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Uma ferramenta para o próximo governo

Núcleo da Unicamp coordena um estudo supra-institucional que deve pautar a política para recuperação da indústria e aumento das exportações

LUIZ SUGIMOTO

Professor Mariano Laplane, coordenador da pesquisa no âmbito da Unicamp: "Adoção das  recomendações depende do novo presidente"Luiz Inácio Lula da Silva, ex-metalúrgico que iniciou a vida política buscando melhorar o dia-a-dia de quem torneava parafusos, vai assumir a Presidência da República tendo em mãos uma ferramenta capaz de nortear suas propostas para a recuperação da indústria nacional. Trata-se de um diagnóstico profundo de vinte cadeias produtivas – da automotiva à cerâmica –como não se realizava havia dez anos. Nele se avalia o impacto sobre a indústria brasileira do processo de negociação de uma área de livre comércio nas Américas (Alca) ou de igual acordo entre Mercosul e União Européia, ou de ambos os casos. E nele se propõem estratégias para fortalecer a competitividade do Brasil no mercado externo.

O estudo é coordenado pela Unicamp e tem a participação da USP, UFRJ e outras instituições. Foi encomendado pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio ao Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (NEIT) da Universidade, no segundo semestre de 2001. A primeira fase do trabalho englobou dez cadeias produtivas, que em função de sua importância na economia brasileira - empregos que geram, peso na balança comercial - poderiam ser "vítimas" das negociações de áreas de livre comércio. A rápida geração de resultados levou à ampliação da pesquisa para vinte cadeias, com o segundo lote financiado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia.

"Procuramos identificar as oportunidades e ameaças que surgem para esses setores em qualquer um dos cenários de negociação. Não é um trabalho fácil, pois a indústria brasileira é muito heterogênea: convivem num mesmo setor uma empresa fortíssima (capitalizada, de grande dinamismo e desempenho exportador) e uma empresa média ou pequena fragilizada, sem recursos financeiros ou acesso ao mercado externo. Não há um setor que só tenha a ganhar e outro que só tenha a perder, mas oportunidades e ameaças para todos", afirma o professor Mariano Laplane, que coordena a pesquisa no âmbito do NEIT. A coordenação geral, incluindo o trabalho de outras instituições, é do professor Luciano Coutinho, também da Unicamp.

Quatro grupos - Considerando os tipos de empresas, seus mercados e dificuldades, chegou-se a quatro grupos de setores. No grupo 1, com grau maior de competitividade, estão os setores de siderurgia, café, citrícola, papel e celulose, têxtil e confecções. "Para setores onde há oportunidades externas, as recomendações têm a ver com a política comercial. A Alca ou um acordo entre Mercosul e União Européia só valem a pena se os produtos brasileiros gozarem de abertura efetiva. Se um país remove a tarifa, mas mantém outras barreiras, nosso produto continua sem poder chegar lá. Quando, por exemplo, oferecemos aos Estados Unidos o que não oferecemos a nenhum outro país, nosso acesso ao mercado norte-americano também precisa ser privilegiado", adverte Laplane.

Ainda quanto ao grupo 1, o pesquisador afirma que não basta a negociação política para abrir as portas. Competitividade, segundo ele, implica fazer com que esses setores se preparem para explorar e também criar as oportunidades, independentemente de se defender das ameaças de um livre mercado. "As empresas devem agregar valor ao que exportam. É melhor exportar suco de laranja pasteurizado do que suco de laranja concentrado; ou um sapato com design, uma marca, do que estes que se vendem em supermercados a preço baixo", exemplifica o professor. Outra recomendação, em casos determinados, é a internacionalização da empresa, cuidando da distribuição de seu produto no país comprador, senão por ela própria, por meio de um parceiro local.

Ganhando tempo - O segundo grupo de setores - petroquímica, plástico, bens de capital – precisa passar por uma reestruturação completa para sobreviver num mercado aberto. A política, então, é a de ganhar tempo, caso contrário os acordos comerciais terão ali efeitos muito perversos. "Deve haver muito cuidado e critérios nos prazos para abertura. Diminuir o número de empresas, fortalecendo-as através de compras, alianças, fusões, talvez seja boa saída. Além disso, elas carecem de grande financiamento para que se atualizem, aprendam e renovem. A política comercial é ganhar tempo, a política de competitividade é aproveitar esse tempo para pôr o setor em outras bases", raciocina Mariano Laplane.

No grupo 3 estão os setores chamados de "pouco sensíveis": cosméticos, cerâmica, madeira e móveis. Para eles há oportunidades e ameaças, mas localizadas, pois somente alguns pequenos grupos de empresas nacionais têm a oportunidade de exportar. "Mesmo as indústrias de móveis e madeira, que poderiam internacionalizar parte da produção, não colocam grandes desafios e urgências para o Estado", afirma o professor.

As multinacionais - O quarto grupo é onde predominam as empresas estrangeiras. É um grupo heterogêneo, com alguns setores mais competitivos que outros, como o automobilístico, farmacêutico, de informática, de telecomunicações, de eletrônica de consumo. Laplane observa, porém, que todos têm uma característica comum e importante: o comércio "intrafirma", ou seja, a filial brasileira mandando produtos para a filial de outro país, trazendo produtos da matriz, etc.

A proposta apresentada no documento do NEIT é de muita negociação com as grandes corporações internacionais, no intuito de que suas matrizes invistam na transformação das plantas industriais no Brasil em plataformas de exportação. Aparentemente, a iniciativa fere os interesses das multinacionais, mas Laplane lembra um exemplo de negociação viabilizada: "Passamos a exportar para os EUA telefones celulares, um produto que o Brasil sequer fabricava há cinco ou seis anos. De repente, aparecemos no mapa como exportadores de celulares. O que mudou no país? Talvez sejam os investimentos em C&T, mas duvido. A verdade é que uma matriz descobriu a existência de capacidade ociosa e baixo custo no Brasil e decidiu exportar a partir das fábricas instaladas aqui", conclui.

Desafio - O professor ressalta que as multinacionais são a área de especialização do NEIT, em que o grupo atua há oito anos. Por isso, insiste que negociar com essas corporações é um desafio prioritário na política industrial. "O Brasil tem pouca ou nenhuma experiência nesse sentido, mas outros governos negociam com empresas estrangeiras desde sempre. Precisamos deste aprendizado. Já que nossa indústria se desnacionalizou - boa parte se tornou um subsistema do sistema internacional - , então precisamos convencer as multinacionais a serem parceiras do país", defende Laplane. E conclui: "Se me permite uma metáfora grosseira, seria como ganhar a Copa do Mundo com uma seleção de jogadores estrangeiros. Isto é bom e é ruim, pois abre o risco de um jogador como o Figo, jogando por nós, fazer um gol contra frente a Portugal. Mas muitos adorariam ter um Real Madrid com a camisa amarela. A arte da negociação não é fácil".

Estudo de Competitividade por Cadeias Integradas
Projeto de Pesquisa MDIC/FINEP/NEIT-IE-UNICAMP/IE-UFRJ/FEA-USP

EQUIPE DE COORDENAÇÃO
Luciano Coutinho (IE-UNICAMP)
Mariano Laplane (IE-UNICAMP)
David Kupfer (IE-UFRJ)
Elizabeth Farina (FEA-USP)

PRIMEIRO GRUPO DE CADEIAS
Automobilística - Fernando Sarti (NEIT-IE-UNICAMP)
Bens de capital - Roberto Vermulm (USP)
Eletrônica de consumo - Mauro Thury V. Sá (UNICAMP)
Farmacêutica - Jacob Frenkel (UFRJ)
Informática - José R. Dória Porto (NEIT-IE-UNICAMP)
Papel e celulose - Maria da Graça D. Fonseca (UFRJ)
Petroquímica - João Furtado (UNESP)
Plásticos - Maria Carolina Souza (NEIT-IE-UNICAMP)
Siderurgia Germano M. de Paula (UFU)
Tele-equipamentos Rafael Oliva (CELAET)

SEGUNDO GRUPO DE CADEIAS
Biotecnologia-agronegócios - John Wilkinson (UFRRJ)
Biotecnologia-complexo Saúde - Carlos Gadelha (Fiocruz)
Café - Maria Silvia Maccioni Saes (USP)
Cerâmica Galeno Ferraz (UFRJ)
Cítricos - Marcos Neves (USP)
Construção naval - João Carlos Ferraz (UFRJ)
Cosméticos Renato Garcia (Poli/USP)
Couro/calçados Achyles Barcelos (UNISINOS)
Madeira/móveis Márcia Azanha (USP)
Têxtil/confecções - Victor Prochnik (UFRJ)

A expectativa de correções na rota

O professor Maurício Laplane está certo de que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva vai analisar com seriedade o projeto coordenado pelo NEIT e que lhe será encaminhado pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Contudo, segundo o pequisador, "a adoção das medidas propostas depende do novo governo", diz.

O doutorando Rodrigo Sabbatini, que auxilia Laplane nos trabalhos do núcleo da Unicamp, é mais enfático quanto à aplicação das propostas: "Pessoalmente, acho que num governo do PT as decisões podem ser vir de maneira mais tranqüila, mesmo porque boa parte dos empresários que aprovam as idéias do projeto apoiou a candidatura de Lula", afirma. Ele lembra que o próprio vice-presidente eleito, José Alencar, é um grande empresário da indústria têxtil, um dos setores que mais sofreram nos últimos anos.

"Há uma agenda de desenvolvimento industrial a ser definida no país, cada vez mais premente. Fizemos um esforço enorme para aumentar a competitividade da indústria, talvez não pelo caminho certo, até por uma necessidade de sobrevivência das empresas nos anos 90. O fato é que a abertura provocou uma melhora e hoje a indústria brasileira é mais competitiva que há 10 anos, embora não o bastante", afirma Laplane.

Em contrapartida à timidez do avanço, o professor acusa o custo altíssimo para o país, que poderia ter sido evitado. "Custo de divisas e custo de emprego, porque a estratégia escolhida foi a de submeter a indústria a uma pressão da concorrência externa muito maior, sem oferecer os instrumentos para que ela pudesse se sair bem nesse confronto. Ou seja, taxas de juros altíssimas com uma taxa de câmbio totalmente errada, com uma economia que cresceu pouquíssimo por dois ou três anos e que, quando começou a tomar impulso de 95 a 97, rapidamente entrou em novo período de instabilidade, que já dura cinco anos".

O pesquisador da Unicamp afirma que a indústria acabou submetida ao desafio de sobreviver numa economia muito mais aberta que antes, mas em condições muito desvantajosas. "Isto fez com que, no intuito de sobreviver, cada empresa adotasse a estratégia do menor custo possível. Menor custo possível é trazer um equipamento importado e pôr o trabalhador na rua. Uma estratégia que garantiu a sobrevivência da empresa, mas arrebentou com as contas externas e destruiu empregos em grandes quantidades", adverte.

Segundo Laplane, o processo de abertura em contexto diferente - com outra política econômica, juros e câmbios mais adequados, incentivos ao investimento e perspectiva de crescimento contínuo em cinco ou seis anos (e não apenas em três) - poderiam ter resultado em igual ou maior competitividade, mas com destruição de empregos e déficit acumulado na balança comercial bem menores. "Algumas empresas têm muita competitividade e só não exportam mais por causa das barreiras. Mas, de modo geral, as empresas vêem a nova rodada de abertura na Alca e União Européia com forte apreensão".

Esforço coordenado

Rodrigo Sabbatini, pesquisador do NEIT: "Éste diagnóstico é  um legado para o próximo governo"O Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (NEIT) da Unicamp está finalizando um documento que sintetiza os diagnósticos e recomendações do Estudo de competitividade por cadeias integradas: um esforço coordenado de criação de estratégias compartilhadas. Participaram do projeto, além da coordenação, vinte consultores da Unicamp, USP, UFRJ, UFRRJ, Unisinos, Fiocruz, Politécnica da USP e Unesp de Araraquara.

A coordenação geral foi do professor Luciano Coutinho, da Unicamp. A coordenação pela USP coube à professora Elizabeth Farina e, pela UFRJ, ao professor David Kupfer. Juntando-se o pessoal do Ministério do Planejamento, MCT, Ministério das Relações Exteriores, IPEA e BNDES, uma centena de profissionais atuaram diretamente no projeto. Os estudos foram revistos duas vezes, em workshops com empresários, representantes do governo e especialistas de outras instituições. Também foram apresentados ao ministro Sérgio Amaral e sua equipe técnica.

Mergulhado na síntese do calhamaço de informações (média de 120 páginas para cada um dos vinte estudos de cadeias produtivas) que acabará na mesa do futuro presidente da República, o pesquisador Rodrigo Sabbatini, do NEIT, recorda que a Unicamp também foi convidada a realizar diagnóstico semelhante concluído em 1993, o Estudo da Competitividade da Indústria Brasileira (ECIB). "Passaram-se quase dez anos, desde a época em que a palavra "política industrial" era considerada pecaminosa, até que se produzisse este legado para o próximo governo".