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Jornal da Unicamp - Novembro de 2000

Páginas 6 e 7

ALIMENTOS

O grande flagelo

Professor Melhem Adas traça a ‘geografia da fome’, durante evento em que
a FEA abriu espaço para discutir projetos de ajuda a quem não tem o que comer

Luiz Sugimoto

A fome é uma vergonha para a humanidade. É um flagelo, um grande genocídio. Violenta, mutila e aniquila milhões de homens, mulheres e crianças em todo o mundo, principalmente nos países subdesenvolvidos. Cerca de 500 milhões de pessoas vão dormir, todas as noites, sem ter consumido os alimentos de que necessitam para manter a saúde de seu organismo. Dez milhões de crianças de menos de 5 anos morrem anualmente de fome ou de doenças dela decorrentes. No Brasil, os menores carentes representam 36 milhões de crianças e jovens. Desse total, cerca de 7 milhões são tidos como totalmente abandonados, desnutridos, entregues à própria sorte e sem esperanças concretas de uma vida decente.

As frases acima, do livro A fome, crise ou escândalo?, de Melhem Adas, foram estampadas em camisetas, folhetos e cartazes da II Semana de Alimentação promovida pela Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), entre 16 e 20 de outubro. A proposta do encontro: viabilizar ações humanitárias e emergenciais que extrapolem os limites da teoria e atenuem na prática o sofrimento dessas pessoas. Para colaborar, vieram palestrantes com formações diversas à engenharia de alimentos para uma reflexão sobre um dos temas mais aflitivo deste fim de século: a fome e a indiferença social.

Melhem Adas, docente aposentado em ciências sociais pela USP, prefere se apresentar como professor de geografia. Tem uma vida acadêmica dedicada a desmistificar a questão da fome, que líderes capitalistas friamente atribuem à falta de alimentos, a um "fenômeno natural", quando é nítido tratar-se de uma divisão injusta da produção internacional, de uma conjuntura econômica defeituosa, de uma criminosa distribuição de renda. Bastante conhecido dos estudantes do ensino médio por seus livros de geografia, Adas afirma que seu público são mesmo os jovens, que devem necessariamente entrar em contato com o tema. "Para que depois, quando eles se tornarem médicos, engenheiros ou físicos, não percam o sentido das Humanidades".

Durante hora e meia, Adas discorreu sobre a "geografia da fome", título de um livro que se tornou referência mundial, assinado pelo médico Josué de Castro, por quem o professor é declaradamente influenciado. "Quando essa obra foi lançada, em 1946, o autor foi pressionado a substituir o termo ‘fome’ por ‘desnutrição’. Ora, fome é uma expressão biológica de doença social. Fala-se constantemente no extermínio de seis milhões de judeus, mas não se dá a mesma importância para as dez milhões de crianças, entre zero e cinco anos de idade, que morrem todo ano por falta de comida nos continentes africano e asiático e na América Latina. A fome é a prova mais contundente do fracasso da nossa civilização em escala planetária".

Passado colonial – Melhem Adas lembrou que o mundo subdesenvolvido está sujeito à mesma divisão internacional da produção desde os tempos coloniais: a troca de produtos manufaturados dos países desenvolvidos por matérias-primas dos países subjugados. "O colonialismo desestruturou as economias locais, que tinham um sistema produtivo voltado para atender sua população interna. Impuseram a troca da agricultura de produtos alimentares por esta de produtos de exportação. Aqueles habitantes não conheciam a fome, porque repartiam os frutos entre si. Bangladesh gozava de autosuficiência em alimentos até a chegada dos colonizadores".

Reportando-se ao Brasil, o professor ressalta que este quadro vem se acentuando através dos tempos, com as monoculturas de cana, café e agora com soja e laranja. Nos últimos 40 anos houve uma expansão enormemente desproporcional das áreas de cultivo. As áreas de soja cresceram 390%; de laranja, 150%; e de cana, 50%. Por outro lado, as áreas de arroz, feijão e milho aumentaram apenas 20%, 12% e 11%, respectivamente. O País é um dos maiores exportadores de soja, mas o consumo interno é mínimo.

O professor aponta outro agravante: "Nem todos sabem, mas 43% dos cereais exportados pelos países subdesenvolvidos destinam-se a alimentar o gado dos desenvolvidos, são transformados em ração animal. É um mercado que movimenta US$ 5 bilhões somente nos Estados Unidos. O gatinho de estimação deles é melhor alimentado que a criança subnutrida nossa; a proteína animal que se consome em excesso lá, falta aqui".

Melhem Adas volta ao mapa mundi e aponta a Guatemala, que possui um dos maiores índices de abate de gado, mas apresenta uma das menores taxas de consumo de proteína animal por habitante. Cita outro país, símbolo da fome, a Etiópia: "Ali, sempre culparam a grande seca pela existência de um povo faminto. Mas, em Sael (costa leste, faixa sul do Saara), o porto está abarrotado de fardos de algodão destinados à Europa. Obviamente, o algodão é plantado nas áreas onde se poderia colher alimentos".

Função social da terra – Adas realçou que em qualquer país desenvolvido a função social da terra é a de produzir alimentos. Menos entre os subdesenvolvidos, como o Brasil, onde esta função nunca foi respeitada. Ele recuou até 1850, quando a chamada Lei da Terra perpetuou os quatro séculos anteriores de latifúndio, proibindo a existência de posses e determinando que toda terra pública só poderia ser adquirida em leilão. "Somente os latifundiários tinha condições de fazer os lances. O dinheiro arrecadado em leilão foi usado para financiar a imigração, alternativa encontrada para a proibição do tráfico de escravos".

Saltando para 1962, o professor recordou os estragos provocados pelo Estatuto do Trabalhador Rural, que pretendeu levar para o campo os mesmos direitos do trabalhador urbano. O resultado foi o desemprego e uma grande migração para as cidades. "Mesmo aquele empregado rural que era alimentado, transformou-se em bóia-fria e viu-se obrigado a comprar arroz na mercearia".

Distribuição de renda – É por conhecer tanto a história, que Melhem Adas é contundente ao rebater a argumentação de que o mundo não consegue produzir alimentos para todos os seus habitantes. "Os dados da própria ONU asseguram que a produção pode atender plenamente às necessidades diárias de 3.000 calorias e 65 gramas de proteínas para cada indivíduo. O que existe é uma estrutura agrária extremamente injusta".

O professor oferece alguns números dessa estrutura fundiária no Brasil: 51% dos proprietários do campo detêm somente 2,3% dos estabelecimentos rurais; em contrapartida, 1% dos proprietários são donos de 50% dos estabelecimentos; e 50% dos latifúndios estão improdutivos, servindo como "reserva de valor", guardados para herança ou à espera do melhor preço.

Hoje, com o capitalismo financeiro, os países periféricos deparam-se com uma distribuição de renda ainda mais inconcebível. De acordo com o IPEA, 11% da população economicamente ativa no Brasil têm renda inferior ou igual a meio salário mínimo; 19% recebem entre meio e um salário mínimo. "Isso significa que 30% dos brasileiros vivem não na pobreza, mas na miséria, na indigência, sem dinheiro para comer".

Cerca de 200 empresas transnacionais, informa Melhem Adas, possuem um faturamento quase igual ao PIB do mundo subdesenvolvido. Com a globalização, esse poder só tende a aumentar. Para alterar a ordem mundial, ele vê como única alternativa a politização da população e uma mobilização que venha de baixo para cima. "Não quero discutir seus métodos, mas quando pedem minha opinião sobre o MST, digo que é um movimento mais do que legítimo. Estamos esperando pela reforma agrária há 500 anos. O Brasil não precisa de ‘reis’ da soja e da laranja. Precisa da unidade familiar de produção".

A FEA no primeiro S.O.S. Fome

É tempo de solidariedade e fraternidade, uma era afetiva. Com este argumento, a professora Maria Isabel Rodrigues, do Departamento de Engenharia da FEA, tem convidado seus alunos a participar de projetos de combate à fome, particularmente da Associação dos Amigos da Criança (Amic), da qual é voluntária.

Mesmo que o envolvimento não seja físico - vários professores, funcionários e estudantes da faculdade já participam regularmente da venda de rifas e pizzas para ajudar a Amic ou da distribuição de cestas de Natal -, a professora utiliza-se de fotos e vídeos para aproximar os estudantes de uma realidade que lhes parece muito distante e, no entanto, está ao lado, a 30 minutos da Unicamp. A 2a Semana de Alimentação, que ela coordenou, ficou inserido na campanha "S.O.S. Fome", da Amic, e visou contribuir para formar, mais que um bom profissional, um cidadão solidário.

A faculdade, na verdade, já tem alunos envolvidos com a questão da fome; é um grupo ainda pequeno, mas atuante. Foram praticamente pioneiros no "trote social", em 97, levando calouros às ruas para coletar alimentos e ganharam um prêmio nacional por isso. Em 98 criaram o Projeto Social FEA, que atua em várias frentes, como no ISA (Instituto de Solidariedade para Programas de Alimentação), uma instituição não-governamental coordenada por professores da unidade e que conta com esses jovens para atestar a qualidade, separar e distribuir para famílias carentes as frutas, legumes e verduras doados por comerciantes da Ceasa. São produtos em ponto de maturação, que não podem ser comercializados no dia seguinte. O ISA coleta 5 toneladas anuais de alimentos, beneficiando 1.700 famílias e 158 entidades assistenciais de Campinas e região.

O ISA Qualidade é um segmento que acompanha "o caminho do alimento" da armazenagem até sua chegada nas entidades assistidas, a fim de detectar causas de deterioração. Outra equipe de estudantes acaba de dar um curso piloto sobre higienização e aproveitamento de nutrientes para 30 cozinheiras. Para comemorar o término das aulas, promoveram um almoço comunitário com bolinhos de talos de couve-flor como entrada e doce de casca de melancia como sobremesa.

Os alunos do Projeto Social estão em vias de implantar uma cozinha semiprofissionalizante no Parque Oziel, grande área de ocupação na cidade, onde funcionará uma padaria e um restaurante. Pela planta, o local terá capacidade para treinar 30 pessoas na produção de alimentos, além de servir refeições.

Bom samaritano – A pós-graduanda Ana Luiza Mattos Braga está convidando colegas para ajudar a elaborar e encaminhar à Assembléia Legislativa projetos de lei que incentivem as doações de alimentos desperdiçados por parte dos estabelecimentos comerciais. O projeto de lei denominado "Estatuto do Bom Samaritano", parcialmente rejeitado no Congresso Nacional, oferece garantias para que hipermercados e restaurantes façam doações em bom estado de conservação.

Atualmente, um pote de iogurte, a dois dias do vencimento do prazo de validade, é jogado no lixo porque o cliente atento não irá comprá-lo. Em restaurantes industriais e comerciais, as sobras limpas, em perfeito estado de conservação, também vão para o lixo ao final do horário de refeição. Em lojas de fast food um sanduíche é descartado depois de 15 minutos na prateleira.

"Um amigo meu, dono de supermercado, chorou quando teve que jogar fora centenas de achocolatados", conta a professora Maria Isabel. O comerciante não doa esses alimentos para os carentes por um motivo principal: se o transporte for inadequado, se o produto não for bem conservado e a pessoa que consumi-lo passar mal, o estabelecimento será responsabilizado.

Ao mesmo tempo em que batalha pela aprovação da lei, Ana Luiza realiza pesquisas em restaurantes e supermercados para avaliar o volume de alimentos que estão em boas condições mas acabam desperdiçados e formas seguras de transporte desses produtos que poderiam ser doados. Ana graduou-se pela FEA no ano passado. Hoje é engenheira de alimentos e encaixa-se no perfil de uma cidadã solidária.

Empresa prospera na economia da comunhão

Economia da comunhão é a denominação dada à partilha dos lucros de uma empresa em três terços: parte para aplicações na própria empresa, outra em benefício dos funcionários e outra destinada aos pobres. Difundida no Brasil a partir da Comunidade de Mariápolis, hoje a economia da comunhão é adotada por aproximadamente 80 empresas no País. No mundo, já são oitocentas, contemplando perto de 7.000 famílias. A gestão dos recursos para a população carente é centralizada, com cadastramento e renovação periódica das famílias, que recebem não apenas alimentos, mas também tratamento médico, dentário, cursos de aprimoramento e outros tipos de assistência.

Rodolfo Leibholz é um engenheiro mecânico formado pela Unicamp em 1972. Em 85, juntamente com seu irmão, também engenheiro, abriu a Femaq – Fundição, Engenharia e Máquinas, sediada em Piracicaba. Passados seis anos, depois de um começo difícil, a empresa já tinha alcançado a estabilidade financeira fornecendo material fundido para os grandes da indústria automobilística e hoje também exporta para Estados Unidos, Alemanha, Argentina e África do Sul.

"Mesmo na época, em 91, teríamos condições de, vendendo a empresa, parar de trabalhar. Creio que seja o sonho de qualquer empresário, o ápice do capitalismo: poder parar de trabalhar", recorda Rodolfo. Mas foi justamente naquele ano que os dois engenheiros decidiram adotar na Femaq a economia da comunhão. "Não sentíamos necessidade de ficar cada vez mais ricos. Decidimos continuar gerando riqueza com os meios produtivos, mas distribuí-la, colocando o homem e o amor acima de tudo".

Era uma revolução em termos empresariais e os irmãos tinham noção de que estavam colocando em risco o próprio negócio. Mas valeu a pena conferir "se o amor vence a tudo". A produção, que era de 30 toneladas homem/ano em 1985, passou para 70t em 95 e saltou para 90t em 2000. Como comparação, a média do setor é de 35 toneladas homem/ano no Brasil, 66t nos Estados Unidos e de 65t no Japão.

Atualmente, os 70 funcionários da empresa produzem seis mil toneladas por ano, proporcionando um faturamento anual de R$ 15 milhões. Em 99, a Femaq recebeu o prêmio Fundação Getúlio Vargas por sua filosofia de trabalho. "Ganhamos em produtividade a ponto de poder competir no mercado externo", afirma Rodolfo. "O funcionário mostra muito mais motivação não apenas pelos ganhos pessoais em salário, condições de trabalho e oportunidade de aprimoramento, mas também por ver que pessoas pobres estão sendo beneficiadas com a sua produção".

Desde 91, seis novas empresas do chamado pólo industrial de Mariápolis nasceram já sob a nova cultura. E Rodolfo Leibholz anuncia que está se associando a duas empresas, uma brasileira e outra francesa, para montar unidades de reciclagem de plásticos, seguindo a economia da comunhão. "Será nossa primeira multinacional", festeja.

Órfã motiva criação de rede de amigos

Uma criança passou mal na sala de aula. A professora levou S.D. para a própria casa e descobriu que ela teve o pai assassinado, o que deixou a mãe e a família em situação de dor extrema. Diante da acolhida fraternal, S.D. sentiu-se livre para pedir ajuda e a professora doou-lhe uma cesta de alimentos. No seguinte, S.D. trouxe outra criança, uma vizinha, igualmente carente. Depois, outra... Sem recursos, a professora pediu a colaboração de amigos. Formou-se, então, uma rede de amigos.

A professora é Eliana Luiz dos Santos, que hoje preside a Associação dos Amigos da Criança – Amic, criada em 1990. Passados dez anos, a Amic tem 7.000 famílias cadastradas e distribui mensalmente 4.500 cestas de alimentos. A Associação mantém um educandário com 160 crianças, cinco ranchos na periferia para distribuição de sopas e uma casa terapêutica que oferece assistência psicológica a menores com distúrbios acentuados. Oferece ainda um trabalho semanal para 100 idosas, enxovais para gestantes e está viabilizando um projeto voltado a pessoas que chegaram ao limiar da vida (suicídio, homicídio etc.) e que inclui a distribuição de pequenas construções visando a reestruturação de suas famílias. A entidade atende a 120 bairros.

A 2a Semana de Alimentação da Unicamp incluiu um show beneficiente com renda revertida para a Amic. "É a união da razão, do conhecimento, dos doutores com a sociedade", agradeceu Eliana, acrescentando que a contribuição dos artistas e a iniciativa da FEA em debater a questão da fome mostram que "a cultura e o saber não estão indiferentes e distantes dos excluídos".

O show contou com a Banda Bate Lata, o cantor Jair Rodrigues, o Ballet Lina Penteado e com a cantora lírica Ana Ariel, filha de Eliana. Todos abriram mão de cachê. A Banda Bate Lata é formada por 22 crianças e adolescentes que viviam em situação de risco e que aprenderam a tirar ritmo de latões e panelas. "Essas crianças sentem a responsabilidade de se envolver na luta contra a fome porque vivem de perto o problema", afirmou o coordenador do grupo, Alexandre Randi. A banda trocou seu cachê por um curso de conservação de alimentos que os alunos da FEA darão às mães dos próprios integrantes.


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