| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 316 - 20 de março a 27 de março de 2006
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ARTIGO

O que 'contém' o Protocolo
de cartagena em Curitiba

JOSÉ MARIA DA SILVEIRAJosé Maria da Silveira é professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp (Foto: Antoninho Perri)

O Brasil vem sendo sede desde 13 de março, em Curitiba, do Protocolo de Cartagena (PCB). A reunião corresponde à terceira Conferência das Partes do Protocolo, chamada COP/MOP-3. Dela participam 132 países parte (entre eles Brasil, China, vários da União Européia e da América Latina e 37 da África), além de países observadores sem direito a voto. Trata-se portanto de uma convenção de países que se dispõem a internalizar suas regras, definidas nesses encontros (por enquanto anuais) e que devem ser por eles implementados. Aos paí-ses não-parte fica o ônus de aceitar as regras definidas pelo PCB toda vez que países importadores acharem que isto deva ocorrer.

O Protocolo de Cartagena é definido como um tratado sobre biossegurança que faz parte da Convenção sobre a Diversidade Biológica, RIO-92. Seus objetivos são amplos, mas a missão principal é a de estabelecer regras sobre o fluxo “transfronteiriço” (sic) de Organismos Vivos Modificados, os OVMs. Visa, entre outras coisas, gerar padrões para o transporte, manipulação, identificação e embalagem de OVMs, o que é tratado no artigo 18.2, especificamente no item “a”, relativo à exportação de organismos modificados para posterior processamento visando alimentação animal e humana. O cuidado com organismos vivos deriva da possibilidade de multiplicação deste material no país de destino, criando preocupações com os possíveis impactos à biodiversidade e também à saúde humana e animal.

A questão assume grande interesse para o Brasil, grande exportador de cultivares transgênicos de soja em grão. A grande polêmica, que vem desde meados de 2005 (da COP/MOP 2), refere-se justamente ao problema da identificação dos lotes de OVMs exportados. O Brasil, junto com a Nova Zelândia, aproveitando-se da justa exigência de consenso para definição de regras do PCB, contrariou a opinião dos países parte presentes, que sugeriam a mudança da expressão “pode conter” para “contém” OVMs, como parte do processo de identificação de cargas para exportação. A decisão foi deixada para a reunião seguinte, esta que ocorre agora em março.

Afinal, quais seriam as razões que levaram organizações representantes da sociedade civil1, a lançar uma proposta de manutenção da expressão “pode conter”, acompanhada da identificação em nota fiscal dos eventos aprovados para a comercialização pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBIO, além da explícita defesa do fortalecimento de um mecanismo de intermediação da informação em biossegurança2?

Por que representantes da agroecologia e de movimentos sociais – entre eles o Greenpeace, o MST e o IDEC – propuseram a mudança para “contém OVMs”? Por que tal polarização ocorreria também no seio do governo brasileiro? Como duas expressões podem sugerir implicações tão relevantes para o futuro do país, sugerindo cuidado e precaução na decisão a ser tomada?

A resposta a essas perguntas é incrivelmente complexa e, portanto, fora do escopo deste artigo. O fato é que rapidamente as entidades representativas do agronegócio, da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico perceberam que a expressão “contém OVMs”, criaria um potencial para a imposição de novas “Barreiras Técnicas ao Comércio”.

Cabe resumir os pontos centrais que sustentaram esta percepção. Em primeiro lugar, a confusão feita inclusive pelo Ministério da Justiça do Brasil, entre identificação e rotulagem. O artigo 18.2.a, mencionado acima, trata de mercadorias que serão processadas no país de origem, não devendo, de forma alguma, serem utilizadas para pesquisa e menos ainda para plantio. Assim, a analogia com rótulos de alimentos processados é totalmente inadequada. A rotulagem fica ao cargo de quem utiliza a soja como matéria prima e não do exportador de soja.

Um segundo ponto: a aceitação da expressão “contém” levaria, logicamente, à pergunta: o que? Talvez sugerisse outra questão: quantos por cento de cada evento, na suposição de que no futuro mais de um evento possam estar presentes nos lotes padrões de amostra para identificação de OVMs.

O Brasil, isolado nas negociações por não contar com a participação direta de outros exportadores, como EUA, Argentina e Canadá que não aderiram ao Protocolo, aceitando a expressão “contém” teria desesperadamente que evitar que o PCB, utilizando a lógica que governa a idéia de preservação de identidade de alimentos, obrigasse os exportadores a identificar os OVMs no país por meio de um amplo sistema de rastreabilidade e segregação de commodities agrícolas. Aceitar “contém” nas atuais condições do Brasil, seria pouco prudente.

A demanda pela generalização do sistema de rastreabilidade e segregação da soja, desde a fazenda até os portos brasileiros, implicaria, em sua modalidade baseada em detecção, custos que variariam enormemente, dependendo da localização das lavouras e das logísticas de transporte e armazenamento envolvidas. Poderiam representar apenas 0.5% do valor de uma tonelada de grãos, para cultivares de soja tolerantes ao herbicida gliphosato – em regiões próximas aos portos, cujos produtores não cultivam transgênicos em um amplo território. Todavia, os custos poderiam ser elevados, chegando a representar de 6% a 8% do valor da tonelada de soja, em regiões distantes, em que as cargas passariam por vários transbordos, por diferentes tipos de armazéns e por regiões “mistas”, como se caracteriza a produção do Centro-Oeste neste ano.

Em resumo, a expressão “contém”, interpretada desta forma, implicaria privilegiar regiões, favorecer grandes exportadores e aumentar os custos de todos, além de contribuir para aumentar o déficit da capacidade de armazenamento e transporte da agricultura brasileira, estimado hoje em 15,5 milhões de toneladas/ano.

Finalmente, cabe perguntar, entre tantas questões, para quê? Para obter a mesma informação que a expressão “pode conter” forneceria a um custo muito menor, com muito menor burocracia e menos espaço para o oportunismo de nossos importadores.


1 Entre elas, a Organização das Cooperativas do Brasil – OCB, a Conferência Nacional da Agricultura- CNA, A Conferência Nacional da Industria – CNI, Associação Brasileira de Óleos Vegetais – Abiove, organizações científicas como a Associação Nacional de Biossegurança – Anbio e Institutos de pesquisa como o Icone.

2 A chamada Biosafety Clearing House, certamente a instituição mais importante do PCB, por centralizar e disponibilizar pela internet toda informação relevante sobre os organismos geneticamente modificados aprovados para comercialização, pesquisa e plantio, no mundo.


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