ARTIGO
O que 'contém' o Protocolo
de cartagena em Curitiba
JOSÉ MARIA DA SILVEIRA
O Brasil vem sendo sede desde 13 de março, em Curitiba, do Protocolo de Cartagena (PCB). A reunião corresponde à terceira Conferência das Partes do Protocolo, chamada COP/MOP-3. Dela participam 132 países parte (entre eles Brasil, China, vários da União Européia e da América Latina e 37 da África), além de países observadores sem direito a voto. Trata-se portanto de uma convenção de países que se dispõem a internalizar suas regras, definidas nesses encontros (por enquanto anuais) e que devem ser por eles implementados. Aos paí-ses não-parte fica o ônus de aceitar as regras definidas pelo PCB toda vez que países importadores acharem que isto deva ocorrer.
O Protocolo de Cartagena é definido como um tratado sobre biossegurança que faz parte da Convenção sobre a Diversidade Biológica, RIO-92. Seus objetivos são amplos, mas a missão principal é a de estabelecer regras sobre o fluxo “transfronteiriço” (sic) de Organismos Vivos Modificados, os OVMs. Visa, entre outras coisas, gerar padrões para o transporte, manipulação, identificação e embalagem de OVMs, o que é tratado no artigo 18.2, especificamente no item “a”, relativo à exportação de organismos modificados para posterior processamento visando alimentação animal e humana. O cuidado com organismos vivos deriva da possibilidade de multiplicação deste material no país de destino, criando preocupações com os possíveis impactos à biodiversidade e também à saúde humana e animal.
A questão assume grande interesse para o Brasil, grande exportador de cultivares transgênicos de soja em grão. A grande polêmica, que vem desde meados de 2005 (da COP/MOP 2), refere-se justamente ao problema da identificação dos lotes de OVMs exportados. O Brasil, junto com a Nova Zelândia, aproveitando-se da justa exigência de consenso para definição de regras do PCB, contrariou a opinião dos países parte presentes, que sugeriam a mudança da expressão “pode conter” para “contém” OVMs, como parte do processo de identificação de cargas para exportação. A decisão foi deixada para a reunião seguinte, esta que ocorre agora em março.
Afinal, quais seriam as razões que levaram organizações representantes da sociedade civil1, a lançar uma proposta de manutenção da expressão “pode conter”, acompanhada da identificação em nota fiscal dos eventos aprovados para a comercialização pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança CTNBIO, além da explícita defesa do fortalecimento de um mecanismo de intermediação da informação em biossegurança2?
Por que representantes da agroecologia e de movimentos sociais entre eles o Greenpeace, o MST e o IDEC propuseram a mudança para “contém OVMs”? Por que tal polarização ocorreria também no seio do governo brasileiro? Como duas expressões podem sugerir implicações tão relevantes para o futuro do país, sugerindo cuidado e precaução na decisão a ser tomada?
A resposta a essas perguntas é incrivelmente complexa e, portanto, fora do escopo deste artigo. O fato é que rapidamente as entidades representativas do agronegócio, da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico perceberam que a expressão “contém OVMs”, criaria um potencial para a imposição de novas “Barreiras Técnicas ao Comércio”.
Cabe resumir os pontos centrais que sustentaram esta percepção. Em primeiro lugar, a confusão feita inclusive pelo Ministério da Justiça do Brasil, entre identificação e rotulagem. O artigo 18.2.a, mencionado acima, trata de mercadorias que serão processadas no país de origem, não devendo, de forma alguma, serem utilizadas para pesquisa e menos ainda para plantio. Assim, a analogia com rótulos de alimentos processados é totalmente inadequada. A rotulagem fica ao cargo de quem utiliza a soja como matéria prima e não do exportador de soja.
Um segundo ponto: a aceitação da expressão “contém” levaria, logicamente, à pergunta: o que? Talvez sugerisse outra questão: quantos por cento de cada evento, na suposição de que no futuro mais de um evento possam estar presentes nos lotes padrões de amostra para identificação de OVMs.
O Brasil, isolado nas negociações por não contar com a participação direta de outros exportadores, como EUA, Argentina e Canadá que não aderiram ao Protocolo, aceitando a expressão “contém” teria desesperadamente que evitar que o PCB, utilizando a lógica que governa a idéia de preservação de identidade de alimentos, obrigasse os exportadores a identificar os OVMs no país por meio de um amplo sistema de rastreabilidade e segregação de commodities agrícolas. Aceitar “contém” nas atuais condições do Brasil, seria pouco prudente.
A demanda pela generalização do sistema de rastreabilidade e segregação da soja, desde a fazenda até os portos brasileiros, implicaria, em sua modalidade baseada em detecção, custos que variariam enormemente, dependendo da localização das lavouras e das logísticas de transporte e armazenamento envolvidas. Poderiam representar apenas 0.5% do valor de uma tonelada de grãos, para cultivares de soja tolerantes ao herbicida gliphosato em regiões próximas aos portos, cujos produtores não cultivam transgênicos em um amplo território. Todavia, os custos poderiam ser elevados, chegando a representar de 6% a 8% do valor da tonelada de soja, em regiões distantes, em que as cargas passariam por vários transbordos, por diferentes tipos de armazéns e por regiões “mistas”, como se caracteriza a produção do Centro-Oeste neste ano.
Em resumo, a expressão “contém”, interpretada desta forma, implicaria privilegiar regiões, favorecer grandes exportadores e aumentar os custos de todos, além de contribuir para aumentar o déficit da capacidade de armazenamento e transporte da agricultura brasileira, estimado hoje em 15,5 milhões de toneladas/ano.
Finalmente, cabe perguntar, entre tantas questões, para quê? Para obter a mesma informação que a expressão “pode conter” forneceria a um custo muito menor, com muito menor burocracia e menos espaço para o oportunismo de nossos importadores.
1 Entre elas, a Organização das Cooperativas do Brasil OCB, a Conferência Nacional da Agricultura- CNA, A Conferência Nacional da Industria CNI, Associação Brasileira de Óleos Vegetais Abiove, organizações científicas como a Associação Nacional de Biossegurança Anbio e Institutos de pesquisa como o Icone.
2 A chamada Biosafety Clearing House, certamente a instituição mais importante do PCB, por centralizar e disponibilizar pela internet toda informação relevante sobre os organismos geneticamente modificados aprovados para comercialização, pesquisa e plantio, no mundo.