| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 317 - 27 de março a 2 de abril de 2006
Leia nesta edição
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Indústria de carne
Cartas
Gripe aviária
Seqüencia da malária
Instituto de Biologia
Mandarim 12 e 13
Petróleo da Bacia de Santos
Ginástica na Febem
Prótese e maca de baixo custo
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Maurício Knobel
Datação geológica
 

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Ao completar 84 anos, psicanalista relembra a vida e os
encontros com Che Guevara, Evita Perón e Paulo VI

Maurício Knobel puxa
o fio da memória

CLAYTON NEVY

Fotos Antoninho Perri/Arquivo pessoalA casa toda é uma enorme biblioteca. No escritório, nas salas, no corredor que dá para a cozinha, há estantes espalhadas por toda parte. E a cada vez que pega um livro, uma foto ou uma carta antiga para mostrar ao visitante, é como se sacasse da memória um episódio curioso, um caso importante, lembranças que marcaram sua vida. Capricha nos detalhes, alterna as expressões faciais, gesticula. Às vezes fala vertiginosamente; em outras se aquieta num quase murmúrio, pensativo. O tom de voz – ora enfático, quase severo, ora descontraído, beirando o deboche – imprime uma moldura testemunhal a tudo o que diz. Vai compondo cenas, desfiando emoções, descrevendo personagens que cruzaram sua trajetória desde os tempos de estudante de medicina em Buenos Aires. É quase possível tocá-los. Che Guevara, Evita Perón, o Papa Paulo VI, nada lhe escapa. Maurício Knobel tem um acervo de histórias tão extraordinário quanto o de livros, fotos e cartas que preenchem o seu mundo. E quer contá-las.

Psiquiatra continua atendendo pacientes

No escritório, que também serve de consultório, ele se senta atrás da mesa de madeira maciça, estilo rústico, e desabotoa um sorriso. “Fiquem à vontade”. Às suas costas, a estante bem organizada. Basta esticar o braço e terá à mão o livro que procura, pelo menos os de uso mais freqüente. Nela, além de compêndios de psiquiatria e alguns adornos, destaca-se o porta-retratos com Sigmund Freud, cujo olhar agudo parece anotar tudo o que se passa ali dentro. As dimensões reduzidas conferem um clima aconchegante ao lugar. A manhã está clara e quente na segunda-feira de outono, um dia após o anfitrião ter completado 84 anos. Além de outras duas cadeiras à frente da mesa, um pequeno sofá – ou seria um divã?

O aluno Che

À primeira pergunta, Knobel recua à Argentina dos anos quarenta. Ele está com vinte e poucos anos, acaba de iniciar a carreira docente na Universidade de Buenos Aires como assistente de ensino de anatomia. Entre seus alunos, dois se destacam pelo talento e seriedade. Um deles, filho do maior clínico argentino da época, mais tarde desistiria da medicina e se tornaria padre. O outro, primeiro dos cinco filhos de uma família de origem aristocrática, trocaria a carreira médica pela luta armada em Cuba. Nas aulas de anatomia, ele atendia pelo nome de Ernesto Guevara de La Serna. Ao entrar para a história, foi imortalizado como Che Guevara.

Knobel ainda se espanta com a mudança de rota do ex-aluno. “Ele não revelava nenhuma inclinação para a política”. E arremata, com seu sotaque castelhano, sem o trema: “Estava tranquilinho, tranquilinho”. Fato é que o professor acabou indo parar no Museu de Che Guevara, em Córdoba, e não como visitante, mas como parte do acervo. Certa vez, ele posou para uma fotografia junto com os alunos, entre os quais Ernesto. “Depois que ele ficou famoso, levaram a fotografia para o museu e fui junto”.

Ao contrário de Che, Maurício Knobel seguiria firme na carreira médica, acumulando fama e prestígio como um dos mais importantes psiquiatras da América Latina, autor de obras que se tornariam referência, como A Adolescência Normal, e de métodos terapêuticos que mudariam a forma de tratar os pacientes, como A Psicoterapia Breve. A vocação para a medicina, porém, não impediu que também se engajasse nos movimentos de esquerda. “Fui preso várias vezes. Numa delas, não havia lugar para todos na delegacia e fomos colocados na estrebaria. Ficamos lá dois dias”. Depois de um silêncio prolongado, no qual parece reviver todo o episódio, murmura: “Foi uma experiência desagradável”.

A lida com a morte

Knobel pagaria um preço alto por seu engajamento. “Eu era muito ma­gro e fraco, acabei pegando tuberculose quando estava no quarto ano de medicina”. Tuberculose, quando ainda não havia antibióticos eficientes, era quase sentença de morte. Ele ouviu o diagnóstico e partiu para um sanatório em Cosquim, espécie de Campos do Jordão argentina. “Foi ali que aprendi a lidar com a morte”. No começo, a experiência foi angustiante. “A gente jogava baralho à noi­te. Quando alguém não aparecia, já sabíamos o que tinha acontecido”. Pior era conviver com a idéia de ser o próximo a faltar na mesa de jogo. “O que garantiu a minha sanidade foi a leitura”. Passava o tempo lendo A Montanha Mágica, em que Tho­mas Mann narra justamente a experiência de um jovem tuberculoso no sanatório. “Era o livro de cabeceira de todos nós”. Knobel perderia metade de um pulmão, mas venceria a doença.

Um dia, quando já havia re­tor­nado do “exílio”, concluído a graduação e assumido como professor na UBA, o catedrático em anatomia Pe­dro Belou o chamou para uma conversa reservada. O novato estremeceu, pois era incomum que um professor daquele nível se ocupasse com recém-formados. Preparado para o pior, ouviu o inesperado: “Estou me aposentando e queria lhe deixar um presente”. E entregou-lhe um livro. Título: Sobre a Psicanálise. Autor: Sig­mund Freud. Na contracapa, a dedicatória de Belou: “A quem conhece tão bem o homem por fora, para que o conheça melhor por dentro”.

Maurício Knobel passa a mão pe­los cabelos brancos. “Aquele episódio definiu toda a minha trajetória. Encontrei-me na psiquiatria”. Em pouco tempo, concluiria a pós-graduação e se tornaria membro da So­ciedade Psicanalítica da Argentina. Era início dos anos 1950 e seu nome começava a circular. Consultas, aulas, pesquisas, palestras. Em uma das palestras, misturada à platéia estava Clara, estudante de nutrição. Em breve estariam namorando. E em breve o jovem psiquiatra descobriria que Clara era descendente di­reta de ninguém menos que Sig­mund Freud. Filha de um sobrinho-neto do pai da psicanálise. Já casado com a psiquiatria, Knobel também se casaria com Clara, e até hoje permanece fiel às duas.

Omelete esquizofrênica

Clara tournou-se aluna de Knobel e passou a acompanhá-lo nas an­danças, virando co-protagonista de casos folclóricos. Como da vez em que um paciente esquizofrênico cismou em servir uma omelete ao casal. O episódio passaria despercebido se o cozinheiro não utilizasse du­as dúzias de ovos para o repasto. Durante o preparo, fez como manda o figurino: arremessou a omelete para cima, esperando que voltasse para a frigideira. A mistura espatifou-se no chão. Mantendo ares de grande chef, o paciente apanhou mais duas dúzias de ovos, serviu a “omelete esquizofrênica” e ficou plantado ao lado da mesa. “Comemos tudo. Não dava para contrariar”.

Outra personagem ilustre a cruzar a trajetória de Knobel foi Evita Pe­rón. Partiu dela a ordem para con­tratá-lo como médico plantonista no Hospital Belchior Romero. Os dois se encontraram uma única vez, na sede do governo, onde Evita reinava ainda como primeira dama. Foi um encontro de dez minutos, mas suficiente para impressionar o jovem médico. “Era uma mulher que trabalhava adoidado, atendia rápido e resolvia tudo, só que à sua ma­neira e ninguém podia discordar. Saí dali nomeado”.

Um dia, seu analista Angel Garma telefonou dizendo que havia uma vaga de residente nos Estados Unidos. “Você topa?”. Knobel, rápido: “Topo”. Aos 34 anos, embarcava pa­ra um país desconhecido com a mu­lher Clara e o primogênito Hernan­do, de apenas 1 ano. Mergulhou nos estudos e trabalhou duro. Fez segunda residência na Greater Kansas City Mental Foundation, Missouri, e obteve o título de especialista pela Associação Americana de Clínicas Psiquiátricas para Crianças. Quatro anos depois, em 1960, já com o segundo filho no colo, Knobel voltaria a Buenos Aires com planos de des­lanchar na carreira.

No começo, tudo parecia favorável. Knobel reingressa na UBA como professor adjunto, escreve artigos e livros. Funda o Instituto da Família, agrupando psicólogos e psiquiatras para atender de graça a população carente. Os anos 1970 chegam e Kno­bel não pára de produzir. Apro­fun­da-se em seu tema preferido, a adolescência, que o leva a viajar pelo mundo para cursos e congressos. 

O ateu e o Papa

Em 1975, Knobel, apesar de ateu convicto, viveria por alguns minutos da intimidade do Papa Paulo VI. Calhou que um dos participantes de um congresso em Roma era o médico do Vaticano, o que facilitou as coisas. “Como explica que essa mulher seja a presidente da Argentina?”, perguntou-lhe o Papa, referindo-se a Evita içada ao posto máximo da nação. “Olha, se sua santidade que é o Papa não sabe, como é que eu, que sou apenas um psiquiatra, vou saber?”. A resposta provocou risos em Paulo VI, que ao final o condecorou com uma Medalha do Ano Santo. A medalha está entre os adornos em seu escritório.

As bênçãos do Papa, porém, não livrariam Knobel do que estava por vir. Com a renúncia de Evita por pres­são dos militares, viriam aos anos da Guerra Suja (1976-1983). Opositores foram torturados e milhares desapareceram. Knobel tornou-se alvo juntamente com outros professores e estudantes. Depois de várias vezes detido, decidiu mandar os dois filhos mais velhos para a Espanha, onde contava com amigos. E, no au­ge da perseguição, recebeu a carta do interventor na UBA, um tenente de fragata odontólogo: “Comunico ao senhor que a partir desta data deixa de ser professor por suas atividades subversivas”. Com os outros dois filhos ainda pequenos e morando numa Buenos Aires sacudida por embates políticos, Knobel dava como certo o aprofundamento da crise pessoal. 

Ultimato de Zeferino

Naquele exato momento, uma ou­tra carta, desta vez do Brasil, chegaria para tirar o professor do olho do furacão. Era um convite para visitar a Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, que precisava de alguém para organizar o Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria. “A carta era assinada por um tal de Zeferino Vaz”. Knobel vo­ou para Campinas em julho de 1976 e a conversa no gabinete do reitor durou duas horas. “O que me marcou é que Zeferino tinha um bom conhecimento de psicanálise. Parecia até que ele havia feito psicanálise”. No final, Zeferino arrematou: “Venha trabalhar no Brasil, os brasileiros gostam muito dos argentinos”. O psiquiatra ainda ri, mas a retórica funcionou. “Voltei à Argentina inclinado a aceitar o convite”. Em outubro, o reitor dava um ultimato por telegrama: se não assumisse até o final do mês, perderia o cargo. Knobel não sabia, mas seu salário já vinha sendo depositado no Banespa desde julho.

Mesmo que tenha trocado uma ditadura por outra, Knobel não se arrepende. “Era um desafio e eu es­tava muito motivado”. Aos poucos, foi dando forma ao departamento. Estruturou equipes de ensino, enfermarias, abriu caminho para a pesquisa e, em 1985, naturalizou-se brasileiro. Por 16 anos lecionou na FCM, onde orientou centenas de teses, só parando em 1992, quando a lei impôs a aposentadoria por idade. Em 1993 recebeu o título de professor emérito. Aos 84 anos, não deixou de fazer o que mais gosta, mantendo o atendimento a pacientes. Mesmo porque, em sua opinião, a psiquiatria nunca deixará de existir. “O mun­do sempre foi meio louco”, conclui Knobel, que gosta de histórias, algumas vezes de ouvi-las, outras de contá-las.

  

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