Historiadora dá voz a mulheres
da chamada Vanguarda Paulista
RAQUEL DO CARMO SANTOS
São raras as abordagens acadêmicas sobre a obra de compositoras, musicistas e letristas brasileiras. Por outro lado, em poucos minutos, quantos nomes de homens compositores não nos vêm à mente? É esta lacuna nos estudos contemporâneos sobre a música brasileira que a historiadora Ana Carolina Arruda Toledo Murgel fez questão de descortinar. Em sua dissertação de mestrado apresentada junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), em dezembro passado, ela conta um pouco da história e da criação artística de Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola e Ná Ozzetti quatro personagens do movimento musical que a imprensa, nas décadas de 1970 e 80, denominou Vanguarda Paulista.
A discografia de Alzira Espíndola contém inúmeras composições em parceria com Itamar Assumpção. Ná Ozzetti consagrou-se no Festival da Música Brasileira da Rede Globo em 2000, como melhor intérprete. Alice Ruiz faz letras e se dedica à poesia. Entre as personagens da dissertação, a mais conhecida do grande público é Tetê Espíndola, que ganhou projeção nacional com a música “Escrito nas estrelas” que venceu o Festival dos Festivais em 1985, segundo Ana Carolina, principalmente por causa da performance de Tetê, pois a canção estava aquém de sua produção musical.
A historiadora entrevistou cada uma das cantoras na tentativa de quebrar a invisibilidade de suas obras. “Contar a trajetória dessas vidas é descortinar um pouco a história da minha própria geração, hoje com mais de 40 anos, que viveu intensamente esse momento da Vanguarda Paulista”, explica. Alice Ruiz, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola e Ná Ozzetti: produção musical feminina na Vanguarda Paulista é o título do trabalho orientado pela professora Luzia Margareth Rago.
Dentre tantas informações que coletou, Ana Carolina se surpreendeu com a falta de citações sobre Alice Ruiz: “Se pouco foi escrito sobre os trabalhos de Alzira, Tetê e Ná, são quase inexistentes os textos acadêmicos sobre a obra da poetisa. Ainda hoje seus trabalhos como compositora são desconhecidos, embora sua poesia tenha apreciadores e estudiosos”, informa. Uma busca na plataforma Lattes do CNPq, no entanto, encontrou registros de apenas oito pesquisadores citando Alice Ruiz, contra mais de uma centena de citações para cada um de outros poetas de sua geração, como Paulo Leminski, Ana Cristina César e Caio Fernando Abreu.
Para a escolha das personagens de seu trabalho, a historiadora levou em conta os critérios de serem compositoras e viverem em São Paulo. Mas também considerou a afinidade com seus trabalhos, pois Ana Carolina conheceu e acompanhou parte da trajetória de todas elas. “Essas mulheres me abriram as portas, as casas, os arquivos e o coração, o que me deixou profundamente agradecida e emocionada. Isso porque, mais do que uma dissertação de mestrado, este trabalho diz respeito à minha própria formação poética e musical, da qual todas elas são personagens ativas”, explica.
Feministas Outra questão abordada pela historiadora é o viés feminista de algumas obras dessas artistas, como é o caso de Alice Ruiz. A poetisa chegou a escrever artigos feministas em jornais de Curitiba, na década de 1970. “Em suas letras, as mulheres sobrevivem e dão a volta por cima, não são frágeis e não se paralisam pela dor”, explica. Nas composições de Alzira Espíndola, a pesquisadora percebe duas facetas distintas em relação aos parceiros musicais. “Quando compunha com Itamar Assumpção, as letras buscavam mais a sedução entre os sexos, apesar de desvelarem uma nova mulher que não é passiva neste jogo. Já em parceria com Alice Ruiz, os temas são outros: mulheres conversando sobre seus filhos, seus amantes e o que buscam na vida. Mas sem deixar de pregar o que procuram essas novas mulheres pós-feministas, com seus dialetos e preocupações distintas”, analisa.
Em cada capítulo de sua dissertação, Ana Carolina Murgel analisa a construção das obras artísticas. Traça um perfil de suas personagens fazendo paralelos com Focault e Virgínia Woolf. No caso de Tetê Espíndola, a historiadora observa “um devir pássaro construído desde a infância”. Para Ana Carolina, o disco que marcou a carreira da cantora, definitivamente, foi “Pássaros na garganta”, gravado em 1982 de forma independente. Dona de um agudo impressionante, Tetê descobriu seu potencial imitando araras na Chapada dos Guimarães e constrói imagens para suas canções a partir de vôos imaginários sobre a Chapada e o Pantanal - cria imagens fotográficas que reproduz em sua craviola.
Na avaliação de Ana Carolina, a composição e a interpretação são os pontos fortes de Ná Ozzetti, que viveria em espaço musical próprio, com sua atenção voltada para os sons. “Ná me contou que prestava atenção no latido dos cachorros, no cantarolar da mãe, no acorde que se forma nas risadas de um grupo. Ela mostrou que, se existe algum lugar onde a criação se torna andrógina, é na canção. Sem palavras, sem imagens, as tensões entre os gêneros desaparecem”, explica a historiadora.