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Jornal da Unicamp - Novembro de 2000

Páginas 12, 13, 14 e 15

HONRARIA

Padres nossos

Manuel Alves Filho

Dois missionários da cidadania visitaram a Unicamp no final de outubro. Conhecidos pela luta incansável que travam em defesa dos direitos humanos, ambos vieram receber o título de Doutor Honoris Causa, a maior honraria concedida pela Universidade. O cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, e o bispo emérito de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, não se cruzaram. Mas deixaram mensagens semelhantes. Disseram, cada um a seu modo, que a causa que abraçaram não está ganha. Segundo eles, ainda há muito a fazer.

PEDRO

O formalismo que normalmente marca a cerimônia de entrega do título de Doutor Honoris Causa cedeu lugar a uma celebração simples e emocionante numa das salas do Centro de Convenções da Unicamp, no dia 24 de outubro. O maior motivo da quebra do protocolo acadêmico foi o próprio homenageado, o bispo emérito de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, um dos símbolos da luta em defesa dos direitos humanos no Brasil.

Durante a solenidade, o religioso traduziu, na prática, o significado da palavra comunhão. Cantou, riu e refletiu com a platéia. Depois, dividiu a honraria com o seu povo e até com o rio Araguaia. A partir daquele momento, transformou todos os seguidores e simpatizantes da sua causa em doutores. "Doutores da utopia", como dom Pedro gosta de destacar.

Cerca de 300 pessoas lotaram o auditório. Estiveram presentes, além da comunidade acadêmica, políticos, religiosos, representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e membros de outras 20 organizações camponesas de nove países latino-americanos. Todos foram cumprimentar o homem que transformou o combate às injustiças sociais e a defesa da reforma agrária em missões prioritárias de vida.

O primeiro a saudar o bispo de São Félix do Araguaia foi o membro da direção estadual do MST, Paulo Albuquerque. Segundo ele, dom Pedro representa a esperança da sociedade de ver as terras que compõem os latifúndios divididas entre os trabalhadores. "É o sonho de semear a terra e gerar o fruto para alimentar o povo", disse, para em seguida entregar uma bandeira da organização ao religioso.

Ao agradecer a concessão do título Honoris Causa, dom Pedro surpreendeu a platéia. "É a primeira vez na história em que uma universidade confere o título de doutor a um rio", afirmou, fazendo referência ao Araguaia, emblema maior da região que adotou como sua há 32 anos. A citação arrancou aplausos entusiasmados.

Para não fugir ao seu compromisso com a defesa dos interesses do povo mais humilde e sofrido, o bispo aproveitou a solenidade para promover mais um protesto. Dessa vez, o alvo foi a hidrovia Tocantins-Araguaia, empreendimento considerado danoso ao meio ambiente da região. "Essa obra vai prejudicar o rio, os peixes e as populações ribeirinhas", advertiu. Um abaixo-assinado contra a construção da hidrovia circulou entre os presentes.

Momento de emoção – O momento mais emocionante ficou reservado para a aula ministrada pelo religioso, sob o tema "Na paixão pela utopia". Como não poderia deixar de ser, dom Pedro defendeu o sonho, mas ressalvou: " Devemos tentar viver, com humildade e com paixão, uma esperança crível. Não se trata de esperar sentados. A esperança não pode fundar-se em promessas eleitoreiras e nem se pode traduzir em passiva resignação religiosa. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. A esperança, disse alguém, só se justifica nos que caminham".

Pouco depois, dom Pedro voltou a citar os versos de Geraldo Vandré e propôs: "No Chile, a canção Gracias a la vida (de Violeta Parra) foi escolhida como a música do século. No Brasil, poderíamos escolher Pra não dizer que não falei de flores, pois é uma música que nos dá esperança".

Antes mesmo do encerramento, todos começaram a cantar a canção de Vandré. Enquanto os integrantes dos movimentos sociais agitavam suas bandeiras, as autoridades que compunham a mesa ao lado do bispo do Araguaia deram-se as mãos. A solenidade terminou de uma maneira bem ao gosto do homenageado: poeticamente engajada.

Um homem das práticas

Dom Pedro Casaldáliga é catalão e chegou a São Félix do Araguaia em julho de 1968, um dos períodos mais duros da história do País. Logo após se instalar no local, recebeu o primeiro sinal do que o aguardava. Quatro crianças mortas, colocadas em caixas de sapatos, foram deixadas na varanda de sua casa.

Apesar da perseguição e dos atentados dos quais foi vítima, o religioso continuou teimosa e corajosamente fiel aos seus princípios, como citou o diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) Unicamp, Paulo Miceli, autor da proposta de concessão do título de Doutor Honoris Causa.

Numa região de constantes conflitos fundiários, o bispo ajudou a fundar a Comissão Pastoral da Terra, organização que deu uma nova dimensão à questão agrária. Do Brasil, sua atuação estendeu-se para outras regiões da América Latina, sobretudo da América Central, marcada por impasses sociais semelhantes. Sobre o trabalho desenvolvido por dom Pedro Casaldáliga, o frei Lonardo Boff escreveu: "A grandeza de um homem não se mede pelas prédicas (discursos), mas pelas práticas".

PAULO

Dom Paulo recebeu o título Honoris Causa no dia 20 de outubro. A honraria foi proposta pelos alunos da Unicamp e aprovada pelo Conselho Universitário (Consu). Durante a cerimônia, o cardeal lançou mão de uma de suas mais marcantes características, a humildade, para agradecer a homenagem. "Nunca fiz coisa alguma. Foi o espírito de Deus que trabalhou dentro de mim", afirmou.

Se é como o arcebispo emérito de São Paulo diz, ele se transformou num valioso instrumento divino de combate ao arbítrio e às injustiças sociais. No período ditatorial, por exemplo, dom Paulo jamais se calou. A despeito das pressões, ele visitou presos políticos e denunciou a prática da tortura.

Superada a fase da repressão política, o cardeal não se acomodou. Continuou fiel ao seu compromisso. O motivo? É que para dom Paulo, o cidadão brasileiro ainda permanece privado de direitos fundamentais. "O direito humano menos respeitado no Brasil poderia ser chamado, de maneira geral, de cidadania. O direito do cidadão em participar de tudo o que é dele. Por exemplo: ele escolhe o vereador, mas depois acaba sua influência sobre o vereador. Não pode ser. Ele escolhe o prefeito, mas depois percebe que o prefeito cuida só dos amigos ou do partido dele. Não pode ser. Nós precisamos criar, de fato, um novo sentido para a palavra cidadania, devolvendo-lhe o respeito que ela tinha em tempos passados, em tempos de paz", analisou.

O cardeal vê no título concedido pela Unicamp um tríplice valor pessoal. Ressaltou, em primeiro lugar, que a honraria foi dada a um religioso que nunca pensou em recebê-la de uma universidade inteiramente leiga. "É o vigésimo título honoris causa que eu recebo, mas é o mais importante de todos", declarou. Em segundo lugar, prosseguiu dom Paulo, porque esta Universidade é um centro de pesquisa e ensino respeitado em todo o País. "Quando quisemos identificar as ossadas de presos políticos desaparecidos, a primeira idéia que nos veio foi a Unicamp", exemplificou.

Por último, o arcebispo emérito de São Paulo destacou que o título também serve de incentivo ao trabalho desenvolvido pela Igreja Católica. "A Igreja está sendo atacada por causa de sua defesa dos direitos humanos. Estão dizendo que ela defende bandidos. Não é verdade. A Igreja defende toda a dignidade do indivíduo, mas defende em primeiro lugar as vítimas e as pessoas que lutam pelo bem, verdade, justiça, solidariedade e paz no mundo", sustentou.

O papel da instituição, na opinião do cardeal, é orientar a consciência da sociedade e chamar sua atenção quando são cometidas faltas constantes e graves, como acontece atualmente nas cadeias. "Nós denunciamos abertamente, pelas capelanias, a ocorrência de torturas nas prisões. Uma missão das Nações Unidas examinou a questão e constatou que isso era verdade. Precisamos estar atentos, pois a tortura é a maior ignomínia da humanidade", disse.

Para o reitor da Unicamp, Hermano Tavares, que presidiu a cerimônia de entrega do título a dom Paulo, o cardeal é um patrimônio da história do País. "Quero dar o testemunho da minha geração sobre as medidas sérias e firmes que dom Paulo tomou todas as vezes que os direitos humanos foram violados", afirmou.

Eleições - Quando o assunto é política, dom Paulo é direto. Ele afirma que a população ainda precisa amadurecer. "A pessoa tem que votar pensando no bem público e não por causa de um benefício que ela própria ou seus amigos recebem", disse. O cardeal acrescentou que a Igreja acompanhou o processo eleitoral com muita atenção, recomendando aos fiéis que votassem segundo suas consciências. "Temos que lutar para que a cidadania seja o cerne de todo o nosso patriotismo".

Uma figura superlativa

Dom Paulo Evaristo Arns é uma figura superlativa. Nascido num lugarejo de Criciúma (SC) em 1921, ele ingressou na ordem franciscana em 39. Trabalhava como vigário nos subúrbios de Petrópolis (RJ), quando foi indicado, em 66, bispo auxiliar de dom Agnelo Rossi, cardeal nascido em Campinas. Quatro anos depois, acabou nomeado arcebispo de São Paulo.

Assim que assumiu a arquidiocese, dom Paulo incrementou a participação dos leigos nas atividades desenvolvidas pela Igreja e assumiu de forma destemida a defesa dos direitos humanos, constantemente violados no período do governo militar.

Em 75, o cardeal definiu, com a participação dos bispos auxiliares, as prioridades das regiões episcopais. Assim, ficou estabelecido que cada setor deveria assumir e articular as quatro prioridades escolhidas pelo povo: comunidades eclesiais de base, direitos humanos e marginalizados, mundo do trabalho e pastoral da periferia.

Dom Paulo formou-se em Patrística e Línguas Clássicas pela Universidade de Sorbonne. É autor de 48 livros e recebeu aproximadamente 100 títulos nacionais e internacionais, a maioria como reconhecimento por sua luta em defesa dos direitos humanos.

'Tocar em dom Pedro é tocar no papa'

O compromisso visceral de dom Paulo Evaristo Arns e de dom Pedro Casaldáliga com a defesa dos direitos humanos aproximou os dois religiosos. Um episódio ocorrido em pleno período ditatorial, relembrado pelo arcebispo emérito de São Paulo, comprova a força dessa ligação.

O então general Golbery do Couto e Silva, considerado o ideólogo do golpe militar, de vez em quando convidava dom Paulo para almoçar em Brasília. Certo dia, em meio às informações de que o governo queria expulsar dom Pedro do Brasil, o militar perguntou ao cardeal se este era amigo do bispo de São Félix do Araguaia. Ouviu uma resposta contundente: "Ele é mais que um irmão".

Dom Paulo avisou o papa Paulo VI sobre as perseguições sofridas pelo amigo. "Ele me disse que, se tocassem em dom Pedro, estariam tocando no próprio papa. Paulo VI afirmou ainda que seria uma ação contra toda a Igreja Católica e contra todo o mundo sensato", revelou o cardeal. Graças a esta intervenção, o bispo do Araguaia não foi extraditado.

Algum tempo depois, porém, o governo militar voltou a cogitar a expulsão de dom Pedro. Em novo encontro com dom Paulo, Golbery confidenciou que existia um decreto na mesa do então presidente Ernesto Geisel. O documento só não havia sido assinado porque Geisel tinha dúvidas sobre a correção da medida.

Golbery solicitou a dom Paulo a indicação de alguém que pudesse colocá-lo em contato com o bispo. Foi-lhe sugerido um intermediário. "Naquele momento, o general também evitou que dom Pedro fosse expulso do País", contou o cardeal, que classifica o amigo como uma pessoa corajosa, bondosa e sacrificada. "É um homem que vive com o mínimo possível, para dar o máximo possível aos outros".

Honoris Causa para o rio Araguaia

Dom Pedro Casaldáliga considerou a homenagem feita pela Unicamp como um incentivo à luta contra as injustiças sociais, principalmente na região de São Félix do Araguaia. Afirmou que o título Honoris Causa não foi entregue a ele, mas sim ao rio Araguaia. "Com tudo o que o rio significa para a ecologia, para o mundo indígena, para as lutas camponesas e para a esperança. É um título coletivo e militante", declarou.

Para o religioso, a questão da terra continua sendo um problema central para o País. "A campanha mais urgente que o povo brasileiro deve assumir é a campanha pela reforma agrária", afirmou, acrescentando que a iniciativa está revestida de uma "utopia realíssima, pois ela caminha em direção ao sonho do povo por terra, educação e saúde".

Quanto à construção da hidrovia Araguaia-Tocantins, dom Pedro disse que a obra, apesar de trazer malefícios para a natureza e para a comunidade local, é tratada como uma prioridade nacional pelo governo. "Esperamos que a solidariedade impeça essa loucura", disse.

O bispo de São Félix também fez questão de falar de dom Paulo Evaristo Arns, que quatro dias antes também havia recebido o título de Doutor Honoris Causa da Unicamp. "Dom Paulo é figura máxima do episcopado, neste século, na América Latina", definiu, lembrando que o amigo foi um dos responsáveis pela sua permanência no Brasil.

BiografiaDurante a solenidade de entrega do título foi lançada a biografia de dom Pedro Casaldáliga em português. O livro, intitulado "Descalço na terra vermelha", foi escrito originalmente em catalão pelo jornalista Francesc Escribano. A obra está sendo publicada pela Editora da Unicamp.

D. Paulo entrega obras à Unicamp

A concessão do título de Doutor Honoris Causa a dom Paulo Evaristo Arns consolidou uma relação antiga entre o religioso e a Unicamp. Os documentos usados para produzir o livro "Brasil, Nunca Mais", que revela os horrores do período ditatorial, foram doados em 1985 pelo arcebispo emérito de São Paulo à Universidade. Atualmente, compõem o acervo do Arquivo Edgard Leuenroth.

No último dia 20 de outubro, dom Paulo presenteou a instituição com duas novas obras de inquestionável valor histórico. A primeira é um relatório produzido pelo pastor presbiteriano Jaime Wright. O documento conta como foram obtidas as provas do uso da tortura pelo regime militar. Conforme dom Paulo, o trabalho foi minucioso. Durante a noite, um grupo orientado pelo próprio Wright, pela jornalista inglesa Jeane Rocha e pelo advogado Luiz Eduardo Greenhalgh copiava os processos abertos pelo governo contra os presos políticos. De dia, os papéis eram levados até um local seguro. Para evitar que os militares descobrissem o esconderijo, a documentação foi trocada de local por pelo menos cinco vezes.

"Um dia, invadiram o Arquivo Arquidiocesano, que fica no Ipiranga. Reviraram tudo, mas não destruíram os papéis", recordou o cardeal. Mais tarde, dom Paulo decidiu procurar um lugar onde a coleção pudesse ser guardada com segurança e, ao mesmo tempo, ficasse à disposição da sociedade para consulta. "Procuramos um amigo corajoso que protegesse os documentos. A pessoa mais corajosa que encontramos estava encarnada na Unicamp. No mesmo dia, transferimos todo o acervo para cá", contou o arcebispo emérito.

Seu segundo presente à Universidade é o livro "Desaparecidos em la Argentina". Produzido pela mesma equipe, ele traz a relação de aproximadamente 8 mil desaparecidos políticos daquele país. De acordo com dom Paulo, o livro foi entregue somente ao papa, em 1983. "Nós esperamos a volta da Argentina ao regime democrático para tornar a obra pública", explicou. Conforme o levantamento, 23% dos desaparecidos eram estudantes. O restante tinha entre 19 e 30 anos. O livro foi editado posteriormente em português, espanhol e inglês. Nos últimos 17 anos, nenhuma das informações contidas na obra foi contestada.

AULA MAGNA

Passionis Causa

A Universidade Estadual de Campinas, pelo seu Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e com o apadrinhamento do professor Paulo Miceli, me outorga o título de Doutor Honoris Causa. Como a própria denominação indica trata-se de um título "gratuito"..., que agradeço de coração e repasso à multidão de povo e colaboradores, que eu por vários motivos represento.

Um velho "cura de aldéia", catalão e poeta também, recebeu não há muito um titulo semelhante e ele o traduziu como sendo "laboris causa". No meu caso eu devo traduzi-lo como "passionis causa", deixando de lado o honor e o labor. Depois explico de que "paixão" se trata.

Antes, de entrada, devo recordar agradecido e até emocionado a imensa colaboração que eu e a nossa Igreja de São Félix do Araguaia e todo o povo de nossa região temos recebido de Campinas, desta mesma Universidade, da Igreja local, daqueles primeiros generosos voluntários e voluntárias, que saíram de Campinas e deram no Araguaia sua juventude e onde até arriscaram sua vida. Neste ano, como que simbolizando-os a todos, aqui, em Campinas, fez sua passagem, bem pascal por certo, o nosso Moura, Antônio Carlos Moura Ferreira, jornalista e escritor, um caso extremo de solidariedade, habitual e universal. Já vulnerado mortalmente, ainda fez questão de traduzir ao português: "Descalço por uma terra vermelha".

A paixão que poderia mais ou menos justificar o título que a Universidade me concede é "A Paixão pela Utopia". Uma paixão escandalosamente desatualizada, nesta hora de pragmatismos, de produtividade, de mercantilismo total, de pós-modernidade escarmentada. Mas que é, com outra palavra, a paixão da Esperança; e, em cristão, a paixão pelo Reino, que é a paixão de Deus e de seu Cristo. Uma paixão que, em primeira e última instâncias, coincide com a melhor paixão da própria Humanidade, quando ela se quer plenamente humana, autenticamente viva e definitivamente feliz.

A utopia, então, não como simplesmente utopia, o não lugar, mesmo que não esta "topia" que está aí, este mau "lugar" que nos impõem, este pensamento único, poder único, hora fatalmente única e até final da História!

Mas a eu-tupia, um lugar-outros ("outros 500"), um bom lugar.

Não este lugar-hora da exclusão da maioria e de privilégio narcisista da minoria. Antes, um lugar "onde quepan todos", como pedem os zapatistas maias: para a inteira família humana. Não a globalização neoliberal, homicida, suicida, ecocida; mas a mundialização da solidariedade para a construção (processual certamente e até dialética) daquela igualdade na dignidade, nos direitos e nas oportunidades das pessoas e dos povos, que farão a Humanidade una, ainda que plural com suas alteridades.

É utopia mesmo. Confesso e proclamo. O Evangelho é a utopia maior e entretanto nos é proposta pela sensatíssima sabedoria do Deus que é Amor e Vida. Por Ele, e apesar de nós com freqüência, somos desafio, futuro, esperança. A partir, claro está do frágil presente do dia a dia "Yo soy el día de hoy"; respondendo, com corresponsabilidade pessoal e histórica, à cotidiana tarefa.

Quanto mais dogmaticamente e mais prepotentemente se tem decretado o final da História, mais vêm proliferando as vozes, os gestos, as propostas de contestação e abertura, de alternatividade e sonho. Contra o caminho único e fechado! A igreja, por ocasião do jubileu cristão bimilenar. A VII Assembléia de Conferência Mundial das Religiões pela Paz, realizada em Amman, Jordânia, com o tema: "Ação global para vivermos juntos". A proclamação dos "outros 500", nos 500 tão contraditórios do nosso Brasil. Encontros indígenas, afroamericanos, de mulheres, do movimento popular. Propostas utópicas de sociólogos e teólogos: "Rehabitación crítica de la Utopia a contratiempo" (Juan José Tamayo), "Direitos Humanos ou direitos dos pobres" (Félix Wilfred), "La igualdad una meta pendiente"(Antoni Comín Oliveires), "A segunda abolição" (Cristovam Buarque), "500 anos: início de uma caminhada" (Análise de conjuntura, da Comissão Brasileira Justiça e Paz e do Ibrades, na última Assembléia Geral da CNBB, realizada precisamente no polêmico Porto Seguro...). E uma longa ladainha em revistas e congressos e manifestações massivas. Das marchas do MST ao Davos alternativo.

A revista internacional "Concilium" dedicou seu último número do ano 99 a repensar a história passada e presente, dentro do marco cristão do jubileu, sob o título geral "2000: Realidade e Esperança". Deste número de "Concilium" vou respigar o artigo do grande moralista Marciano Vidal, intitulado "A Ética como sinal de Esperança", com o subtítulo deliciosamente a-científico "A bondade do coração da gente simples".

Vidal adverte inicialmente que o nosso tempo nem é melhor nem pior que outros tempos. Poderíamos advertir, porém, que em todo o caso é o tempo "nosso". E reduz Vidal a três os hábitos da bondade da gente simples "sobre os quais se apóiam as esperanças éticas da Humanidade voltadas para o futuro":

- "O olhar puro" para ver a realidade sem preconceitos nem interesses.
- A "empatia compassiva" para solidarizar-se com os fracos.
- A "simplicidade de vida" para citar valores alternativos à complexidade atual.

Frente ao obscurecimento do sentido do bem, Marciano Vidal apela nada menos que ao olho-lâmpada do Sermão da Montanha, carta magna da sociedade divinamente alternativa que Jesus propunha. E filosofa Vidal, na linha de Zubiri e do mártir Ellacuria, acerca de como assumir a realidade corresponsavelmente, segundo os três momentos que esses mestres fixaram: 1) Levar em conta a realidade. 2) Trabalhar com a realidade. 3) Encarregar-se dela para transformá-la. O "princípio realidade", então, seria o chão honesto de uma utopia/esperança dignamente humana. A realidade, sempre!

Para a "empatia compassiva" recorda Vidal uma afirmação pioneira do Concílio Vaticano II: "Entre os sinais do nosso tempo, deve ser mencionado especialmente o crescente e inelutável sentido de solidariedade de todos os povos". Otimista, a afirmação do Concílio, mas bastante verdadeira, e cada dia mais, até por necessidade. A solidariedade não é apenas "o novo nome da paz", é também o nome da sobrevivência universal. Uma utopia verdadeiramente humana comporta necessariamente a humana universal sim-patia, a capacidade e a vontade explícita de compartir o espaço vital com o próximo, de acolher na "oikia" comum, de partilhar a terra e a água, o pão e a ciência, o tempo e o sonho, a vida!

"A simplicidade da vida" é evidentemente uma contestação radical à competitividade do lucro, à arrogância do poder, à violência do sucesso, ao consumismo besta e desenfreado. "Bem-aventurados os pobres de coração", aqueles/aquelas que sabem ser livres confiando no Pai que cuida dos lírios e dos pássaros; que vivem o dia de hoje também, sob o olhar e na palma da mão de Deus...

A utopia de que a gente fala e que todos vocês, companheiras e companheiros de caminhada, compartem comigo e com milhões que nos precederam, dando até o sangue, e com milhões que hoje vivem e lutam e marcham e cantam, essa utopia está em construção, evidentemente - operários da utopia em construção somos; a proclamamos e a fazemos; é dom de Deus e conquista nossa. Nós, como nos pede o texto da Nova Aliança definitiva, queremos "dar razão de nossa esperança", anunciamos e tentamos viver, com humildade e com paixão, uma esperança crível. Não se trata de "esperar sentados"; nem aceitaríamos um fazer esperar cínico. A esperança não pode fundar-se em promessas eleitoreiras, nem se pode traduzir em passiva resignação religiosa. "Contra toda esperança" esperamos talvez, mas andando. "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer". "A esperança – disse alguém – só se justifica nos que caminham". Quem já estiver farto com os mc’donalds neoliberais ou arriar as bandeiras com um conformismo derrotista, não tem por que esperar...

****

Como por uma universidade estamos aqui reunidos, permitam-me um excurso sobre Utopia na Universidade, precisamente. Porque para "outros 500", para outro Brasil, para outro mundo, necessitamos uma política outra em todas as esferas da vida social e também, evidentemente, outra Universidade.

Uma universidade que seja forja de valores e compromissos e não credencial de privilégios e subserviência de interesses; "clube de poetas" vivos e de intelectuais orgânicos; vanguarda até, mas a serviço. Rompendo o círculo vicioso em que securlamente a Universidade – no Brasil, no Mundo – vem sendo atrapada com demasiada freqüência. Uma universidade não para o sistema, mas para a vida. Não para a oligarquia, mas para o povo. Inculturada e por isso pluricultural; politizada e por isso militante; livre e por isso libertadora. Que o povo possa conquistar a Universidade como se conquista a terra, a moradia, a saúde, a cidadania... (Também para isso vamos ter que criar um MSU, o Movimento dos Sem Universidade?). A utopia começa pela cabeça, e muitas utopias e suas realizações históricas começaram na Universidade. Queremos, pois, uma Universidade galhardamente utópica!

****

Canta o poeta Oscar Campana:

Se não houver cam"inho que nos leve
nossas mãos o abrirão,
e haverá lugar para as crianças,
para a vida e para a verdade;
e esse lugar será de todos,
na justiça e na liberdade.
Se alguém se anima, avise:
seremos dois a começar..."

Dois e muitos e muitas, vocês todos e todas, sendo sempre mais nesta roda viva, apesar de todos os pesares neoliberais, apesar de todas as rutinas das instituições, apesar dos nossos próprios enquistamentos. A utopia é sonho, é estímulo, é serviço. "A esperança, segundo Marcuse, foi-nos dada para servirmos aos desesperançados". De esperança em esperança caminhamos, esperançando-nos. A Humanidade não é suicida, tem genética divina. É filha do Deus da Vida. O "princípio esperança" é o mais radical DNA da raça humana. A utopia, como o horizonte caminhante da parábola de Galeano, nos convoca e provoca. Não só fazemos caminho andando; somos caminho. O "final da História" deles é para nós um sempre novo início da História, o constante recomeçar, sempre mais humanizadamente, da própria História humana.

Até alcançarmos – falo à luz da esperança cristã – a estatura do humano perfeito, segundo a medida d’Aquele que fracassou diante dos poderes religiosos, econômicos e imperiais, foi excluído "fora da cidade" como subversivo maldito pendurado numa cruz, mas que é Ressuscitado que "faz novas todas as coisas", revolucionando todas as consciências e todas as estruturas, até as estruturas da própria morte. (No meu quarto, lá no Araguaia, entre muitas lembranças de lutas e de sonhos, tenho sempre um cartãozinho em cores alegres com a palavra "Páscoa". Cremos na Páscoa, Páscoa somos!)

E termino, agradecendo a todos e todas: a solidariedade, o carinho, a presença. O título "passionis causa" e o compromisso comunitariamente renovado. À Unicamp, pioneira em tantas áreas, a seu reitor, doutor Hermano Tavares, ao corpo docente, funcionários e alunado, e aos padrinhos do título, professores Paulo Miceli, José de Souza Martins, Jerusa Pires Ferreira e Rogério César de Cerqueira Leite.

Da Unicamp ao Araguaia, da cidade ao sertão, esta é a palavra de ordem:
Na Utopia sempre!

OBS.: Esta é uma transcrição fiel da aula magna redigida por dom Pedro Casadáliga, respeitando forma, pontuação e terminologia por ele utilizadas.


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