de março de 2006
Leia nesta edição
Capa
Desafio para a Unicamp
Voltar a Eirunepé
Impressões do Repórter
Programação 40 anos
A Unicamp dos calouros
Serviços, espaços e convívios
O Mandarim 4
O Mandarim 5
Periodontite: riscos na gravidez
Editora: Blaue Blume
Vida Universitária
Teses
Painel
Negócio também é cultura
Legado de Lattes
 

3

Novas impressões
de u
m velho repórter

ÁLVARO KASSAB

Equipe da Unicamp em frente ao avião da FAB no aeroporto da cidade de Tefé, última escala antes da chegada a Eirunepé ( Foto: Dário Crispim)Tudo teve início com um e-mail endereçado à redação da Assessoria de Imprensa da Unicamp. Nele, Roberto Costa, editor do Portal da Unicamp, anunciava que havia lugar para um jornalista na equipe da Universidade no Projeto Rondon, composta de seis alunos e dois docentes. Destino: município de Eirunepé, sudoeste do Amazonas. Não titubeei, candidatando-me de chofre, sob a alegação (quase súplica) “de que conhecer a Amazônia seria a concretização de um sonho deste velho repórter”. Escolhido, tive outra surpresa: seria titular de um blog (www.reitoria.unicamp.br/ascom/blog). Orientação do amigo Eustáquio Gomes, nosso coordenador: blog é liberdade.

Eu estava, portanto, diante de dois desafios: ser uma espécie de emissário virtual das notícias da expedição, naquela que talvez fosse a primeira incursão de uma universidade pública nesse terreno; o outro, circunscrito ao campo pessoal, consistia no meu contato com uma realidade desconhecida. No caso do blog, cabe ao leitor julgar seus acertos e desacertos. Meu julgamento, subjetivo, confere a este veículo um poder transformador fantástico. Na esfera da alma, a coisa toda muda, ganha contornos concretos. É simples, cristalino – o chavão tem um quê de subliteratura: voltei outro.

Os motivos são muitos, alguns deles expostos no blog. Mas destaco a relação brevíssima (14 dias incompletos) com os habitantes de Eirunepé. Eis o leitmotiv da minha transformação. Não que tivesse desprezado o caráter científico da empreitada. Preparei-me para viajar. Li e reli, por exemplo, o minucioso relatório preparado pelos alunos da Unicamp que estiveram em 2005 no município, também pelo Projeto Rondon. Prospectei, em diferentes fontes, elementos que me auxiliassem na estadia. Vasculhei o Google, consultei diferentes atlas, busquei detalhes sobre a região.

Camila Dunaitis Donini, aluna da FCM, visita casa de farinha  ( Foto: Dário Crispim)Bastou chegar na cidade, entretanto, para a alma do repórter atropelar a razão. Dei-me conta de que não adiantava brigar contra uma máxima familiar, intangível: meu negócio é – e sempre será – gente. Um componente referendaria minha opção por retratar o cotidiano dos habitantes de Eirunepé: a natureza exuberante. Conheci várias regiões do país, mas nunca havia visto tamanha simbiose. O eirunupeense é parte integrante da floresta (praticamente intacta) e dos cinco rios que cortam o município. Os sorrisos são minerais.

O isolamento é o combustível dessa relação. Dependendo da direção a ser tomada, são necessários 6 dias para sair de barco do município, cuja área é de 15.800 km2, algo próximo de ¼ do território de Portugal. Uma viagem de barco a Manaus dura, em média, 15 dias. A cidade é abastecida pelo rio Juruá, um corredor de 3.350 km que nasce no Peru, atravessa o Acre e desemboca no Solimões. O outro meio de se chegar a Eirunepé é de avião. Desconfio (perdão pela falta de rigor) que não mais do que cem dos 30 mil habitantes do lugar teriam condições de sobrevoar a planície.

Tive a forte impressão de que a cidade andava em círculos concêntricos, regida por uma anarquia saudável. Logo constataria que a tragédia é tecida em silêncio por essa coisa largada, sem eira nem beira (a não ser a do Juruá, não menos caótica). A ausência do que se convenciona chamar na academia de arcabouço institucional produz a mais letal das distorções: a miséria e seus derivados. Os indícios estão por toda a parte. Um deles, talvez o menos nocivo, choca os desafortunados habituados a transitar em meio a radares e fábricas de multas: contam-se nos dedos, entre milhares de motos que circulam pelas ruas da cidade, aquelas que têm placa. Não vi um único capacete.

Os efeitos mais dramáticos da fragilidade do poder público fazem dos cidadãos suas vítimas preferenciais. E elas – as vítimas – têm nome e sobrenome. A cidade é asfaltada, mas não possui rede de esgoto. A falta de saneamento básico torna endêmicas doenças como hepatites virais, hanseníase, malária e tuberculose. Infecções respiratórias, dermatoses, diarréias e verminoses matam além do concebível. Eirunepé tem um hospital (referência regional) com 80 leitos, mas não há médicos suficientes e faltam medicamentos.

A rede de ensino é razoavelmente aparelhada, mas centenas de crianças estão fora da escola. Os ribeirinhos (e aqui estamos falando de 185 comunidades) migram cada vez mais para o centro urbano, mas não encontram o que fazer. Grassam o desemprego, a informalidade e a ocupação temporária. A natureza oferece de tudo, mas a fome é crescente.

Jamais fui de desprezar estatísticas. Minha escolha, entretanto, era clara. Queria conhecer de perto os personagens desse drama que coloca Eirunepé entre os 500 piores municípios do país em índice de desenvolvimento humano (IDH). Não me interessava apenas saber como – e quando – o declínio da borracha pegou a cidade de jeito. Seus órfãos e descendentes precisavam ser ouvidos.

Não bastava ler que a macaxeira é um dos pilares da economia – era imperativo entrar numa casa de farinha. E, depois, comê-la, misturada ao naco de pirarara, de preferência recém-pescada e adquirida no mercado informal das barrancas. Não podia ir embora sem experimentar o gramixó, açúcar mascavo, boa parte dele comprado pela Coca-Cola. O feijão de praia deveria ser saboreado de acordo com a receita local. O açaí, à moda, e não aquele forjado no modismo de academias que guardam a polpa congelada.

Passei a tropeçar em assuntos – aquilo que nos jornais é conhecido como “pauta” – e a conviver com uma contradição até então inédita para mim. Quanto mais os dramas pululavam, mais íntimo ficava dos moradores. Encontrei um número sem fim de voluntários que ocupavam o vácuo deixado pelo poder público. Meu encantamento com tanta generosidade deixara de ser uma abstração. Preenchi cadernos de anotações. Fui tomado por uma dúvida: teria tempo – e espaço – para expor tudo? Não, certamente. Mas o estrago já estava consumado. Eu havia sido tomado por uma compulsão irreversível. Não tinha volta.

Eu na canoa me deslocando pelo Rio Juruá na comunidade de Foz de Tarauacá, a duas horas de barco de Eirunepé ( Foto: Dário Crispim)Na outra ponta, mais precisamente no motivo que me levou a Eirunepé, as surpresas não foram menores. O empenho de alunos e docentes era comovente. Acompanhei parte dessa rotina extenuante, pesada. Não sobrava tempo para pausas. No cronograma, de tudo um pouco: aplicação de questionários em visitas domiciliares, aulas, oficinas para gestores, cursos para agentes, encontros com autoridades municipais, prospecção de áreas para o novo aterro da cidade, discussão sobre o plano diretor, exposição de dados etc.

Na condição de editor improvisado do blog, testemunhei a emoção manifestada pelos integrantes do grupo. Os relatos impressionavam; a entrega da equipe foi total. Os alunos não conseguiam esconder a alegria e a perplexidade. Alexandre Pavia Neto (autor do projeto selecionado pelo Ministério da Defesa), Bruno Mariani de Souza Azevedo, Camila Sunaitis Donini, Cristiane Oliveira Barros, Milena Flogliarini Brolesi e Thiago Marinho Del Corso mimetizavam, de certa forma, as contradições de um universo peculiar, de um território a ser desbravado. Foi preciso viajar milhares de quilômetros para entender os atributos que diferenciam o estudante da Unicamp. Solidariedade, espírito crítico, capacidade de dialogar, discernimento e iniciativa eram perceptíveis nos gestos mínimos.

Com os dois professores da equipe, não foi diferente. Perdi a conta de quantas vezes vi o professor Francisco Ladeira, do Instituto de Geociências, caminhar solitário pelas ruas da cidade. Observador arguto, recolhia informações que certamente no futuro serão úteis. Atravessava taboão, pisava no charco, estudava a várzea. Num encontro casual de fim de tarde, pedi permissão para acompanhá-lo. Percorremos um longo trapiche e fomos parar em um dos extremos da cidade, numa localidade conhecida como “Baixada”, talvez a mais pobre do município. Ladeira estava demarcando os limites da tragédia.
Sérgio Resende Carvalho, sanitarista e professor da Faculdade de Ciências Médicas, invariavelmente estava a postos às 5h30 da manhã na varanda do Hotel Líder, onde nos hospedamos. O docente protagonizou uma cena reveladora, emblemática da nossa permanência em Eirunepé. Na subida do rio Juruá, no único dia de folga da equipe, o destino final foi a comunidade ribeirinha Terra Firme. Todos mergulharam nas águas escuras e límpidas do igarapé Tripa. De canoa, Sérgio preferiu visitar os moradores. Na volta, quando todos já estavam acomodados e o ronco do motor do batelão reverberava na mata fechada, o docente debruçou-se no parapeito da embarcação. Longe de todos, chorou. O médico sanitarista, que já havia trabalhado na Nicarágua, no Jequitinhonha e em Roraima, viu um garoto portador de lábio leporino em estágio avançado, sem perspectiva de cura. Senti, naquele momento, que todo o esforço não era – e nem pode ser – efêmero. Este velho repórter espera ter jogado alguma semente nas águas turvas do Juruá.

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2005 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP