198 - ANO XVII - 11 a 17 de novembro de 2002
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Professor da Unicamp cogitado para o primeiro escalão do próximo governo e autor do Fome Zero diz que o programa é prioridade e que o país tem recursos para implantá-lo

Graziano e os
fundamentos do Fome Zero

Ilustração: FélixO professor de economia agrícola da Unicamp José Graziano da Silva não titubeia quando o assunto é o combate à fome no Brasil. Para ele, é perfeitamente possível acabar com esse flagelo, que já fez 25 milhões de vítimas, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). "Temos recursos para isso; o que falta é decisão política", afirma. Doutor em economia agrária, com teses defendidas nas universidades da Califórnia, nos Estados Unidos, e de Londres, na Inglaterra, o nome de Graziano é dado como certo no primeiro escalão do governo Lula. Autor do programa Fome Zero, um dos pilares da proposta petista para conduzir o País, o professor da Unicamp é cogitado para comandar o Ministério da Agricultura ou a Secretaria de Emergência Social, anunciada após o resultado das eleições. No dia 1º de novembro, pouco antes de embarcar para Brasília, onde passou a integrar a equipe de transição, ele deu a seguinte entrevista ao Jornal da Unicamp.

CLAYTON LEVY

Jornal da Unicamp - O senhor acha possível reverter o quadro de fome no Brasil até o final do mandato do governo Lula?

José Graziano da Silva: professor do Instituto de Economia da UnicampGraziano - Acredito que sim, porque temos as condições necessárias. Nossa agricultura tem uma capacidade produtiva muito além do que necessitamos. Sem expandir a produção nós já produzimos o dobro das necessidades básicas em termos de calorias e proteínas que uma pessoa precisaria consumir. Se nossa produção agrícola fosse distribuída igualmente, nós seríamos um país de gorduchos. As pessoas poderiam comer o dobro do que necessitam para sobreviver. Além disso, nós temos recursos hoje. Combater a fome é muito barato diante da disponibilidade de recursos que temos. Pelas nossas contas, precisaríamos de 5 bilhões de reais por ano.

JU - E de onde viria esse dinheiro?

Graziano - Temos esses recursos no orçamento. O Brasil hoje gasta vinte e poucos bilhões por ano em sistema de securidade social, fora a Previdência. O orçamento tem uma dotação de mais de 40 bilhões de reais para esses programas todos que estão espalhados. O que falta é decisão política, dar prioridade a essa luta contra a fome.

JU - Como o senhor disse, já existe no orçamento uma verba destinada a esse tipo de programa. Há o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, que deve contar no orçamento do ano que vem com cerca de 5 bilhões de reais. Tem ainda o Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação. São programas que deverão absorver dinheiro do orçamento. Para viabilizar o Fome Zero será necessário recurso adicional ou o próximo governo terá de fazer remanejamentos?

Graziano - O orçamento que está sendo discutido em Brasília tem cerca de 10% a 20% de recursos de livre arbítrio do Executivo. Dez por cento dariam 4,5 bilhões de reais. Ou seja, recurso tem. O problema é dar prioridade política à questão da fome. Sem dúvida, há um aperto fiscal para o próximo ano, mas há também uma solidariedade hoje em toda a sociedade brasileira, e mesmo internacional. Por isso, acredito que não haverá falta de recursos para combater a fome.

JU - Como está ocorrendo esta solidariedade?

Graziano - Faz uma semana que estou com o celular desligado. Se ligo o celular, tem alguém se oferecendo para fazer alguma coisa. Muitas ligações são de empresários grandes e pessoas que têm me contatado para o trabalho voluntário.

JU - Que tipo de ajuda oferecem?

Graziano - Os empresários oferecem doações em dinheiro e em espécie. Alguns dizem que poderiam expandir a capacidade produtiva e doar alimentos em troca de isenção de impostos sobre estes alimentos que seriam doados.

JU - Seria uma forma de incentivo fiscal para fortalecer o programa?

Graziano - Exato. Estamos pensando nisso. O empresário teria um crédito fiscal sobre a parte dos alimentos que doasse.

JU - Mas esse tipo de incentivo fiscal não poderá abrir um buraco na receita tributária?

Graziano - Não, porque estes alimentos doados fariam parte de uma produção excedente, com essa finalidade. Não haverá perda de arrecadação sobre aquilo que já está sendo produzido. A isenção seria sobre o excedente. Isso vai gerar mais emprego e vai ativar a economia. Não me canso de lembrar que a inspiração do programa é o Food Stamps, que os Estados Unidos implantaram na década de 1930 para sair da depressão.

JU - A idéia é adotar a mesma política aqui?

Graziano - Sim. Em 1929 vo-cê tinha nos Estados Unidos, de um lado, muita gente desempregada sem poder consumir e, de outro lado, um excedente de produção agrícola entupindo os armazéns do governo. Então o governo fez um vale para que o trabalhador desempregado pudesse receber os alimentos que estavam estocados nos armazéns. Isso reativou a economia dos Estados Unidos.

JU - Esse sistema servirá de modelo para o programa de cupons que o governo Lula pretende implementar?

Graziano - O que nós vamos fazer aqui é uma modernização do programa. Nos Estados Unidos, por exemplo, o programa já não usa mais vales. Agora são cartões magnéticos que você carrega uma vez por mês, depois vai ao supermercado e paga a conta. A diferença é que, na hora de debitar, o programa só debitará os produtos que pertencerem a um rol que será estabelecido.

JU - Quais os produtos que entrarão nesse rol?

Graziano - Os produtos que compõem a cesta básica mais produtos locais, que as próprias prefeituras poderão acrescentar em função da disponibilidade na região.

JU - E qual será o critério para cadastrar os estabelecimentos que trabalharão com esse sistema? Será voluntário ou haverá algum tipo de incentivo?

Graziano - Um dos setores que têm me procurado é o dos supermercadistas. Todo mundo quer se inscrever porque isso vai aumentar muito a demanda.

JU - Mas a coordenadora dos atuais 13 programas de combate à miséria do governo FHC, a geógrafa Wanda Engel, considera um retrocesso a reativação dos cupons de alimentação.

Graziano - Ela disse também que não tem fome no Brasil. De fato, num país que não tem fome seria um retrocesso fazer um programa de combate à fome. Ela tem razão. Só é preciso saber a que país ela esta se referindo.

JU - Qual a diferença entre o Fome Zero e o Bolsa Alimentação, mantido pelo atual governo?

Graziano - O Bolsa Alimentação foi um programa criado pelo ministro José Serra no início desse ano com forte característica eleitoral. Na minha maneira de ver, foi uma resposta ao lançamento do Fome Zero, que nós fizemos em outubro do ano passado. Eles se deram conta de que não tinham um programa especificamente destinado a aumentar o consumo de alimentos e então saíram correndo com esse Bolsa Alimentação.

JU - Mas quais as diferenças entre os dois programas?

Graziano - O Bolsa Alimentação é destinado a gestantes e mães com crianças até dois anos de idade. É um público muito restrito. O cupom do Fome Zero será para todas as famílias que não tenham condições de garantir segurança alimentar para seus membros. Outra diferença é que no Bolsa Alimentação você recebe em dinheiro e no Fome Zero você receberá o crédito para adquirir alimentos.

JU - O valor desse crédito já está definido?

Graziano - Entre 50 e 150 reais por mês. Isso tudo será ainda detalhado, bem como a forma operativa do programa. Vamos discutir isso esta semana em Brasília com técnicos da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). A FAO nos colocou à disposição uma equipe que têm experiência na implantação de programas similares em 71 países, entre eles os Estados Unidos.

JU - E os resultados nesses países têm sido satisfatórios?

Graziano - As experiências mostram que o sistema de crédito em cartão aumenta mais o consumo de alimentos do que se o governo apenas der o dinheiro. As famílias têm outras necessidades, como aluguel e transporte. São necessidades justas. Mas nós queremos direcionar o programa para aumentar o consumo de alimentos. Nossa prioridade política é o combate à fome. Nós não estamos dizendo que vamos resolver todos os problemas. Estamos dizendo que vamos atacar o problema da fome.

JU - Por que a fome?

Graziano - Há três razões básicas: o gasto no setor de saúde está crescendo, mas a saúde das pessoas não melhora. Isso mostra que há uma necessidade mais básica por trás. Em segundo lugar, a fome compromete as gerações futuras. A criança que não toma leite até os cinco anos de idade terá o seu desenvolvimento mental comprometido. A terceira razão é que hoje o Brasil tem uma capacidade ociosa na agricultura. Nós podemos produzir muito mais sem gastar dólares. Se, por exemplo, fôssemos adotar um programa para fabricar computadores, teríamos que importar componentes, mas não temos dólares suficientes. Para combater a fome não precisa nada disso. Dá para fazer com o que temos. Não gastaremos um tostão para combater a fome a não ser os cerca de 5 bilhões de reais por ano de investimento no programa dos cupons. Nossas contas mostram que esse dinheiro retorna em forma de benefícios já no primeiro ano. Haverá economia em outros gastos em razão de ter uma população melhor alimentada.

JU - Quantas pessoas o programa pretende atender no primeiro ano de governo?

Graziano - Cerca de 20% dos mais necessitados, o que dá pelo menos dois milhões de famílias ou dez milhões de pessoas. Isso é uma expectativa. Ainda vamos dimensionar melhor. Mas estimamos que temos recursos para isso.

JU - O jornal francês Le Monde, em artigo publicado na semana passada, chamou o Fome Zero de "voluntarista". O que o senhor acha disso?

Graziano - Acho que há um grande desconhecimento. O programa é composto de vinte políticas articuladas que vão da educação alimentar aos estoques estratégicos de alimentos. A política do cupom é apenas uma delas.

JU - E quais as políticas estruturais do Fome Zero?

Graziano - Geração de emprego e renda, com destaque para o primeiro emprego; ampliação da cobertura da previdência social; reforma agrária e apoio à agricultura familiar.

JU - Em relação à agricultura familiar, haverá alguma política específica de incentivo à produção?

Graziano - Sim. Nós entendemos que o programa de cupons vai criar um aumento na demanda. O grande problema hoje da agricultura familiar é a restrição de demanda. Não tem gente para consumir. Se o agricultor aumenta a produção, o preço cai muito. E com o crescimento na demanda, o preço deverá se sustentar. Então melhora o lucro do agricultor.

JU - O senhor deverá assumir o Ministério da Agricultura?

Graziano - Ainda não estamos conversando sobre isso.

JU - Mesmo assim, em sua opinião, quais seriam as prioridades do futuro governo para a agricultura?

Graziano - Temos hoje um desafio muito grande que é aumentar as exportações. O Brasil precisa de divisas. Um dos nossos setores mais dinâmicos e mais competitivos é a agroindústria. O desafio maior será exportar mais produtos com valor agregado.

JU - E como se faz isso?

Graziano - Com uma pauta mais diversificada de produtos. Não ficar em cima dos tradicionais, como soja e café em grão. Partir para produtos como o açúcar orgânico que tem uma demanda crescente no mundo, o álcool para combustível também tem demanda crescente, sucos de frutas tropicais. Então temos uma possibilidade imensa para diversificar a pauta com produtos de maior valor agregado.

JU - Nesse caso o Pró-Álcool terá alguma política específica?

Graziano - Uma das nossas prioridades é reativar o Pró-Álcool. Há a perspectiva de um carro de combustível múltiplo. Isso elimina o medo da falta de álcool na entressafra, porque se faltar álcool você também pode colocar gasolina. Isso resolve o problema tecnológico que impedia a expansão do álcool combustível.

JU - O governo Lula pensa em extinguir o ministério da Reforma Agrária?

Graziano - Não. Isso foi ventilado por aí, mas não sei de onde surgiu essa especulação. Não temos nenhum estudo nessa direção.

JU - E em casos específicos, como o do MST e da Reforma Agrária: como o governo Lula pretende conduzir esse assunto?

Graziano - O MST participou da elaboração da proposta de governo para a área de agricultura e reforma agrária. Durante a transição de governo vamos retomar a conversa com eles no sentido de elaborarmos um plano detalhado de ação. Já tive vários contatos telefônicos com a direção do MST. Eles me consultaram sobre questões mais específicas e ficaram de me entregar um documento.

JU - São reivindicações?

Graziano - São reivindicações que serão debatidas com a equipe de transição e a gente espera chegar num bom acordo.

JU - O que eles querem prioritariamente?

Graziano - Querem basicamente assentar as famílias que estão acampadas e melhorar a infra-estrutura nos assentamentos existentes. Nós concordamos que isso deve ser realmente prioridade.

JU - Durante a campanha política o MST manteve um silêncio estratégico do ponto de vista político. O senhor teme que agora haja uma cobrança do MST em relação ao Lula?

Graziano - Se fosse só do MST não tinha problema nenhum. Isso nós tiramos de letra. Acho que haverá uma cobrança da sociedade brasileira como um todo. Está todo mundo numa grande expectativa em relação ao governo Lula. Isso tem nos preocupado porque não se refaz em alguns meses aquilo que durante anos foi sendo minado. Há expectativas, por exemplo, em relação ao reajuste do salário mínimo, reajuste salarial do funcionalismo, geração de emprego para os jovens. São coisas que não são possíveis de atender tudo de forma rápida. Mas nós pretendemos começar a atender. Queremos dar um aumento para o mínimo (salário) razoável, fazer o reajuste para o funcionalismo...

JU - Que está há oito anos sem aumento de salário...

Graziano - Sim, há oito anos sem reajuste...

JU - O senhor tem idéia de qual seria o prazo para normalizar essa situação?

Graziano - Qualquer coisa nesse sentido é um chute.

JU - Nos últimos anos, a Unicamp tem fornecido inúmeros nomes para formulação de políticas governamentais. A que o senhor atribui esse fato?

Graziano - Somos uma universidade moderna, fortemente engajada no estudo de problemas brasileiros. É natural que surjam da Unicamp os quadros, não só na área de economia, mas também em outras áreas.

JU - Não há o risco de o tiro sair pela culatra, a exemplo do que aconteceu na época do Cruzado? Daquela vez, a Unicamp arcou com o ônus do fracasso da segunda fase do plano, que havia sido formulado por professores do Instituto de Economia.

Graziano - Espero que não. Vamos lutar muito para que não aconteça.

JU - Há outros nomes da Unicamp com possibilidade de integrar o governo Lula?

Graziano - Há muita gente que participou da campanha. O Gastão (Gastão Wagner de Souza Campos) na área de saúde, o Luciano Coutinho e o Wilson Cano na área de economia.

JU - Eles devem integrar o governo em algum escalão?

Graziano - Essas coisas ainda não estão sendo discutidas. Elas serão discutidas a partir do final desse mês, quando a equipe de transição terminar o seu trabalho. Nesse momento estamos fazendo um levantamento dos recursos e do que será possível fazer. Depois vamos começar a escalar o time.