| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 315 - 13 a 19 de março de 2006
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6 - 7

Zeferino ‘cai para cima’
ao perder uma eleição

CAPÍTULO 7

Alijado da presidência do CEE, o Napoleãozinho termina presidente da comissão organizadora da Unicamp

EUSTÁQUIO GOMES

Crise por crise, em meados de 1965 a novíssima Universidade de Campinas também já tinha a sua. O Conselho Estadual de Educação estava mordido com a existência de uma universidade que, à revelia de todos e com “impressionante autonomia”, era constituída de uma única unidade de ensino – a Faculdade de Medicina –, quando a lei exigia um mínimo de cinco para que tivesse seu funcionamento autorizado. A Universidade de Campinas tinha reitor, conselho de curadores e “funcionários contemplados com referências superiores às dos professores dos institutos isolados de ensino superior”, ou seja, a Universidade de Campinas tinha tudo – só não tinha estabelecimentos de ensino. São estes os termos de um grave relatório preparado pelo conselheiro Honório Monteiro, professor de direito da USP, ex-ministro do Trabalho no governo Dutra, sobre a situação da escola. Contundente, o relatório concluía:

— Esta universidade não existe. É mera ficção. Urge fazer encerrar a vida fictícia dessa universidade.

O geneticista Bernardo Beiguelman nos tempos heróicos da instalação da Faculdade de Medicina (Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)De fato, já em seu terceiro ano de funcionamento, a universidade ainda girava em torno de um leque de disciplinas que por sua variedade e riqueza certamente constituíam o embrião das oito unidades projetadas; mas por ora compunham um único curso, o de Medicina. Os esforços do reitor da época (em agosto de 1963, oito meses após sua posse, Cantídio de Moura Campos fora substituído pelo cirurgião vascular Mário Degni, identificado com a corrente ademarista) para criar ou incorporar outras unidades esbarravam no desinteresse do governador Adhemar de Barros em carrear água para os moinhos de seu antecessor, Carvalho Pinto. Em março de 1963, quando seu governo mal se iniciava, o governador baixou um decreto (de número 41.690) transformando a Faculdade de Medicina em instituto isolado de ensino superior. Na prática, abria caminho para a extinção do projeto maior, o da universidade.

Degni, cuja fama de “cirurgião do século” não era suficiente para lhe franquear o acesso ao gabinete do governador, andava em círculos. De uma feita esperou horas no palácio Campos Elíseos, antiga sede do governo estadual, na companhia de professores e estudantes, pela audiência em que reivindicariam a instalação de uma faculdade de Engenharia para compor, ao lado da Medicina, uma segunda unidade. Já estavam a ponto de desistir quando o geneticista Bernardo Beiguelman, que integrava a comitiva, viu passar um dos filhos do governador, o futuro empresário e político Ademar de Barros Filho, seu colega do tempo de faculdade. Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp

O governador até tentou desanuviar o ambiente fazendo elogios à cidade de Campinas e a seu notável Instituto Agronômico, além de pilhérias do tipo: “Os outros fazem filhos e eu tenho que criá-los”, em alusão à criação da universidade pelo governo anterior, ou “Eu só darei a Faculdade de Medicina a Campinas porque essa faculdade foi um presente para Dona Leonor” (Leonor Mendes de Barros, a primeira-dama). Mas não conseguiu dissipar a tristeza da comitiva, que retornou a Campinas com as mãos abanando.1

Nesse ínterim terminava o mandato de Zeferino na presidência do CEE. Esvaziado da reitoria da UnB e sem cargo executivo no governo, anunciou que se recandidataria a um segundo período como presidente do conselho. Ficou surpreso ao ver que havia concorrência: contra ele perfilou ninguém menos que sua amiga Esther de Figueiredo Ferraz, com o apoio do jurista Miguel Reale e do diretor-presidente do Mackenzie, Oswaldo Miller da Silva, que trabalhava no gabinete do governador e tinha influência sobre este. A derrota foi fragorosa: do quorum de 21 conselheiros, 15 deram seu voto a Esther.

Desalojado dessa última trincheira, Zeferino continuou conselheiro designado para uma das três câmaras do Conselho, de onde dedicou-se a emperrar todas as discussões e a inviabilizar as votações. O impasse durou todo o mês de agosto de 1965 e ganhou um nome: “o problema Zeferino”. Miller, que chamava Esther de comadre, alertava-a diariamente:
— Comadre, precisamos resolver o “problema Zeferino”.

No fim do mês, a ocasião surgiu. A questão de Campinas não podia esperar mais. A sociedade civil da cidade continuava fustigando pela instalação da universidade e o governador não queria mais aborrecimentos num momento em que já estava suficientemente pressionado pelos militares instalados no Planalto desde abril de 1964. Era preciso uma solução que representasse, não um déficit, mas um saldo positivo para o seu governo. Se a universidade já estava no papel, então que se tornasse universidade de fato.

A comissão organizadora da Unicamp: Zeferino, Paulo Gomes Romeo e Antonio Augusto de Almeida (Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)Não por acaso, na última semana daquele mês Esther redigiu e fez aprovar no CEE um parecer final sobre a Universidade de Campinas em tom muito mais benévolo que o de Honório Monteiro. Nele, sugeria o entendimento de que “embora em estado de organização, a Universidade existe”. E propunha ao governador a constituição de uma comissão encabeçada por um “professor de reconhecida experiência em administração de ensino superior” que planejasse e organizasse a nova universidade.

Quem estaria à altura dessa tarefa? Miller, de comum acordo com Esther, mencionou o nome de Zeferino. Com isso lhe dariam com que se ocupar e livravam-se dele. Verdade que haveria rebarbas a aparar com a comunidade de Campinas — afinal Zeferino era persona non grata aos campineiros — mas isso era um trabalho de carpintaria política que o próprio Zeferino, uma vez na função, poderia fazer. Ex-secretário de Estado e ademarista de primeira hora, Zeferino era homem de confiança do governador. Dê-se a universidade aos campineiros, mas também seu executor.

Não foi sem estranheza que os “generais” do Conselho de Entidades receberam a informação, em 11 de setembro de 1965, de que o governador assinara um decreto criando uma comissão organizadora da Universidade Estadual de Campinas e nomeando Zeferino Vaz seu presidente. Mas a magnitude da notícia ultrapassava em muito a surpresa do nome. Para auxiliar o “Napoleãozinho”, cuja habilidade de dar a volta por cima não se contestava, a comissão era integrada ainda pelo diretor da faculdade, Antônio Augusto Almeida, e pelo também médico Paulo Gomes Romeo, companheiro de Zeferino desde os tempos de Ribeirão Preto – seu “braço esquerdo”, segundo as línguas viperinas.

Para Mário Degni, que assistiu a tudo isso sem mugir nem tugir, e pior, sem que ninguém o defendesse, o parecer de Esther foi doloroso. Não vendo sentido na figura do reitor numa universidade em formação, o parecer recomendou que a função fosse abolida e atribuída, de imediato, ao presidente da comissão organizadora. Foi o que aconteceu. Degni não esperou pela exoneração e renunciou ao cargo.


1 – Depoimento de Bernardo Beiguelman.


CAPÍTULO 8

Campus começa a ser plantado em um canavial

Fazendeiro doa gleba entre colinas e general-presidente vem lançar a pedra fundamental

Aprimeira tarefa de Zeferino em Campinas foi sanear as contas da faculdade. Começou por dispensar quatro diretores administrativos, além do chefe e do assistente de gabinete do ex-reitor. Cobriu a lacuna com a ajuda de um único auxiliar, o topógrafo Hélio Martini.

Mário Degni assina acordo para instalação do campus na Fazenda Santa Mônica: Zeferino recusou a gleba (Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)A comissão trabalhou duro de setembro de 1965 a junho de 1966. Encastelado numa sala emprestada no Palácio dos Azulejos, um velho prédio municipal onde funcionava o Departamento de Água e Esgotos, Zeferino começou a dar forma plástica a seus sonhos sobre uma sólida mesa de mogno envernizado, pesando cem quilos, que pertencera ao barão de Itatiba no século dezenove. Toda terça-feira ele convocava Almeida e Gomes Romeo e abria mapas sobre a mesa, desvendava esquemas e narrava em detalhes o que tinha imaginado e planejado. Como um suserano, dizia o que devia ou não devia ser feito para que do nada surgisse uma universidade moderna, eficiente e que servisse de modelo para o país.

— Em primeiro lugar, precisamos de um bom lugar para o campus. Uma área não inferior a 20 alqueires paulistas, perto do asfalto e com algum melhoramento público. E é preciso que a terra seja boa.

O mito do solo fértil para plantar edifícios era uma das obsessões de Zeferino. Gostava de contrapor a terra roxa e encaroçada de Ribeirão Preto, onde fizera florescer a sua Faculdade de Medicina, à vegetação retorcida e nodulosa do cerrado brasiliense, de onde ele e Camargo haviam saído sob uma chuva de tomates e ovos, dois anos antes. Dizia que a aridez de Brasília influenciava negativamente o espírito da população e dava banzo nos deputados e senadores. Faltava ali o verde intenso das terras produtivas.

— Verde é clorofila e clorofila é para a planta o que a hemoglobina é para o homem. O homem sente isso e quando vê produção abundante, vegetação exuberante, é otimista, sente-se forte, com ímpeto de trabalhar, tem esperança e confia no futuro.

Dessas exigências ele não abria mão. Por isso recusou uma doação feita pelo fazendeiro Caio Pinto Guimarães a Mário Degni, um ano antes, para a construção do campus numa gleba da Fazenda Santa Cândida. O terreno era montanhoso e Zeferino considerou inaceitável a cláusula imposta pelo fazendeiro que condicionava a construção da Cidade Universitária a um projeto já pronto do arquiteto Sérgio Bernardes. Alguns anos mais tarde, ali seria construído o primeiro campus de uma outra universidade, a PUC de Campinas.

Uma outra possibilidade era a Chácara Taquaral, às margens da lagoa com o mesmo nome, na época pertencente ao Instituto Brasileiro do Café e abandonada. Totalizava apenas 13 alqueires, mas Zeferino gostou do lugar. O deputado Herbert Levy chegou a fazer tramitar uma proposta de decreto-lei desapropriando a área e transferindo-a ao Estado de São Paulo, mas o IBC opôs resistência férrea e a idéia foi descartada.

Em 1966, Zeferino procurou seu velho amigo João Ademar de Almeida Prado, fazendeiro e rico industrial do ramo de geladeiras, que botou Zeferino num jeep e levou-o a uma vasta planície para os lados do distrito de Barão Geraldo, vizinha da famosa fazenda Santa Genebra, onde um século atrás o barão Geraldo de Rezende recebia o imperador Pedro II e seu séquito. O Napoleãozinho ficou encantado com o que viu: um extenso canavial entre fofas colinas, o solo quase vermelho sob as ramas verdes dos flamboyants, sibipirunas e paus-ferros. Um lago deixava-se ver, quase edênico, entre as folhagens. O lugar ficava a oito quilômetros do centro urbano de Campinas. Convicto, disse:

— Será aqui!

Aspecto da avenida que hoje liga Barão Geraldo ao campus central da Unicamp: primeiros tempos (Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)Com a concordância de Almeida Prado – que, sagazmente, transformaria o entorno num grande negócio imobiliário – a gleba foi desapropriada pelo valor simbólico de 1 cruzeiro. Não por seu amigo Adhemar de Barros, que tinha sido recém-desalojado do governo paulista na onda das cassações de meados de 1966, mas por seu vice guindado ao poder pelos militares, Laudo Natel. Essa mudança em nada afetou o projeto da nova universidade nem o prestígio de Zeferino, que também dava-se muito bem com o governador substituto. Tanto que, no mesmo dia, Laudo liberou uma enorme verba – 606 milhões de cruzeiros – para a construção do primeiro prédio do futuro campus.

A partir daí Zeferino passou a visualizar, como um demiurgo, todo o cenário de arruamentos, edifícios, laboratórios, bibliotecas, salas de aula e escritórios que faria crescer, como perobas, no lugar da onda verde do canavial. Sonhar era, nesse caso, planejar. E isso ele sabia fazer como ninguém. O relatório que apresentou ao governo alguns meses depois resumia seu plano:

— Concentrar os institutos, faculdades e serviços como usinas de produção de trabalho num país carente de recursos, abrigando-os em edifícios sóbrios, sem fachadas imponentes e sem os luxos de acabamento e de espaços construídos sem qualquer utilidade.

Os edifícios não deveriam ter mais de três andares, dispensando-se assim o uso de elevadores.

— Serão feitos de molde a disporem de amplas áreas com um mínimo de alvenaria fixa, divididas através de paredes removíveis, permitindo alterações rápidas em função de necessidades futuras.

A referência a “espaços sem utilidade” era uma crítica direta ao projeto de Oscar Niemayer para a UnB, cujo monumental edifício do Instituto Central de Ciências apresentava uma fachada de 720 mil metros quadrados para 120 mil de área construída e apenas 70 mil utilizáveis para laboratórios e salas.

Por outro lado, era na UnB que ele iria mirar-se para construir o arcabouço didático, científico e administrativo da Unicamp. Muitos dos problemas que havia vivenciado à exaustão, como professor ou presidente do CEE, decorriam freqüentemente da estrutura federativa que caracterizava as universidades brasileiras, a começar pela Universidade de São Paulo. Para Zeferino a universidade deveria ¨ser um organismo, e não uma colônia de organismos¨. Na Unicamp, ele pretendia que os institutos de Matemática, Física, Biologia, Geociências, Letras, Artes e Ciências Humanas — os primeiros que projetou – não fossem concebidos como unidades independentes mas sim como um espelho da “interdependência e subordinação recíproca de todas as ciências”.

No plano urbanístico, imaginou que poderia materializar essa idéia unitária através de uma praça central circular de grandes dimensões, em cujo perímetro seriam construídos os edifícios de todos os institutos, a biblioteca e os serviços de apoio. Este seria o coração do sistema. O relatório descreve essa praça como

um imenso jardim oferecendo os elementos estéticos necessários e repousantes, rodeada pelos prédios dos institutos e da reitoria, todos de construção sóbria e discreta. Terá destaque e ocupará área de maior significação o edifício da Biblioteca Central: para ele, como símbolo e depositário da sabedoria, hão de estar voltados subalternamente todos os demais.

Conquistada a terra e planejada sua ocupação, no dia 5 de outubro de 1966 é lançada a pedra fundamental do campus. Logo cedo, Zeferino engalanou-se para recepcionar ninguém menos que o presidente da República, general Castelo Branco. O governador Laudo Natel trouxe com ele uma comitiva de secretários de estado. Castelo, na secura que caracterizava seu discurso, disse que não era de seu feitio lançar pedras fundamentais. Mas completou:

— Vim a Campinas porque tenho certeza de que nas mãos do professor Zeferino Vaz esta é uma semente que germinará.

Duas semanas mais tarde, no dia 19, o CEE aprovou o relatório da Comissão Organizadora e autorizou o funcionamento dos institutos de Biologia, Matemática, Física, Química e das faculdades de Engenharia, Tecnologia de Alimentos, Ciências e Enfermagem. Tudo passou a andar rápido. No dia 22, levando na pasta seu decreto de nomeação, o próprio Zeferino correu ao palácio do governo para que Laudo o assinasse. O governador curava-se de uma hepatite. Foi de roupão, sentado na cama, que ele assinou o documento. (E.G.)

CAPÍTULO 9

Universidade tem história tardia no país

Unicamp surge num cenário em que a primeira universidade brasileira congruente tinha apenas 32 anos

Ogesto de cimentar a pedra fundamental com uma pá de pedreiro, ao lado do general-presidente, deve ter soado como uma clarinada histórica para Zeferino. Em 1966, a experiência universitária brasileira era recentíssima. Embora já contasse com escolas superiores isoladas desde 1808, somente no século 20 o Brasil passou a ter universidades congruentes, integradoras e capazes de traduzir a “unidade na diversidade”. Zeferino tinha em mente a juventude desse processo histórico quando, diante da oportunidade rara que lhe caiu nas mãos – construir uma instituição inteira a partir do zero –, decidiu fazê-lo segundo convicções próprias.

Significativamente, as primeiras universidades fora da Europa se fizeram na América espanhola. Criada em 1538, a Universidade de São Domingos é historicamente a primeira universidade das Américas. Depois vieram as de San Marcos, no Peru (1551), México (1553), Bogotá (1662), Cuzco (1692), Havana (1728) e Santiago (1738). As primeiras universidades norte-americanas, Harvard, Yale e Filadélfia, surgiram respectivamente em 1636, 1701 e 1755.

5 de outubro de 1966: o presidente Castelo Branco, com Zeferino ao lado, assina a “certidão de nascimento” do campus de Campinas (Fotos: Acervo Arquivo Central (Siarq) Unicamp)Por que o Brasil teria tardado tanto em entrar na maturidade universitária? A história poderia ter sido diferente, já que alguns dos primeiros jesuítas que aqui aportaram no século 16 eram bacharéis da Universidade de Coimbra. Um deles, Marçal Beliarte, chegou a dirigir uma proposta direta ao rei de Portugal: por que não uma escola de ensino superior “para bem servir aos propósitos da colonização”? A idéia foi considerada absurda (uma universidade no meio do mato?) e o Brasil, como se recebesse um sortilégio, levaria quase quatro três séculos para ter sua primeira escola de ensino superior. Seria uma das últimas nações das Américas a contar com uma universidade. Tanto que, quando surgiu a Universidade do Rio de Janeiro, em 1920, já havia 78 universidades espalhadas pelos Estados Unidos e 20 por toda a América Latina.

Durante o período colonial houve mais de uma tentativa de criar-se uma universidade no país. A mais notável ocorreu no contexto da Inconfidência Mineira. Contam os “autos da Devassa” que o plano de mudar-se a capital do Rio de Janeiro para Vila Rica (hoje Ouro Preto) incluía a implantação na cidade de uma escola de ensino superior nos moldes da de Coimbra. Os inconfidentes sabiam que a independência verdadeira só viria com a educação e com a formação de quadros intelectuais e profissionais. Infelizmente, também esse projeto teve de ser arquivado, pois a rebelião foi delatada e seus autores mortos ou banidos.

O problema universitário voltou à baila com a mudança da Corte portuguesa para o Brasil em 1808, para escapar ao avanço das tropas de Napoleão. Chegou-se a reservar uma verba de 80 contos de réis para a criação de uma universidade em Salvador. O projeto não foi adiante mas resultou, em compensação, na instalação da Faculdade de Medicina da Bahia e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Antes dessas, porém, pelo esforço pessoal do governador da Capitania de São Paulo, Antônio José de França e Horta, já existia na capital paulista, desde 1803, um curso com ênfase específica na cirurgia. Este teria sido o primeiro curso de ensino médico do país e também o seu primeiro curso superior.

Nas décadas seguintes, até o fim do século 19, a idéia da implantação de uma universidade voltou a ser debatida no Parlamento em pelo menos oito ocasiões. Terminava sempre engavetada graças às contendas pelo direito de primazia entre os principais centros econômicos e políticos. O Rio de Janeiro alegava que uma instituição dessa importância só podia estar sediada na Corte. A Bahia invocava sua precedência histórica. Olinda apresentava razões de ordem geográfica. E São Paulo acenava com a “salubridade e amenidade de seu clima, sua feliz posição, a abundância e barateza de todas as provisões”. Os argumentos eram muitos e os debates acalorados, mas, na prática, neutralizavam-se uns aos outros.

Até 1822, o ano da Independência, o país contava com aproximadamente 3 mil bacharéis formados na França, Inglaterra e Portugal, a maioria na Universidade de Coimbra, fundada em 1308. Nessa instituição portuguesa estudaram, por exemplo, José Bonifácio de Andrada e Silva – o Patriarca da Independência –, José Carlos Lisboa, responsável pela abertura dos portos brasileiros, e José Correia Picanço, fundador da Faculdade de Medicina de Salvador. Deve-se a bacharéis diplomados na Europa a disseminação de escolas superiores isoladas, no final do século passado e no início deste, em Porto Alegre (1897), Belo Horizonte (1911) e Curitiba (1913), entre outras cidades.

Após a proclamação da República, a questão voltou a ser obrigatoriamente colocada. Segundo alguns historiadores, os positivistas da revolução de 1889 receavam duas coisas: de um lado, a proliferação dos ideais liberais da Revolução Francesa e, de outro, a disseminação do ensino católico. Nessa toada, o projeto da primeira universidade demoraria ainda duas décadas para se esboçar.

Com a implantação da Universidade do Rio de Janeiro – mais tarde Universidade do Brasil – em 1920 a partir da reunião de algumas escolas superiores já existentes na então Capital Federal, os governos provinciais passaram a flertar com a idéia de ter suas próprias instituições. Em 1927 organizou-se a Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte, com um projeto que já reivindicava “autonomia econômica, didática, administrativa e disciplinar” – discurso novíssimo para a época.

O ano de 1934 seria central nesta história com a criação da Universidade de São Paulo (USP) no contexto de um projeto fortemente vinculado aos interesses do Estado para a formação de profissionais destinados ao ensino, à indústria e à administração pública. Nas três décadas seguintes, o sistema se expandiria e se capilarizaria por todo o país, sobretudo graças ao investimento federal, mas a demanda por vagas nas universidades públicas continuava reprimida — como continuaria até o fim do século XX, com o aumento da população e do volume de concluintes do ensino médio – e ainda eram poucos os que podiam aspirar a fazer um curso superior.

Zeferino foi um dos primeiros a compreender, na década de 60, que a crescente industrialização do país criava uma demanda nova por pessoal qualificado, sobretudo numa região – o Estado de São Paulo – que na época detinha 40% da capacidade industrial brasileira e 24% de sua população economicamente ativa. Até então o sistema de ensino superior estava voltado para a formação de profissionais liberais solicitados pelo processo de urbanização, como advogados, médicos e engenheiros. Necessitava-se, portanto, de uma universidade que desse ênfase à pesquisa tecnológica e que mantivesse, desde o início, sólida vinculação com o setor de produção de bens e serviços. E que formasse profissionais dentro desse novo espectro do mercado. (E.G.)


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