| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 316 - 20 de março a 27 de março de 2006
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6 - 7

Pioneiros chegam à rua
das ‘ciências ocultas’

CAPÍTULO 10

Cientistas chegam de toda parte e se acotovelam nos corredores de um antigo colégio da rua Culto às Ciências

EUSTÁQUIO GOMES

O antigo Colégio Bento Quirino, hoje Cotuca, onde foram instalados os primeiros laboratórios (Fotos: Acervo Histórico do Arquivo Central (Siarq))Designado reitor, uma das primeiras providências de Zeferino foi reunir-se com empresários da cidade. Com 350 mil habitantes, uma classe média vigorosa e um histórico de atração de empresas internacionais desde a década de 50, em 1966 Campinas era o principal pólo industrial e econômico do interior paulista. A reunião, primeira de uma série, aconteceu no dia 13 de setembro e foi convocada, a pedido de Zeferino, pela seção local da Federação das Indústrias do Estado. Nela, o reitor fez uma explanação do que seria a nova universidade, esboçou o perfil dos cursos e explicou de que modo se daria a aproximação com a indústria. Solicitou o uso das oficinas fabris para estágios e para o ensino prático de algumas disciplinas. No fim, pediu que os empresários formassem um grupo de trabalho e o ajudassem a preparar um anteprojeto para os cursos de Engenharia Elétrica, Mecânica e Química a partir da experiência de cada um e das necessidades da indústria.

— Non scholae sed vitae dicimos, escandiu no seu melhor latim. — Trata-se de ensinar para a vida, não para a escola.

Os empresários saíram impressionados e dias depois voltaram com uma pauta de sugestões para a estrutura didática dos cursos1. Alguns se envolveriam profundamente no projeto, como o engenheiro Sancho Morita, que colocou à disposição de Zeferino todo o capital de relações que mantinha com a Michigan State e outras universidades norte-americanas com currículos voltados para as necessidades do setor de produção de bens e serviços. Outros passaram a dar aulas na Unicamp, fizeram pós-graduação e seguiram carreira acadêmica.

Giuseppe Cilento
Fausto Castilho
Marcello Damy
Sérgio Porto
Murillo Marques
André Tosello
A seguir Zeferino passou à segunda fase do projeto, que compreendia a instalação das unidades de ciências básicas (Química, Física, Matemática e Biologia) e a composição de um corpo docente cujos membros fossem também pesquisadores. De imediato ele arrancou do governo a garantia de que teria as melhores cabeças, no país ou no exterior, dispostas a vir para a nova universidade. Foi assim que nos anos seguintes vieram parar em Campinas cerca de 180 cientistas estrangeiros trazidos das melhores instituições de pesquisa dos Estados Unidos e da Europa, além de duas centenas de brasileiros que se achavam espalhados por universidades e centros de pesquisa brasileiros.

Um dos primeiros a chegar foi o matemático Rubens Murillo Marques. Subtraído à Universidade de São Paulo, Murillo veio para ser professor de bioestatística no curso de Medicina e tornou-se, mais adiante, fundador do Instituto de Matemática e um dos principais auxiliares de Zeferino. Da USP vieram também outros pioneiros como o ginecologista e obstetra Bussamara Neme, o pediatra Jacob Renato Woisky e o neurologista Oswaldo de Freitas Julião. Para organizar o Instituto de Física, Zeferino convidou o principal nome da física nuclear brasileira da época, o ex-presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear, Marcello Damy de Souza Santos, seu amigo pessoal. A implantação do Instituto de Química foi entregue ao italiano Giuseppe Cilento, criador da fotobioquímica sem luz e pesquisador de fama mundial. A biologia estava em boas mãos com o primeiro docente contratado da universidade, o médico Walter August Hadler. As engenharias foram confiadas a um general da reserva com phD em Stanford e simpatizante dos golpistas de 1964, o físico José Fonseca Valverde. Nos anos seguintes, Valverde daria muito trabalho a Zeferino.

Estava implícito que esses pioneiros podiam buscar livremente os professores de sua preferência para compor seus grupos de pesquisa, não importando a que distância estivessem. A maioria trouxe seus grupos de origem, não raro esvaziando departamentos inteiros de outras instituições. Cilento moveu céus e terras para trazer seus pupilos de talento como Nicola Petragnani, Aurora Albanese, Geraldo Vicentini e Luiz Moraes Pitombo. Era muito tentadora a aventura de recomeçar a vida em Campinas em bases novas. Alguns vieram antes mesmo de Zeferino ser ungido reitor. Bussamara Neme, por exemplo, cercou-se de uma equipe de assistentes que incluía jovens obstetras como José Samara, Jessé Jorge e José Aristodemo Pinotti. Quando Damy convidou o físico Sérgio Porto, que à época estava na Southern University of California, ouviu dele:

— Compro a fazenda, mas levo meu gado.

Com isso Porto queria dizer que viria desde que pudesse trazer seus ex-assistentes nos laboratórios Bell, onde durante anos desenvolvera pesquisas em espectroscopia Raman e acumulara enorme prestígio. Todos esses antigos auxiliares estavam agora em outras universidades americanas realizando projetos próprios. Rogério Cezar de Cerqueira Leite estava em Nova Jersey, Paulo Sakanaka em Nova York, José Busnardo Neto em Michigan, Nelson de Jesus Parada em Massachusetts e o casal Carlos e Zoraide Arguello na Califórnia. Parada, que veio para ajudar a implantar a área de física do estado sólido, teve antes a idéia de vir conhecer o campus em construção. Não encontrou mais que trilhas abertas entre espessas moitas de canavial, grandes poças d’água e lodaçais intransponíveis, onde se perdeu e terminou por atolar seu fusquinha. Zeferino não o deixou desanimar:

— Filho, uma universidade não se faz com prédios, mas com cérebros. Primeiro cérebros, segundo cérebros e terceiro cérebros. Depois é que vêm edifícios, laboratórios, bibliotecas. Traga quem quiser, desde que seja gente boa. Sei que pesquisadores de primeira linha sabem buscar recursos onde eles existem. E que depois transformam esses recursos em conhecimento científico. Do que eles desenvolverem, 15% do crédito será meu. Eu sou ambicioso.

Sabedor das tremendas dificuldades iniciais de um projeto dessa natureza. Porto havia recomendado a Parada, um de seus prediletos:

— Vão vocês primeiro. Arrumem a casa, depois vou eu.

“Eu vou mais tarde... para ser o chefe”, assim deveria ser interpretada a frase de Porto, segundo Parada. O grupo havia se dispersado mas ainda lhe reconhecia a ascendência, exceto Cerqueira Leite, cujo trabalho com lasers de semicondutores na Bell alargara seu prestígio até os bolsões científicos da Europa, da Rússia e do Japão2. Para organizar a área de altas energias, Damy convidou ninguém menos que César Lattes, que em 1947, quando tinha apenas 23 anos, confirmou experimentalmente a hipótese levantada três anos antes pelo físico japonês Hideki Yukawa sobre a existência do meson pi, partícula responsável pela coesão dos componentes do núcleo do átomo.

Fundador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, em 1949 e um dos autores do anteprojeto de criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com passagens anteriores pelas universidades de Bristol, Chicago e Minnesota, Lattes era na década de 60, inquestionavelmente, o cientista brasileiro de maior projeção internacional. Para tê-lo em seus quadros a USP criou especialmente para ele uma cátedra, a de Física Superior, que ocupou por alguns anos até ver-se na contingência de ter que disputá-la com outro físico do CBPF, seu padrinho de casamento Jayme Tiomno, na esteira das exigências criadas pelo acordo MEC-Usaid. Contrariado, Lattes renunciou à disputa da cátedra e aceitou o convite de Marcello Damy para implantar uma linha de pesquisa sobre datação de rochas em Campinas. Além de levar seus ex-alunos Marta Sílvia Maria Mantovani, Cláudio Santos, Armando Turtelli Jr. e Edison Hiroyuki Shibuya, Lattes transferiu para a nova universidade todo o peso da colaboração Brasil-Japão na área de raios cósmicos, que vinha desenvolvendo com Yukawa desde 1962. Este segundo projeto sobrepujaria o primeiro e resultaria na estruturação do Laboratório de Raios Cósmicos, célula embrionária do nascente Instituto de Física da Unicamp.

Como o campus ainda não existia, Zeferino mandou adaptar laboratórios nos porões de um antigo colégio, o Bento Quirino, no número 177 da rua Culto à Ciência. Lattes às vezes aparecia de chinelos e trazia o cachorro. Em varais improvisados no corredor, estendia filmes com registro de colisões de partículas cósmicas observadas no monte Chacaltaya, na Bolívia, onde ficava e ainda fica o laboratório instalado por ele em 1951. Quem descia até ali podia vê-lo deitado na rede que dividia ao meio sua mandara sua estreita sala, ruminando cálculos.

De seu gabinete no andar de cima, o reitor tramava a organização da área de humanidades e artes, a quarta perna do quadrívio que, com as biológicas, as exatas e as tecnológicas, ele esperava pôr em posição de equilíbrio em curto espaço de tempo. Tinha pressa. As ciências humanas começam pela filosofia e pela economia, sustentava. Freqüentador do gabinete do prefeito paulistano Faria Lima, de quem se dizia que chegaria a governador, Zeferino foi buscar em seu primeiro escalão o filósofo Fausto Castilho, secretário municipal de Educação e acadêmico de formação alemã, estudioso da obra de Edmund Husserl. Arestas tiveram de ser aparadas, pois Fausto sempre acreditara que sua exoneração da Faculdade de Filosofia de Araraquara, anos antes, supostamente por razões ideológicas, fora obra intelectual de Zeferino. Fosse como fosse, Zeferino apostou nele todas as suas fichas para a implantação do Instituto de Ciências Humanas. Essa atitude, que provocou arrepios no general Valverde, era o primeiro indício de que o reitor não estava inclinado a dobrar-se a injunções políticas para compor seu quadro de colaboradores. Fossem de direita ou de esquerda — mas de preferência desideologizados —, tivessem ou não titulação acadêmica, declarava que seu primeiro critério de escolha era o da competência ou do prestígio acadêmico, única moeda de troca cujo valor dizia reconhecer.

Castilho tinha sua troupe d’estime. Eram os professores do curso livre de planejamento econômico que a Prefeitura de São Paulo organizava desde 1965 com a ajuda do escritório da Cepal no Rio de Janeiro. A Cepal, ou Comissão Econômica para a América Latina, um organismo das Nações Unidas com sede em Santiago do Chile, cujo papa era o economista argentino Raúl Prebisch, era tida como um “ninho de esquerdistas” e estava há muito na mira dos militares brasileiros. Como o escritório do Rio estava prestes a fechar – o medo grassava entre os estudantes e as matrículas despencavam – nada melhor que transplantar a estrutura do curso para o interior de uma universidade constituída sob o beneplácito dos militares e com um reitor atrevido à frente. Zeferino fez-se de surdo às advertências que vinham de toda parte, mas sobretudo de Valverde. O próprio prefeito Faria Lima, em tom de blague mas sem ocultar sua surpresa, questionou-o um dia no banheiro da Secretaria, enquanto urinavam lado a lado:

— Você só pretende levar comunistas para lá?

— São comunistas mas são competentes, defendeu-se Zeferino.

De fato, Castilho havia convencido o reitor a estruturar o Departamento de Planejamento Econômico e Social, o primeiro da área de humanidades, somente com professores e ex-alunos da Cepal. A organização do projeto foi entregue ao economista Alceu Sanches, coordenador dos cursos da Cepal no país. Do Rio vieram os professores Roberto Gamboa, Wilson Cano e Ferdinando de Oliveira Figueiredo. Para completar o time inicial, Castilho recrutou alguns dos melhores alunos do curso paulista: Luiz Gonzaga Belluzzo (seu chefe de gabinete na Secretaria de Educação), João Manuel Cardoso de Mello (seu oficial de gabinete), Carlos Eduardo Nascimento Gonçalves e Osmar Marchese, que trouxe junto um colega de pós-graduação na USP, Éolo Marques Pagnani.

Diante do fato de que o grupo era constituído somente de bacharéis, pois titulação acadêmica ainda era coisa rara no país, Zeferino não se fez de rogado: receberiam salários de doutores. O grupo achou que era pouco para quem ia mudar de cidade e de estado. Com toda a informalidade do mundo, e ignorando solenemente os critérios de ascensão acadêmica, o reitor refez as contas:

— Está bem, vocês entram como professores adjuntos. Mas vou exigir produção científica de vocês.

— E nós vamos exigir condições de trabalho do senhor, respondeu Ferdinando em nome do grupo.

Magnânimo, Zeferino mandou pagar os custos da mudança de cada um. Com outros, foi até mais longe. Cerqueira Leite teve direito a carro oficial e recebeu três salários como ajuda de custo. Sérgio Porto, ao saber disso, impôs as mesmas condições. Para ter sua universidade do jeito que queria, o Napoleãozinho estava disposto a fazer concessões. Tinha carta branca do governo estadual para isso. Enquanto na USP grassava a perseguição política, em Campinas reinava céu de brigadeiro. As surpresas, quando havia, eram pequenas. Assim, quando o grupo de economistas cepalinos apresentou-se para seu primeiro dia de trabalho, o porteiro barrou-lhes a entrada. Desceu para salvá-los o coronel Valverde. Ferdinando, olhando em perspectiva as pedras da rua Culto à Ciência, desolada e pedestre, desabafou:

— Mas, meu Deus, isto é a rua das Ciências Ocultas!

A paisagem era realmente provinciana e não prometia muito.


1. Participaram profissionais de indústria como Sancho Morita e Osias Pereira Gonçalves (Equipamentos Clark), Dietrich Wageler (Bosch), Batista Tasca (Gessy Lever), Francis Rysten Eden (Dunlop), Lino Tatto (Singer), Enio Lorenzetti (Bendix), Benvindo Oliveira (Rigesa), Antônio Carlos Morita (3M), Omar Bittar e Décio Pereira de Souza (General Electric), entre outros.

2. Coube a Cerqueira Leite trazer uma segunda geração de físicos para a Unicamp, a maioria deles trabalhando ou titulando-se em universidades americanas à época. De Los Angeles trouxe Roberto Luzzi, Sonia Frota Pessoa, Elza da Costa Cruz Vasconcellos, José Ignácio Cotrim Vasconcelos, Artemio Scalabrin, Dimitrius Bozinis, Antonio Fernando dos Santos Penna, Tereza Penna, Armando Moreira e José Carlos Valladão de Mattos; de Berkeley, Carlos Alberto da Silva Lima, Miriná Barbosa de Souza Lima e Cylon Gonçalves; de Michigan, José Busnardo, Paulo Sakanaka e o matemático Miguel Taube, entre outros.

CAPÍTULO 11

Reinações de Zéfiro entre glórias e percalços

Em que o reitor revela seu talento para a publicidade e enfrenta sua primeira rebelião de alunos

Entre Abreu Sodré (esq.) e o presidente Castello Branco (dir.), Zeferino  lê seu discurso de lançamentp da pedra fundamental, em 5 de outubro de 1966A um prefeito do interior que lhe dirigiu um ofício de cumprimentos grafando seu nome como “Zé Ferino”, o Napoleãozinho deu-se ao trabalho de explicar que Zeferino era uma variação de zéfiro, “o vento ligeiro que sopra do ocidente”. Ágil, leve e lépido, ele era a própria personificação do mito grego. O percurso de 90 quilômetros entre São Paulo e Campinas, ele o fazia em 45 minutos numa rodovia esburacada na época, a Anhangüera, exigindo de seu chofer, Gabriel Benavente, habilidades de piloto de corrida. Os guardas rodoviários já o conheciam e respeitavam: aquele era o homem que estava implantando uma universidade em Campinas e, portanto, tinha salvo-conduto para andar rápido.

Data desse tempo o episódio rocambolesco em que foi “esquecido” por Gabriel no largo do Arouche, no centro de São Paulo, graças a seus deslocamentos frenéticos. Vindo da Secretaria da Fazenda, onde fora pechinchar verbas, Zeferino mandara Gabriel parar numa bombonière. Abasteceu-se de bombons (gostava de distribuí-los às secretárias), voltou a entrar no carro e, antes que o chofer o pusesse em marcha, apeou novamente ao vislumbrar a passagem de um carrinho de pipocas. Adorava pipocas. Gabriel, que não percebera a manobra, arrancou e só foi dar por falta do chefe na praça da República: estranhou o silêncio que reinava no banco de trás. Em pânico, chegou a recear que o tivesse despejado no meio do trânsito. Vinte minutos depois, quando conseguiu completar o percurso de volta ao largo do Arouche, encontrou-o na calçada, comendo pipoca e com o rosto vincado pela irritação.

No entanto, pequenos percalços dessa natureza – e havia-os aos montes na universidade nascente – não se comparavam à resistência que começava a enfrentar no governo desde a posse do governador Abreu Sodré, em janeiro de 1967. Findo o mandato-tampão de Laudo Natel, era notória a pouca simpatia de Sodré por Zeferino, de quem se dizia que fora ademarista com Adhemar, janista com Jânio e janguista com Jango. Além do que tinha a mania de cercar-se de gente da esquerda. Essa má fama em alguns círculos do poder preocupava Zeferino. E Sodré já se preparava para organizar a Operação Bandeirantes, a famigerada OBAN, um dos esteios da caça aos comunistas em São Paulo. As dificuldades aumentavam na burocracia do Estado e, não fosse a presença do secretário Dilson Funaro na Fazenda, as torneiras do Tesouro já teriam secado para ele. Era preciso demover a ojeriza do governador acenando-lhe com o bom nome e o capital político da universidade. Mas também valiam rapapés para conquistar sua simpatia, como na vez em que ordenou a seu “coordenador editorial” que conseguisse no Palácio todos os discursos escritos ou lidos pelo governador. Queria fazer uma surpresa ao chefe de estado:

— Vamos enfeixá-los em livro.

Físicos do grupo da cooperação Brasil-Japão em raios cósmicos no porão do Colégio Bento Quirino, em 1969O livro não chegou a ser produzido, mas o “bom nome” da universidade podia conseguir-se com fatos científicos e notícias na imprensa. Para uma instituição que não tinha sequer onde abrigar seus pesquisadores, a Unicamp era generosamente noticiada. Sempre que sentia cheiro de manchete em alguma proeza de seus pesquisadores, o próprio Zeferino apanhava o telefone e informava os jornais. Tinha desafetos nas redações, mas também contava com interlocutores cheios de boa vontade. E estava sempre disposto a gastar horas com jornalistas, fossem da imprensa grande ou de qualquer pasquim do interior, desde que pudesse discorrer livremente sobre seus planos. Gostava de marcar o fator de diferença que julgava existir entre seu projeto de universidade e as instituições já constituídas no país.

— O Brasil não tem universidade na acepção do termo, disse a O Globo em março de 1967, mas uma multidão de colônias culturais em que cada faculdade é um agregado de cátedras independentes e autônomas que se desconhecem umas às outras mesmo quando tratam de assuntos idênticos.

Esse discurso impressionava e reivindicava um caráter fundador que poucos tinham coragem de contestar. O noticiário que emanava de Campinas dava ao campus em construção um ar de nova Canaã no acanhado sistema universitário brasileiro. Mal pousou na rua Culto à Ciência, Lattes revelou seus novos estudos da matéria através da pesquisa com raios cósmicos. A convite de Zeferino, o agrônomo André Tosello encarregou-se de estruturar a primeira escola superior de engenharia de alimentos do hemisfério sul, uma das seis modalidades de engenharia que a Unicamp teria mais tarde. Eram novidades que apalermavam até editores experientes, desacostumados com o fulgor da nomenclatura científica.

Os projetos de intercâmbio eram freqüentemente acompanhados de generosas verbas vindas do exterior ou mesmo do governo, uma demonstração do poder de fogo dos pesquisadores trazidos por Zeferino. O financiamento oficial, que raramente ultrapassava a escala de algumas dezenas de milhares de dólares, alcançou o patamar de dezenas de milhões com a entrada em cena de captadores como Cerqueira Leite e Nelson de Jesus Parada, fruto de uma persistente catequese junto às agências de fomento. Ao mesmo tempo, providenciou-se a assinatura de 300 revistas científicas internacionais, as melhores das áreas de física, química, biologia, medicina, engenharias e matemática, sem o que era impossível manter qualquer pesquisa avançada minimamente em dia com seu estágio nos países centrais. Equipamentos de pesquisa foram importados dos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra.

No começo de 1968 já havia boas condições para a produção de ciência na Unicamp, mesmo sem existir ainda espaço adequado para isso. Teses começaram a ser elaboradas e artigos científicos eram eventualmente estampados nas revistas mais prestigiosas, com grande alarido de Zeferino a cada edição carimbada com o nome de algum de seus pupilos.

A chegada do primeiro computador, um IBM-1130, provocou uma concorrida conferência de imprensa devidamente aproveitada pelo reitor para divulgar com ar de mistério uma outra novidade: a instalação na Unicamp de um curso de computação, o primeiro do país. Semanas antes, Murillo Marques abordara Zeferino sobre o assunto:

— Temos de sair na frente.

— Ciência da Computação? Que negócio é esse?

Murillo, sucinto:

— É simplesmente o futuro, reitor.

E descreveu-lhe por alto o que viria a ser o mundo das décadas finais do século 20 conforme os prognósticos de gente como Hermann Kahn e Alvin Toffler. Zeferino, fascinado, apanhou a idéia no ar:

— Tem uma semana para me apresentar o projeto. Quero esse curso aprovado na próxima reunião do Conselho Estadual de Educação.

Nem todos levaram a notícia a sério. Parecia uma nova bateria de fogos de artifício armada pela alma publicista de Zeferino. Entre os matemáticos da USP, houve quem risse. O professor Carlos Alberto Barbosa Dantas, por exemplo, advertiu Murillo:

— Vocês são malucos. Não tem cabimento um curso desses. Não existe mercado no Brasil.

Entretanto o curso foi instalado e no vestibular de 1969 sua procura só foi menor que o de Medicina, historicamente imbatível nos exames de acesso ao ensino superior no Brasil. Para estruturar o curso e inteirar-se do estado-da-arte da novíssima área de informática, Murillo passou dois meses na Universidade de Chicago. Quando voltou, teve uma surpresa desagradável. Sua menina dos olhos, o computador IBM que ele havia conseguido a duras penas, fora parar nos domínios do general Valverde, a Faculdade de Engenharia. Questionado a respeito, Zeferino justificou-se:

— Valverde disse que o 1130 é equipamento de segurança nacional.

— Pode até ser, respondeu Murillo, mas na Matemática ele estaria a serviço de toda a universidade, e não apenas do general Valverde.

Apesar do coração de Zeferino pender para Murillo, o computador só voltaria a suas mãos quatro anos mais tarde, quando as relações entre o reitor e general tinham se deteriorado ao ponto da ruptura.

No recém-instalado Conselho Diretor, instância de deliberação política da universidade, os primeiros embates começaram a aflorar. Logo ficou claro que havia diferenças conceituais importantes entre seus membros. Um dos pontos de conflito era o propósito de Murillo de implantar as matrículas por disciplina e fazer a distribuição dos cursos por módulos semestrais – em vez de anuais – conforme a tradição norte-americana. A Unicamp seria a primeira universidade a fazê-lo no país. A proposta seguiu para votação na Câmara Curricular, da qual Murillo era presidente, e gerou a primeira crise institucional envolvendo o grupo de professores pioneiros. Dos dez membros da câmara, cinco se abstiveram, dois votaram contra e dois a favor, aqui incluído o voto do próprio Murillo. Decepcionado, Murillo usou o voto-de-minerva contra si mesmo, votando em desfavor da proposta. Justificou-se: não era homem de ganhar escrutínio votando duas vezes quando se tratava de definir a política didática da universidade. E apresentou sua renúncia à presidência do órgão:

— Não admito que, entre dez membros, cinco se abstenham.

— Reúna a Câmara que vou lá, disse Zeferino.

— O senhor convoque. Eu não sou mais presidente.

— Está bem, eu convoco. E garanto que todo mundo vai votar.

Pondo em prática seu método preferido sempre que se tratava de obter maioria em votações complicadas, Zeferino chamou cada um dos membros da Câmara e passou-lhes um sabão em regra. Duas semanas depois a proposta foi aprovada. Em seguida convenceu Murillo a reassumir o posto e implantar o projeto.

Mas o ano de 1967 não terminaria sem uma nova turbulência. Em novembro, todos os 127 estudantes do curso de Ciências Exatas abrigado provisoriamente no prédio da rua Culto à Ciência – o outro grupamento eram os alunos de Medicina que ficavam no prédio da Maternidade de Campinas, a alguns quarteirões de distância – entraram em greve. O pomo da discórdia eram as regras do vestibular unificado adotado pela universidade. Como o exame passaria a ser o mesmo para os dois cursos, isto significava que os vestibulandos de Ciências Exatas teriam que se submeter à mesma prova de biologia aplicada aos candidatos de Medicina. Comandados pelo aluno Luiz Antonio Teixeira Vasconcelos, presidente do Centro Acadêmico de Ciências Exatas, os grevistas conseguiram uma liminar que bloqueava a realização do vestibular. Depois de quarenta dias sem aulas, Zeferino finalmente conseguiu desinflar essa primeira rebelião discente. A história que correu, não confirmada, era de que na véspera do exame, com um helicóptero emprestado, ele pousou ruidosamente nos jardins residenciais de um juiz-desembargador, onde se dava um churrasco, e ali mesmo obteve a cassação da liminar. Consta que teria ficado para o churrasco. (E.G.)

Continua na próxima edição.


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