Criada como instituto isolado de ensino superior em 25 de novembro de 1958, por meio de lei promulgada pelo governador Jânio Quadros, a primeira unidade da Unicamp viria a começar a funcionar há 43 anos a aula inaugural foi proferida em 20 de maio de 1963. Cinco meses antes, em 28 de dezembro de 1962, era criada oficialmente, pelo governador Carlos Alberto de Carvalho Pinto, a Universidade Estadual de Campinas (UEC), à qual foi incorporada a Faculdade de Medicina.
Foram mantidos os dois nomes escolhidos por Jânio para a implantação da unidade. Cantídio de Moura Campos, indicado diretor pelo governador, passou ao cargo de reitor pelo decreto de Carvalho Pinto. Já Antonio Augusto Almeida, incumbido pelas hostes janistas para implantar a unidade, foi nomeado diretor pelo próprio Cantídio. Ambos, já falecidos, eram médicos. Moura Campos ocupava a cadeira de Gastroenterologia da Universidade de São Paulo. Almeida era um renomado oftalmologista do Instituto Penido Burnier.
O primeiro professor a ser contratado, em fevereiro de 1963, foi Walter August Hadler, especialista das áreas de histologia e embriologia. O quinteto de docentes pioneiros seria formado em agosto do mesmo ano com a contratação de Bernardo Beiguelman e de João Baptista Parolari, responsáveis, respectivamente, pela implantação dos departamentos de Genética Médica e de Anatomia. Beiguelman é duplamente precursor, pois seu departamento seria o primeiro do gênero na América Latina. E, nessa condição, foi uma testemunha privilegiada do nascimento e da formação da FCM. Professor emérito da Unicamp, pode-se dizer que o geneticista presenciou todas as fases da unidade, onde atuou até 1997 ano em que se aposentou e com a qual mantém vínculos estreitos até hoje.
Precariedade Nem bem instalada, a FCM ficou refém da sensaboria política. Isto porque Carvalho Pinto, janista histórico, foi sucedido por Adhemar de Barros. Este não escondia de ninguém sua má vontade com o sucesso da universidade campineira. Seu raciocínio estava escorado na lógica das urnas. Por que ele, Adhemar, haveria de empenhar-se num projeto concebido por seu maior rival político no Estado de São Paulo? Em março de 1963, logo depois de assumir, Adhemar lançou mão de uma manobra para matar a UEC ainda no berço. Por meio de um decreto, fez a Universidade voltar à condição de instituto isolado, vetando a instalação de novos cursos.
A artimanha não esmoreceu os pioneiros. De acordo com depoimentos de Beiguelman, os professores Almeida e Hadler rodaram Campinas à procura de um prédio que abrigasse a faculdade. Foram à Escola Preparatória de Cadetes do Exército, tentaram o prédio do Senai e a Fazenda Taquaral, pertencente ao Instituto Brasileiro do Café (IBC). Não tiveram sucesso. Havia urgência, pois era imperioso organizar o vestibular, à época a cargo do Centro de Seleção de Candidatos a Escolas Médicas (Cescem). Os professores assistentes precisavam ser contratados.
Isto acabou sendo feito depois que a Maternidade de Campinas concordou em alugar, provisoriamente, dois dos andares do prédio que erguia na avenida Orosimbo Maia, na região central de Campinas. E assim, num edifício em construção, tiveram as primeiras aulas os 50 estudantes aprovados no exame que contou com 1.654 candidatos. Um Conselho de Curadores fazia as vezes do que é hoje o Conselho Universitário (Consu). Cabia a seus membros zelar pela parte administrativa da unidade.
Beiguelman vai aos detalhes. As primeiras aulas práticas de genética médica eram ministradas à noite, no Instituto Penido Burnier, mais precisamente no laboratório de análises clínicas emprestado pelo médico José Francisco Monteiro Sales, que auxiliava nas aulas e doava reagentes e anti-soros para determinação de grupos sangüíneos. Na Maternidade, o piso, revestido de massa grossa, era a porta de entrada para o acúmulo de poeira. Os laboratórios foram improvisados onde hoje funcionam as copas dos andares da Maternidade.
Bico de Bunsen No canto de um dos corredores, o Departamento de Genética Médica improvisou um laboratório de cultura de tecidos com paredes de tábua, entrada de ar protegida por tela metálica (não havia câmara de sucção e muito menos ar-condicionado), uma lâmpada ultra-violeta, uma mesinha, duas cadeiras, e um bico de Bunsen. A vidraria era toda adaptada, graças à ajuda providencial de amigos vidreiros. Como não havia dinheiro para a importação dos meios de cultura, eles eram fabricados no próprio laboratório.
Apesar de as condições serem precárias, foram desenvolvidas pesquisas sobre genética e epidemiologia de hanseníase (na época, lepra). Mesmo funcionando na base do improviso e com o local oferecendo riscos de contaminação, isso era evitado porque docentes e alunos usavam máscaras cirúrgicas e faziam as manipulações atrás da chama do bico de Bunsen. Mais: foi implantada uma unidade de citogenética humana e os pesquisadores iniciaram estudos do comportamento dos macrófagos humanos na hanseníase.
Tamanha obstinação, entretanto, não encontrava eco nos gabinetes do alto escalão do governo do Estado. Nem mesmo a nomeação, em agosto de 1963, do novo reitor, Mário Degni, mudaria o rumo das coisas. Renomado cirurgião vascular, Degni era tido como ademarista de carteirinha, ao contrário de seu antecessor, Cantídio de Moura Campos, homem ligado a Carvalho Pinto. A FCM continuou a enfrentar problemas de ordem financeira e estrutural.
O “Paulistão” Numa tarde de 1963, uma comissão liderada por Degni e formada por docentes, alunos e representantes da sociedade civil dirigiu-se ao Palácio dos Campos Elíseos, à época sede do governo do Estado. O grupo só conseguiu uma audiência em razão da intervenção do filho do governador, Adhemar de Barros Filho, que havia sido colega de Beiguelman e passava por acaso pelo local. O encontro, porém, foi um fiasco. Os integrantes da comitiva reivindicavam verbas para a Faculdade de Medicina e a implantação de uma unidade de Engenharia. Voltaram sem nada. A situação só mudaria em 1965, com a nomeação de uma comissão, presidida por Zeferino Vaz, primeiro reitor e arquiteto da expansão da Universidade nos anos subseqüentes.
No paralelo, a FCM continuou crescendo. Acordo firmado com a Irmandade de Misericórdia possibilitou, ainda em meados dos anos 60, que as aulas de clínica médica e o treinamento cirúrgico passassem a ser feitos na Santa Casa de Campinas, desafogando as atividades na Maternidade, que se tornara pequena para abrigar o curso. Foi construído um anexo, batizado de “Paulistão”, que servia como uma grande sala de aula.
A mudança definitiva da FCM para o campus de Barão Geraldo ocorreria em março de 1986. No começo, instalado num terreno de 1,2 mil m2, um prédio de três andares abrigava a maioria dos setores da unidade. O restante funcionava em salas espalhadas pelo Hospital das Clínicas. Dois anos depois, a área física saltaria para 5 mil m2.
A excelência Hoje, a Faculdade de Ciências Médicas funciona em 14 prédios situados numa área de aproximadamente 129 mil m2. A maior unidade da Unicamp abriga 16 departamentos e quatro cursos (Medicina, Enfermagem, Fonoaudiologia e Farmácia), nos quais estão matriculados cerca de 2,6 mil alunos, entre graduação, pós-graduação e residência. As pesquisas desenvolvidas na unidade têm repercussão internacional. Seus profissionais e alunos são responsáveis pela assistência médica prestada à comunidade em escalas regional e estadual. O Hospital das Clínicas da Unicamp (HC), por exemplo, atende a mais de cem municípios. Sua área de abrangência compreende uma população aproximada de seis milhões de habitantes. Destacam-se também, nesse contexto, o Hemocentro, o Gastrocentro, o Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), o Hospital Estadual Sumaré e o Hospital Municipal e Maternidade Mário Covas (Hortolândia).
Olhando hoje os números e indicadores da FCM, constata-se que não foi em vão o esforço de seus pioneiros. Os tempos de heroísmo, de aulas entre carriolas de cimento num prédio em obras, ajudaram a construir um projeto maior, arquitetado na Avenida Orosimbo Maia. Os precursores da FCM ergueram os andaimes do que é hoje a Unicamp. A obstinação ganhou o mundo e pavimentou a excelência.